Opinião

É necessária uma definição sobre os vetos ao Novo Marco Legal do Saneamento

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18 de dezembro de 2020, 6h33

Transcorridos mais de quatro meses desde a publicação da Lei nº 14.026/2020, que institui o chamado Novo Marco Legal do Saneamento Básico, permanece a indefinição sobre o destino dos dispositivos que foram vetados pelo presidente da República quando da sanção da nova lei, em julho deste ano.

Após longa tramitação no Congresso Nacional e inúmeras discussões de ordem técnica e política, o então projeto de lei restou aprovado pelo Poder Legislativo, com a inclusão de previsões polêmicas ante o impacto conceitual que causariam na proposta original. A possibilidade de derrubada dos vetos presidenciais a tais artigos coloca em xeque algumas previsões da lei consideradas centrais.

Se por um lado a universalização do saneamento é tema que merece urgência na implementação e depende da estabilidade do novo marco legal, por outro lado o cenário de indefinições em temas centrais da nova legislação gera insegurança jurídica e entraves não só à efetivação dos novos modelos projetados pelos titulares dos serviços públicos, mas também aos arranjos de investimentos da iniciativa privada.

Entre as previsões cujos vetos não se sabe se persistirão está o artigo 20, inciso II, alíneas "b" e "c" [1], relativo à contratação dos serviços envolvendo resíduos sólidos, tema de extrema relevância pelas repercussões econômicas, sociais e ambientais. Os citados dispositivos do artigo 20 aduziam que algumas previsões do Novo Marco Legal seriam aplicáveis apenas aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, mas o veto presidencial afastou essa previsão, objetivando a isonomia entre os eixos de serviços. Dessa forma, seguiriam aplicáveis também a resíduos sólidos as cláusulas definidas pela nova lei como essenciais aos contratos, tais como metas de expansão dos serviços e de eficiência no uso de recursos naturais e de metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados por ocasião da extinção de contratação.

Além disso, se o veto não for derrubado, tem-se que a realização de contrato de concessão, por meio das regras licitatórias, será requisito para que entidades não integrantes da administração do titular dos serviços públicos possam prestar serviços envolvendo resíduos sólidos. Veja-se que a manutenção (ou não) do veto impactará amplamente os contratos a serem celebrados sobre o tema, sendo reprovável que a consolidação da regra incidente, por meio da apreciação do veto presidencial, aguarde por tanto tempo. Nesse ponto, aliás, parece salutar a manutenção do veto e o afastamento da disciplina de tais contratações por contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária, situação que incentiva a concorrência e a fixação de contratações em modelos mais estáveis no longo prazo e evitando-se que interesses meramente políticos se sobressaiam à melhor técnica e preço.

Outra previsão relevante e que foi objeto de veto refere-se ao artigo 21 [2] do Novo Marco Legal, o qual estipulava a competência municipal para licenciar as atividades, empreendimentos e serviços de saneamento básico, determinando o licenciamento estadual apenas quando inexistir órgão de licenciamento municipal. Ora, sendo a licença ambiental documento essencial para o exercício das atividades e instrumento capaz de avaliar e mitigar impactos ao meio ambiente daí decorrentes, é premente garantir segurança jurídica quanto aos entes legitimados para o processamento dos pedidos de licenças relacionadas às atividades de saneamento básico como aterros sanitários, áreas de transbordo de resíduos sólidos urbanos e estações de tratamento de água e esgoto.

Nesse ponto, tem-se como fundamental a manutenção do veto, a fim de se evitar ulteriores discussões sobre a constitucionalidade do dispositivo que atribui a competência aos entes municipais. Assim pois as competências para fins de licenciamento ambiental estão definidas com base na Constituição Federal e, ainda, a Lei Complementar nº 140/2011, ao regulamentar o texto constitucional, fixou aos municípios a competência para o licenciamento de atividades ou empreendimentos de impacto ambiental local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente [3]. Ou seja, a previsão do novo marco que restou vetada estaria em descompasso com tais premissas e com o modelo hoje estabelecido para licenciamento de tais atividades. Isso não significa, no entanto, que atividades de saneamento de impacto local assim definidas pelos conselhos estaduais sejam objeto de licença municipal.

