Limite penal

"Álbum de suspeitos: uma vez suspeito, para sempre suspeito?"

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

18 de dezembro de 2020, 8h53

Spacca
Em mais uma decisão histórica sobre reconhecimento de pessoas, o Superior Tribunal de Justiça absolveu, nesta terça-feira (15/12), Tiago Vianna Gomes, condenado em segunda instância pelo roubo de uma motocicleta ocorrido em 2017, após ter sua fotografia selecionada pela vítima. Com voto do Min. Relator Sebastião Reis Júnior, a decisão alinha-se ao entendimento de que um reconhecimento pessoal não pode ser a única prova para a condenação. Prova dependente da memória que é, o reconhecimento deve, necessariamente, ser combinado a outros elementos de prova, não sendo suficiente para superar o standard probatório elevado que o processo penal impõe1.

Ademais, para além da insuficiência probatória do reconhecimento para a condenação penal, o caso de Tiago também explicita a importância de se refletir sobre as irregularidades relativas à modalidade fotográfica bem como seus nefastos efeitos. O artigo de hoje apresentará uma análise crítica das múltiplas arbitrariedades reunidas sob a prática do chamado “álbum de suspeitos” e, com isso, buscará tratar das providências urgentes à salvaguarda dos cidadãos diante do risco de terem suas vidas dilaceradas por um falso reconhecimento. Vejamos.

Spacca
Até o momento do julgamento do HC 619.327/RJ, Tiago Vianna Gomes já colecionara nada menos do que oito reconhecimentos. Oito. O elevado número que, em princípio, poderia ensejar desconfiança contra Tiago serve, em realidade, para pôr em xeque o procedimento conhecido como “álbum de suspeitos”. Isso porque não há qualquer controle sobre o momento exato em que uma imagem pode passar a constar no álbum; nem acerca da maneira que, em constando no álbum, é exibida às vítimas/testemunhas; tampouco a respeito de quando deva ser obrigatoriamente excluída do “baralho do crime”.

Nestas circunstâncias de patente arbitrariedade, ser novamente reconhecido transforma-se em questão de sorte/azar de alguém; uma verdadeira roleta russa. Em outros textos2, nós, colunistas da Limite Penal e outros autores3, já tratamos das variáveis a partir das quais o próprio sistema de justiça criminal pode contribuir à produção de falsos reconhecimentos (variáveis sistêmicas). Não é o caso de voltar a elas, mas cabe reforçar que a forma como se realiza o reconhecimento influencia o resultado.

“Não basta repetir como ‘mantra’ que os réus foram reconhecidos pelas vítimas e testemunhas; é preciso se perguntar em que condições o reconhecimento se deu”. (Matida; Miranda Coutinho; Morais da Rosa; Nardelli; Lopes Jr; Herdy)4.

Que Tiago tenha sido reconhecido oito vezes diz mais sobre a risco de falsos reconhecimentos que ronda a população preta e pobre brasileira e muito menos sobre a confiabilidade da informação gerada. Sintoma disso é que, mesmo depois da absolvição por um primeiro processo de receptação, a fotografia de Tiago continuou a ser reiteradamente oferecida a vítimas que, com a memória acometida por decurso do tempo, estresse, efeito da raça diferente, entre outras variáveis, acabaram por apontar Tiago como autor dos delitos. Vale ressaltar que as vítimas que reconheceram Tiago chegaram a descrever o autor do fato com base em características físicas destoantes das de Tiago.

Casos como o de Tiago sinalizam que o simples fato de se ter fotografia em álbum de suspeitos pode gerar efeitos devastadores. Causa espécie, portanto, constatar o caminho aberto deixado a um procedimento inerentemente sugestivo, pois, embora o álbum de suspeitos seja peça fundamental do cotidiano investigativo das delegacias Brasil afora, não há, para ele, qualquer previsão legal. Neste cenário de profundas injustiças, a radical negativa de validade do reconhecimento por fotografia tem sido estratégia de parte considerável dos processualistas garantistas. Mas, tal como aqui na Limite Penal já foi afirmado5, a utilização de fotografias/imagens do suspeito é alternativa que não pode ser de pronto descartada. Para que o resultado de um reconhecimento seja minimamente confiável, impõe-se a realização de um alinhamento não sugestivo, no qual nenhum de seus componentes tenha destaque sobre os demais. Como garantir, para cada reconhecimento a ser realizado nas milhares de unidades policiais brasileiras, a disponibilidade de uma pluralidade de pessoas semelhantes entre si? Dito sucintamente, esperar que estas condições sempre se dêem para a realização do ato de forma presencial é, no mínimo, irreal. Realizar o reconhecimento por fotografia não seria, por si só, condenável: fotográfico ou presencial, o reconhecimento é epistemicamente confiável quando promove um alinhamento justo; isto é, apresentando o suspeito ao lado de pessoas com características semelhantes as deles, e que não sejam suspeitas também (dublês, ou fillers). A utilização de dublês evita o risco de que falsos apontamentos gerem, por assim dizer, a suspeita de inocentes.

