Diário de classe

Ativismo judicial: realidade obscura refletida no espelho inquebrável

Autor

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

19 de dezembro de 2020, 15h25

"Uma advertência aos que negam a realidade por preferirem que ela fosse diferente: na vida, não adianta quebrar o espelho por não gostar da imagem."1 É assim que o ministro Luis Roberto Barroso rebate aqueles que não concordam com as categorias acerca da decisão judicial que ele trabalha em sua obra Constitucionalismo democrático: A ideologia vitoriosa do século XX. Pois bem, ele só reforça que não adianta o esforço, por mais obscura que seja a realidade refletida pelo ativismo judicial, não estamos obtendo êxito em quebrar este espelho.

Debater acerca de como decidem os juízes é, no mínimo, um dever daqueles que estudam Direito e que são comprometidos com um ideal de democracia. Contudo, paradoxalmente, em nome da democratização do processo de construção do discurso que sustenta a esfera pública oficial, temos visto a flexibilização dos critérios que asseguram, na prática, a manutenção do espaço democrático. É preocupante o ambiente de incerteza que a atuação do Poder Judiciário vem proporcionando à realidade brasileira.

Não quero dizer que o Judiciário não possui legitimidade para decidir questões moralmente controversas ou que Direito e Moral não estão intimamente ligados. Contudo é inadmissível o emprego de argumentos de política em Direito. Cumpre aqui esclarecer que argumentos políticos são padrões que estabelecem um objetivo a ser alcançado. Em contra partida, os argumentos de princípios são aqueles padrões que devem ser observados em razão de uma exigência de justiça, de equidade ou de alguma dimensão de moralidade2 e necessariamente conduzem uma atitude interpretativa do juiz.

Juntamente com Lenio Streck, penso que, no plano da interpretação do Direito, a obediência à coerência e à integridade são condição de possibilidade para a criação de uma teoria da decisão judicial3. E que os princípios, segundo essa proposta, se definem como o modo concreto de enfrentamento da discricionariedade judicial. Lembrando sempre que o combate ao arbítrio presente na discricionariedade dos juízes é justamente a busca pela devida concretização das promessas presentes no texto constitucional4.

Perante o prelúdio, voltemos ao livro do Min. Barroso e vejamos o que ele aponta como sendo os três fatores que influenciam a decisão judicial:

“Quais fatores influenciam uma decisão judicial, sobretudo de uma corte constitucional, notadamente nos casos difíceis, em que se impõe uma atuação mais criativa. Há uma vasta literatura contemporânea sobre esse tema. Em síntese apertada, é possível dizer que existem: (i) fatores jurídicos: juízes, naturalmente, levam em conta a Constituição, as leis, a jurisprudência e a doutrina acerca do que estão decidindo; (ii) fatores ideológicos: embora não possam e não devam ter posturas partidárias, juízes têm a sua própria concepção do que seja bom, justo e legítimo e, naturalmente, projetam-na em seus julgamentos; e (iii) fatores institucionais: há circunstâncias externas ao direito que também são relevantes para o processo decisório como as relações entre os Poderes, as influências da sociedade, da mídia e da opinião pública, a viabilidade de cumprimento das decisões etc.”5

Não poderiam ser esses fatores oriundos realismo jurídico? Lembremos que o realismo jurídico se baseia no protagonismo judicial, diante do ceticismo em relação as normas e dos raciocínios decorrentes de processos psicológicos6. Essa é a ideologia vitoriosa do século XX? Ainda, o Constitucionalismo Democrático não postula critérios públicos até mesmo para a atuação dos movimentos sociais como agentes da renovação do sentido das normas constitucionais?

Nesse sentido, vale mencionar que a principal premissa do Constitucionalismo Democrático consiste na autoridade da Constituição a partir de sua legitimidade democrática, ou seja, pela sua capacidade de inspirar o povo em reconhecê-la como sua Constituição7. Ainda assim, mesmo que o povo detenha espaço na construção do sentido dos princípios, exige-se que essas reivindicações sejam fundamentadas com recurso a “entendimentos constitucionais mais antigos que a comunidade reconhece e compartilha”8.

Lembrei com isso de uma coluna do prof. Lenio Streck9 sobre uma pesquisa empírica realizada nos Estados Unidos que dizia que “juízes que possuem filhas decidem com mais frequência a favor dos direitos das mulheres”. Na época (julho de 2017), me soou como absurdo pensar que as experiências pessoais pudessem de fato interferir na decisão de um magistrado. Afinal, concordo com a teoria da existência de respostas constitucionalmente adequadas formuladas pelo prof. Lenio Streck.