Vale, ainda, tratar de dois vetos que dizem respeito aos chamados contratos de programa. Os vetos aos parágrafos 6º e 7º do artigo 14 têm justificativas jurídicas e econômicas. Do ponto de vista legal, pregam uniformidade jurídica no sistema de concessões e permissões de serviços públicos que estão disciplinados na Lei Geral de Concessões — Lei 8787/95 —, que tem sua fonte constitucional no artigo 175 da Constituição da República. Essa uniformidade sistemática é indispensável para dar segurança jurídica aos investidores, em especial porque o próprio contrato de parceria público-privada a que se refere a Lei 11.079/2004 foi concebido sobre o regime de concessões, ainda que um dos modelos, o de concessão administrativa, que é mais propriamente uma prestação de serviço, tenha sido artificialmente jogado para dentro do conceito de concessão para que se pudesse valer das regras próprias da Lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs). Mas é relevante referir que o veto traz conforto em relação aos possíveis modelos a serem utilizados nas licitações e contratos que disciplinarão as relações jurídicas entre o poder concedente, os concessionários e os usuários dos serviços de saneamento. Apesar disso, não está diretamente afastada a utilização de alguns modelos de contratação que hoje podem ser utilizados, como o da locação de ativos, desde que a regra do respectivo poder concedente dê abertura a esse tipo de contratação.

Já sob a ótica econômica, o veto foi adequado. Fazer a segregação da receita oriunda de tarifa e de outras fontes, em contratos de longa duração, demandaria a realização de cálculos intermináveis, que poderiam ter que ser resolvidos no Poder Judiciário, em morosos processos. Ademais, como se sabe, a tarifa é preço público, e como tal, leva em consideração todos os elementos de custo e de remuneração dos concessionários, mas também elementos jurídico-políticos que podem ter impacto no preço cobrado dos usuários do serviço público. Não faltam exemplos no modelo federativo brasileiro de entes concedentes que suspendem aumentos tarifários que seriam necessários por razões de ordem fática ou política. Se um reajuste não foi feito no momento estipulado contratualmente, isto já traz consequências em todo o contrato e nos cálculos futuros a serem levados em consideração.

Ainda do ponto de vista econômico, há já natural dificuldade na avaliação dos bens reversíveis, que são aqueles adquiridos pelos prestadores dos serviços e que reverterão ao poder concedente ao fim do contrato. Também aqui a possibilidade de intermináveis discussões acerca do valor desses bens, tornaria inviável a utilização desses parágrafos. A regra vedada contrastava com a realidade. Raríssimos municípios brasileiros teriam condições de assumir a prestação dos serviços. Deixar esse dispositivo, com tal grau de dificuldade jurídica de aplicação, só serviria para dar discurso político a quem não quer enfrentar os desafios que a realidade traz no âmbito do saneamento.

Também de grande impacto foi o veto no artigo 16 [4]. O veto aqui traz uma enorme dificuldade para as empresas públicas e sociedades de economia mista estaduais, prestadoras do serviço público municipal de saneamento básico, que tinham a perspectiva de manter os seus contratos e atuar por mais 30 anos nos municípios em que prestam suas atividades, sem a necessidade de se submeter a procedimento licitatório. A justificativa do veto foi o excessivo tempo de prorrogação previsto na regra e a limitação à livre concorrência, que é fundamento para a concessão dos serviços de saneamento. A partir de agora, essas entidades da administração indireta estadual terão dificuldades em negociar com os municípios prazos e condições para a manutenção dos seus serviços. E, ainda que não tenha afirmado expressamente, o veto dá o adequado tratamento constitucional à obrigatoriedade de estarem essas entidades, dotadas de personalidade jurídica de Direito Privado, em igualdade de condições com a iniciativa privada na prestação dos seus serviços, tendo em vista o caráter de excepcionalidade da exploração de atividade econômica direta pelo poder público e a regra expressa do artigo 173 e parágrafos, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Aliás, não é demais lembrar que a Lei 13.303, de 2016, que disciplinou as empresas públicas e sociedades de economia mista, destacou esse caráter de Direito Privado e fortaleceu os mecanismos de controle interno e de compliance para tentar diminuir a tentação de captura política dessas entidades. Nesse instrumento normativo, o necessário atendimento aos padrões de mercado está afirmado e o alinhamento com os normativos das sociedades comerciais impostos. A empresa pública e a sociedade de economia mista que não se modernizarem e não tiverem eficiência e competitividade, no âmbito do saneamento, provavelmente tenderão a ser privatizadas.