Neste sentido, a autoridade policial deve ser capaz de justificar a construção de cada um dos alinhamentos que produz, não podendo desprezar a descrição oferecida pela vítima/testemunha. Essa descrição deve ser seu ponto de partida, nunca os estereótipos. Para voltar ao caso em análise, a descrição da estatura do real culpado levaria à lógica exclusão de Tiago, uma vez que havia a considerável diferença de 15 cm entre eles. Mas antes disso, a autoridade policial também deve ser capaz de explicar por que razão determinada fotografia faz parte de seu catálogo. Que fique claro: são desafios distintos, porém entrecruzados. Cronologicamente, o primeiro desafio diz sobre a inclusão e a exclusão de fotografias no catálogo daquela unidade policial; o segundo sobre a inclusão concreta daquela fotografia em um alinhamento específico. A ausência de critérios para o primeiro e de protocolos para o segundo conforma o arbitrário estado de coisas atual, no qual o reconhecimento de pessoas funciona como porta aberta à seletividade penal6. Como sublinhado por Machado, Moretzsohn e Burin, em artigo recente:

“(…) um ato reconhecimento pessoal conduzido de forma sugestiva, ainda que sem dolo ou má-fé do responsável, contamina não somente a memória humana do reconhecedor, mas a própria atividade estatal de persecução criminal, na medida em que repercute diretamente na esfera probatória do caso penal”.

É lastimável constatar que no cenário atual, casos como o de Tiago estejam fadados a serem regra, e não exceção. Luiz Carlos da Costa Justino7, Bárbara Quirino8 e Tiago Vianna Gomes são a ponta do iceberg chamado “debilidade probatória oriunda das provas dependentes da memória”. A exposição aleatória de fotografias que sequer se pode explicar de onde surgiram e por quanto tempo permanecerão sendo utilizadas, representa, em muitos casos, a única providência investigativa tomada. A prática de exibir fotografias aleatoriamente às vítimas e sem a observância dos protocolos aplicáveis ao ato de reconhecimento vem se tornando a primeira – e muitas vezes a única – providência investigativa nos crimes contra o patrimônio. Ao invés de serem empregadas diligências necessárias à correta investigação do crime (v.g., a efetivação de ordens de serviço ao local do fato para a procura de filmagens da área e busca de vestígios), a apresentação do álbum de suspeitos passa a ser a rotina policial na apuração da autoria.

Em síntese, a opção deliberada de se supor que o autor do crime está em um catálogo de pessoas previamente categorizadas como “passíveis de desconfiança” dá causa à perda de importantes fontes de prova, as quais poderiam conduzir à identificação dos verdadeiros responsáveis pela prática do fato. Não é difícil concluir que a referida conjuntura afeta sobremaneira a expectativa de se reunir um conjunto informativo suficientemente confiável, o qual seja capaz de dar suporte a conclusões válidas sobre os fatos. Em vista disso, como numa reação em cadeia, compromete-se toda a estrutura lógica que conduz à formação do juízo fático, o que envolve a frustração do ideal de exercício responsável da função acusatória e a falta de condições mínimas para o exercício de uma defesa efetiva. Decisões cujos raciocínios probatórios sejam realizados a partir de tão questionáveis premissas apresentam grande potencial de engrossar as estatísticas dos erros judiciais.

Com essa preocupação em mente, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) criou o Prova sob Suspeita. Em seu bojo, um grupo formado por advogados e pesquisadores atua em diferentes frentes — como advocacy, formação e litigância estratégica (entre seus membros, as duas subscritoras deste artigo). Interessa ao Prova sob Suspeita destacar e remediar as debilidades probatórias porquanto peças fundamentais à lógica punitivista e eficientista de um processo penal que, a despeito das promessas constitucionais firmadas em 88, ainda serve a um projeto antidemocrático de sociedade e de Estado. Basta olhar os dados relativos à população carcerária brasileira para se constatar a seletividade penal9. Nossa hipótese é de que seletividade penal e debilidade probatória caminham lado a lado.

