Práticas lucrativas

Em 30 anos, CDC trouxe avanços, mas não coibiu abusos de empresas

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19 de dezembro de 2020, 9h54

O Código de Defesa do Consumidor, que completou 30 anos em setembro, trouxe avanço em diversas áreas, mas não é eficaz em coibir práticas abusivas de empresas. Essa é a opinião de especialistas ouvidos pela ConJur.

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Lenio Streck diz que "é um bom negócio descumprir o CDC"
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De acordo com o relatório Justiça em Números 2020, do Conselho Nacional de Justiça, processos envolvendo assuntos de Direito do Consumidor são os mais numerosos na Justiça Estadual.

Com penas baixas para a violação de direitos do consumidor, o CDC estimula empresas a descumpri-lo, afirma o jurista Lenio Streck. "Entre em juízo. Passe vergonha nos juizados. E se você vencer, receberá R$ 1 mil. Nem pense muito em dano moral. O consumidor só tem 'mero aborrecimento'."

"Na verdade, [o CDC] ao não funcionar, funciona. Desculpem a brincadeira, mas é vantagem enganar o consumidor. Dia a dia o consumidor sofre mais. Mais tecnologia, menos direitos, péssimo atendimento. As empresas fazem um cálculo atuarial. Quantas pessoas irão à justiça? Desses, quantos terão paciência para ir até o fim? E, mesmo que a empresa seja condenada, a pena pecuniária é ínfima. Ou seja, é um bom negocio descumprir o CDC", critica.

O professor de Direito Comercial da Universidade de São Paulo Carlos Portugal Gouvêa destaca que o CDC estimula a criação de demandas repetitivas ao longo do tempo. Dessa maneira, as empresas calculam se é mais vantajoso mudar uma determinada prática ou mantê-la e pagar os custos judiciais decorrentes de ações que a contestam.

Para se chegar a essa conclusão, no entanto, é preciso agregar um grande volume de informações, especialmente sobre o Judiciário — como os diferentes tribunais decidem certas questões, os valores médios de indenizações, entre outros pontos. E isso é algo que apenas as grandes companhias conseguem fazer, avalia Gouvêa.

Tal conjunto de dados, a seu ver, permite que as maiores empresas atuem de forma estratégica, mantendo produtos e serviços de menor qualidade a um preço mais baixo. E cria uma barreira à entrada de pequenas empresas ao mercado. Estas, conforme o professor, têm duas opções para se manter: ou fazem um produto de qualidade e viram uma companhia de nicho ou arcam com os custos dos litígios e pesquisas para atuar como as suas concorrentes. O resultado, diz o advogado, é um mercado dominado por companhias monopolistas que não mudam suas práticas.

"No fim, algumas pessoas entram com ação e recebem pequenas indenizações. Então a qualidade dos produtos e serviços não melhora com o tempo", ressalta Gouvêa.

Ações coletivas
Para que fosse mais eficaz, o CDC deveria regular melhor as ações civis públicas, opina Carlos Portugal Gouvêa. Uma boa ideia, em sua visão, seria adaptar o modelo das class actions, dos EUA.

Dessa forma, um consumidor poderia mover uma ação e convocar outros que tivessem problemas semelhantes a se juntar a ele no processo. Com mais recursos, seria possível pagar investigações e perícias mais aprofundadas, que poderiam levar as empresas a ser condenadas a pagar indenizações que as desencorajariam a manter as práticas questionadas.

Outra sugestão do professor da USP é a criação, no Brasil, dos danos punitivos, também no modelo dos EUA. O instituto obriga as companhias não só a reparar os danos que causaram, mas também a pagar o quanto lucraram com tal prática.

Demanda reprimida
O CDC não é o responsável pelo alto número de ações movidas por consumidores no Brasil, afirma o professor de Direito Civil da USP Otavio Luiz Rodrigues Junior. "O CDC é um exemplo de sucesso legislativo, com reconhecimento internacional. Quem viaja ao exterior percebe o quanto nosso Direito protege os consumidores em comparação ao de outros países."

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Otavio Luiz Rodrigues Junior avalia que privatizações geraram alto número de ações
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O docente aponta duas hipóteses para a quantidade de processos, que foram expostas no livro Direito Civil Contemporâneo – Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais (Forense). A primeira é que, antes das privatizações dos anos 1990, o domínio estatal de diversos setores inibia as pessoas de buscares seus direitos na Justiça. "Com as privatizações, explodiu uma demanda reprimida e, com isso, um número imenso de pessoas buscou o Poder Judiciário para a realização de seus direitos", explica.

A segunda hipótese de Rodrigues Junior é uma falha estrutural das agências reguladoras para prevenir a ida dos consumidores aos tribunais. "As agências não conseguiram atuar preventivamente de modo eficaz em muitos sentidos e, em razão disso, coube ao Poder Judiciário suprir essas omissões e esses equívocos regulatórios", analisa, defendendo medidas de desjudicialização e a retomada das campanhas de conscientização de direitos e de divulgação de rankings de maus fornecedores.

Lenio Streck também entende que as agências reguladoras são ineficazes. Mas afirma que é ilusório pensar que consumidores têm direitos no Brasil.

"Direito do Consumidor hoje é caso de CPI. Veja os sistemas paralelos tipo Reclame Aqui. Ali está uma parte do retrato do fracasso do direito do consumidor. Ah, estou exagerando? Bom, tente ligar agora para a Sky. Ou para um banco. Agora algumas empresas aumentaram a vigarice. Criaram o WhatsApp, que é atendido por um robô. Só isso já deveria dar dano moral ao pobre do utente. Ou seja, hecha la ley, hecha la trampa. Por que não tem código assim na Alemanha ou nos EUA? Porque lá o consumidor é respeitado. Aqui no Brasil é que a lei serve como um bálsamo. O consumidor pensa que tem direito. Só pensa."

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