Naquele caso, apontava Streck para o distanciamento, ou até mesmo deslocamento, dos fatores públicos que incidem sobre o julgamento para afirmar aspectos privados, que dizem respeito ao campo da família ou das relações pessoais do juiz. Quando o Min. Barroso elenca fatores, principalmente o segundo, que influenciam um juiz no momento de uma “atuação mais criativa” este distanciamento fica evidente. É um grande retrocesso na Teoria do Direito.

Finalemente, para aqueles de alguma forma ainda acreditam que de alguma forma o Min. Barroso aproxima-se ou almeja aproximar-se da proposta teórica de Ronald Dworkin, explico que, somente se encontram na premissa de que decisões jurídicas representam decisões também políticas, o que aparenta ser um ponto em comum entre o Constitucionalismo Democrático, corrente a que se identifica Barroso, e a proposta da leitura moral da Constituição defendida por Dworkin

Ademais, para o Constitucionalismo Democrático os desacordos representam um fator hermeneuticamente positivo que, por incentivarem um rompimento – a partir da moralidade crítica – com valores sociais e compreensões assimétricas, resultariam no engajamento dos cidadãos ao ideário constitucional; entrementes, Dworkin relaciona esse compromisso à tomada de decisões judiciais fundadas na coerência de princípio. Ou seja, a ideia de que os tribunais justificam decisões individuais com base nos mesmos princípios garante a legitimidade democrática.

Surge, então, o principal ponto de divergência entre as duas matrizes teóricas. A adoção de uma perspectiva de fim, pelos constitucionalistas democráticos, atribui aos movimentos sociais capacidade de influenciar a prática jurídica por meio de interações dialógicas; Dworkin, todavia, ainda que não negue a influência desses diálogos, por centrar-se em uma perspectiva de meio, acaba por relacionar o desenvolvimento da prática jurídica não só a elementos valorativos, mas também a questões de ajustes as práticas constituídas.

Nesta senda, os princípios ganham diferentes conotações nas duas teorias. Se por um lado representam para o Constitucionalismo Democrático uma possibilidade de abertura argumentativa, potencializando o engajamento público, em Dworkin o papel desempenhado pelos princípios é justamente o contrário: eles fecham a interpretação, pois impõem ao juiz a necessidade de levar em conta toda a produção legislativa e jurisprudencial, combatendo a discricionariedade, apesar de reinserir a prática jurídica na dimensão dos fatos10.

Defendemos que o Direito é um conceito interpretativo e provém daquilo emanado pelas instituições jurídicas. Questões jurídicas encontram respostas exclusivamente nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador, como bem coloca Lenio Streck11. O que ultrapassa isso é ativismo.

Somos quem não gosta de nenhuma das categorias com as quais se trabalha o Constitucionalismo Democrático na obra. Nem neoconstitucionalismo, nem casos difíceis, nem ponderação, nem fatores extrajurídicos que influenciam uma decisão judicial. A vida comporta múltiplos pontos de observação e com certeza uns são melhores que os outros. Isso podemos afirmar. Ativismo nunca é bom!


1 BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalismo Democrático: A ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas, 2019. p. 54.

2 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 36.

3 STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014. p. 312.

4 STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 523.

5 BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalismo Democrático: A ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas, 2019. p. 53-54.

6 STRECK, Lenio. O realismo ou “quando tudo pode ser inconstitucional” Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jan-02/senso-incomum-realismo-ou-quando-tudo-inconstitucional.

7 BUNCHAFT, Maria Eugenia; LIMBERGER, Temis; MOREIRA, Eduardo. O casamento entre pessoas do mesmo sexo e a Suprema Corte norte-americana: Uma análise sobre o backlash à luz do debate entre Constitucionalismo Democrático e Minimalismo Judicial. Revista do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília. Brasília, v. 10, n. 1, p. 227- 257, 2016. p. 238

8 SIEGEL, Reva. Constitutional culture, social movement conflict and constitutional change: the case of the de facto ERA – 2005-06 Brennan Center Symposium Lecture. California Law Review. v. 94, p. 1323-1419. p. 1356.

9 STRECK, Lenio. Os filhos ou o café da manhã influenciam as decisões judiciais? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jul-20/senso-incomum-filhos-ou-cafe-manha-influenciam-decisoes-judiciais

10 STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 523.

11 STRECK, Lenio. O ativismo, o justo, o legal e a Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jul-31/senso-incomum-ativismo-justo-legal-lesao-esforco-epistemico-repetitivo

Autores

  • é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos/RS), membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), bolsista Capes/Proez e secretária administrativa da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL).

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