No caso de Tiago, o IDDD atuou como amicus curiae, ao lado da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. A partir de contato iniciado pelos combativos defensores Rafaela Garcez e Pedro Carrielo, o Prova sob Suspeita organizou suas linhas argumentativas no sentido de apontar a ausência de confiabilidade epistêmica do álbum de suspeitos, já que responsável pela condenação específica de Tiago, mas também de tantos outros. Além disso, foram esmiuçadas as variáveis que inegavelmente são capazes de contaminar a memória humana e que comprometeram o reconhecimento de Tiago ‒ são elas: a rápida duração do evento, o efeito da raça diferente (a vítima é branca; o agente do delito é negro), o efeito advindo do foco na arma e o estresse da vítima.

Em definitivo, casos como os de Tiago servem a evidenciar o pouco — o nada, a bem dizer — que é tido como suficiente para condenações criminais no Brasil. Sintomático disso é o fato de que Tiago tenha recebido a notícia de sua absolvição pelo STJ no mesmo dia em que esperava pelo início de duas audiências relativas a novos processos, de novo por roubos; de novo com seu reconhecimento a partir de álbum de suspeitos. Até quando? Por tudo isso é que, além da litigância estratégica, o Prova sob Suspeita atualmente se dedica à criação de protocolos para as provas dependentes da memória (reconhecimento e provas orais), bem como desenvolve curso de capacitação e aperfeiçoamento de seus associados ‒ e, muito em breve, de outros operadores jurídicos. É preciso entender de uma vez por todas: num cenário como esse, o que serve de prova é que está sob suspeita.

O título do texto foi o título do item III da peça de amicus curiae, elaborada pelo Prova sob Suspeita (IDDD) no caso de Tiago Vianna Gomes. O documento foi peça escrita a diversas mãos e especificamente o título do item III é de autoria de Domitila Kohler.  O inteiro teor da peça pode ser acessado por: http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/12/amicus-tiago-vianna-final-sem-assinaturas.pdf


1 Matida, J. “Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção”. In Caldas, D.F.; Andrade, G.L.; Rios, L.C. (Org). Arquivos da Resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP 2018, Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019, p. 96. Sobre standards probatórios, ver NARDELLI, Marcella Mascarenhas. Presunção de inocência, standards de prova e racionalidade nas decisões sobre os fatos no processo penal. In: SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo Rudge; MADURO, Flávio Mirza. Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018; Matida, J.; Morais da Rosa, A. “Para entender standards probatórios a partir do salto com vara”, 2020. Conjur, Limite Penal. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/limite-penal-entender-standards-probatorios-partir-salto-vara

2 Matida, J. “O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal”, 2020. Conjur, Limite Penal. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal?pagina=2

3 Cecconello, W.W.; Stein, L.M. “Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos”. Avances en Psicología Latinoamericana, Bogotá, v. 38, n. 1, 2020; Machado, L.M.; Moretzsohn, F.; Burin, P. “O reconhecimento de pessoas e o papel do delegado na condução das investigações”, 2020. ConJur, Academia de Polícia. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-dez-15/academia-policia-reconhecimento-pessoas-papel-delegado-conducao-investigacoes?fbclid=IwAR1pzx50AtYOThDKcK1j8VDbSNlc7nK-38DZptNMjMJBLM4P-E51UpgLvhM

4 Matida, J.; Miranda Coutinho, J. Nelson de; Morais da Rosa, A.; Nardelli, M. Mascarenhas; Lopes Jr., A.; Herdy, R. “A prova de reconhecimento de pessoas não será mais a mesma”, 2020. ConJur, Limite Penal. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal

5 Matida, J. “O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal”. ConJur, Limite Penal. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal.

6 Matida, J. “O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal”. ConJur, Limite Penal. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal

7 Sobre o caso de Luis Carlos da Costa Justino, ver: https://www.conjur.com.br/2020-set-06/juiz-manda-soltar-musico-critica-reconhecimento-fotografico

8 Sobre o caso de Bárbara Quirino, ver: https://ponte.org/barbara-querino-a-babiy-como-a-justica-condenou-uma-jovem-negra-sem-provas/

9 Preto/as e pardo/as compõem cerca de 52,7% da população carcerária segundo dados do Infopen relativos a jun/2020. Ainda é preciso destacar a falta de informações quanto à raça de cerca de 20,4% dos custodiados. Acesso por: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMjU3Y2RjNjctODQzMi00YTE4LWEwMDAtZDIzNWQ5YmIzMzk1IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9

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