Da mesma forma, o veto traz conformidade à obrigatoriedade de licitação como condição para a delegação da prestação dos serviços públicos por concessão ou permissão, como estabelece o já citado artigo 175 da Lei Maior. A extensão do prazo por período tão longo, como previsto no projeto originário, inviabilizaria a concretização daquela regra tão importante para a execução por terceiros dos serviços públicos.

O veto, no entanto, não veio acompanhado de algum projeto que dê uma tranquila transição no sistema. Se 30 anos é muito tempo, tempo nenhum é fator de insegurança. A realidade da imensa maioria dos municípios brasileiros nos demonstra que eles não terão condições de rapidamente estabelecer editais que levem à realização de concessões comuns ou parcerias público-privadas para suceder o serviço realizado majoritariamente por contratos de programa. Até que modelos e estruturas nucleares de editais e contratos sejam editados qualitativa e quantitativamente pela Agência Nacional de Águas (ANA), de forma a ajudar municípios na adequação desses modelos a seus editais, levará um bom tempo, por melhor que possa vir a ser a atuação da agência nesse desiderato. Isso tudo sem que se descuide da adequação das regras de regência do sistema pelo município, pela disciplina relacionada à forma como a regulação do serviço se dará, a preparação do edital, a realização de audiências públicas e tantas outras providências que necessariamente deverão ser tomadas para que o serviço não seja objeto de captura pelo concessionário em desfavor do usuário.

Assim, um projeto de lei que seja encaminhado estabelecendo um prazo razoável de manutenção dos contratos de programa, que viabilize uma transição segura, enquanto se preparam os editais e minutas de contratos das futuras concessões, seria uma medida que mitigaria a lacuna deixada pelo veto em relação aos municípios que menores condições estruturais possuem. Essa regra transitória poderia estabelecer prazos máximos realistas e punição aos que o descumprirem, para evitar que a norma se torne ineficaz.

A apreciação desses vetos é de suma importância para o sistema de saneamento no Brasil. Espera-se que o Congresso Nacional leve em consideração a expectativa que municípios, iniciativa privada e investidores têm em relação a esse projeto transformador e tão relevante para a sadia qualidade de vida dos brasileiros, analisando com atenção e o quanto antes o tema.

 


[1] "Art. 20. Aplicam-se apenas aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário os seguintes dispositivos: I – da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, o § 8º do art. 13; II – da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007: a) o art. 8º; b) o art. 10; c) o art. 10-A."

[2] "Art. 21. Compete ao Município promover o licenciamento ambiental das atividades, empreendimentos e serviços de saneamento básico. § 1º Se não existir órgão municipal para cumprimento do estabelecido no caput deste artigo, será competente o órgão de licenciamento ambiental estadual."

[3] "Art. 9o São ações administrativas dos Municípios: […] XIV – observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade."

[4] "Art. 16. Os contratos de programa vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022. Parágrafo único. Os contratos reconhecidos e os renovados terão prazo máximo de vigência de 30 (trinta) anos e deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 10-A e a comprovação prevista no art.10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, sendo absolutamente vedada nova prorrogação ou adição de vigência contratual."

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