retrospectiva 2020

O excepcional ano de 2020 e os sindicatos

Autor

  • Antonio Carlos Aguiar

    é sócio do Peixoto & Cury Advogados mestre e doutor em Direito do Trabalho titular das Cadeiras 48 e 28 das Academias Brasileira e Paulista de Direito do Trabalho e desenvolvedor de jornadas no ecossistema trabalhista.

18 de dezembro de 2020, 10h03

Que 2020 é um ano excepcional ninguém tem dúvidas. Resta saber o viés dessa excepcionalidade: como e para quem, uma vez que ser fora do comum, ir além dos limites do estabelecido ou do que é normal não necessariamente é (apenas) ruim. Pode, também, ser tido como algo que está muito acima do padrão ou da qualidade normal, incrível ou extraordinário.

Com tanta doença, tristeza, mortes e privação do convívio social, pode até parecer sombria e advinda de uma espécie de humor desprovido de graça essa afirmativa inicial.

Mas não é.

Faz parte pura e simplesmente de uma análise de contextualização social e funcional de uma instituição que, até o início da pandemia, era vista como terminativa, sem função ou mesmo identificação real com o mundo e a sociedade moderna: o sindicato. Quase que cheirava a mofo.

Muitos eram defensores da sua extinção.

Afinal, padrões de trabalho, formas de contratação e tipos de prestação de serviços dentro de uma economia envolta em camadas, como uma espécie de cebola, compartilhada, colaborativa, solidária, cocriativa, de dádiva e destruída, tinha dificuldades de acomodar um ente de representação "ativa" e política que ainda mantinha muitos resquícios da sua origem, que, no Brasil, se apresenta nos idos dos anos 1900.

O Decreto nº 979, de 6 de janeiro 1903, do presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves [1], disciplinava (artigo 2º) que: "Os sindicatos profissionais se constituem livremente, sem autorização do governo, bastando, para obterem os favores da lei, depositar no cartório do registro de hipotecas do distrito respectivo, três exemplares do estatuto (…)"; e no artigo 5º: "Os sindicatos que se constituírem com o respeito de harmonia entre patrões e operários, como os ligados por conselhos permanentes de conciliação e arbitragem, destinados a dirimir as divergências entre o capital e o trabalho (…)".

E assim foi passando o tempo. E os sindicatos foram, sem mudanças bruscas de atuação e desenvolvimento programático, também caminhando.

Atravessaram marcos temporais, como a Revolução de 1930, Estado Novo, regime militar, redemocratização, nova Constituição, impeachments e uma série de intempéries sociais e econômicas brasileiras, de maneira quase incólume, até chegar o ano de 2017 e se decretar o fim da contribuição sindical obrigatória por meio daquilo que ficou sendo denominado como reforma trabalhista.

Um abalo sísmico, uma sentença (para muitos sindicatos) de morte. Outros, grandes, sofreram (muito), mas, sobreviveram, à custa de muito sacrifício: "O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC teve seus recursos obtidos por meio do imposto reduzidos de R$ 5,94 bilhões em 2017 para R$ 46 milhões no ano passado (5 de março de 2019)" [2].

Estariam mesmo os sindicatos fadados à extinção ou a um agonizante papel de coadjuvante, com pouca expressão?

Tudo levava a crer que sim, até que um caos mundial se instalou.

E olha quem foi "de primeira" lembrado: o sindicato. O governo federal teve de agir com urgência, diante da instalação de uma calamidade pública instalada e legalmente reconhecida. O que fez? Baixou medidas urgentes. E dentro delas convocou expressamente os sindicatos, para que celebrassem acordos com o fito de preservar empregos e renda dos trabalhadores.

Que ironia. Por pouco os sindicatos não se apresentaram para esse desígnio utilizando-se daquela conhecida lógica chelmita:

"Conta-se que dois homens de Chelm saíram a passear. Um trazia consigo seu guarda-chuva e o outro não. No meio do caminho começou a chover.
— Abra o seu guarda-chuva, sugeriu aquele que estava sem
— Não vai adiantar nada, respondeu o outro.

 — O que você quer dizer com 'não vai adiantar nada'? Vai proteger-nos da chuva!

— É que o guarda-chuva está tão cheio de furos que mais parece uma peneira!" [3].

Ainda bem que havia um guarda-chuva sindical ainda sem tantos furos… Já no começo da pandemia, no mês de abril, chegava a quase 300 mil o número de acordos coletivos de trabalho para redução de salários e jornada ou suspensão do contrato de trabalho [4].

A partir de então, os sindicatos começaram a, mais uma vez, se destacar. Celebraram acordos dos mais variados, inclusive no que comporta a modelos de trabalho remoto, ajuda de custos para home office e outros mecanismos diferenciados de enfrentamento deste novo momento, passando, até por apoio psicológico.

Na dificuldade de acordos diretos com as empresas, se utilizaram do Judiciário, mas não como depósito de ações, por meio de um posicionamento beligerante. Ao contrário, o Judiciário funcionou (e muito bem) como mediador, a fim de que os próprios interessados alcançassem soluções auto compositivas.

A comunicação com os trabalhadores se tornou muito mais ágil. Assembleias presenciais foram substituídas por modelos digitais, grupos de WhatsApp se mostraram ágeis, velozes e produtivos nos quesitos comunicação e ação.

Diversidade passou a fazer parte da pauta de atuação. O sindicato descobriu que pode atuar em conjunto com coletivos sociais que transitam pela mesma raia de representação em que ele atua.

Foi descortinado um mundo novo e diferente. Um mundo de carros elétricos e hambúrgueres de planta, mas onde os sindicatos ainda têm um papel fundamental de representação. As pessoas, de carne e osso, estão ávidas pelos seus serviços, que ainda não podem ser substituídos por hologramas provenientes de plataformas como a StoryFile, que cede tecnologia ao AskSanta, em que o Papai Noel responde a todas as perguntas formuladas virtualmente pelas crianças, mesmo que para se cadastrar o usuário precise de uma conexão, uma tela e um adulto do lado [5].

Esse é tão somente o início de um ressurgimento representativo. Uma forma de enxergar e se inserir no novo. Como protagonista inovador, empoderando as pessoas que trabalham no mundo real, que vai, inclusive, muito além de um vínculo de emprego. O gênero trabalhador, tal como aquele ligado ao sexo, não é binário. A família do Direito do Trabalho evoluiu, se transformou e cresceu muito.

Os sindicatos estão diante de "um mundo para ser despertado, um mundo mostrando que as contradições íntimas são as que levam à claridade do saber. Aprende-se na magia das contradições. Apreende-se no sonho" [6]. "Não se vive a história citando o passado, mas compreendendo-o. Necessitamos trabalhar o passado para impedir que o passado nos trabalhe como uma latência ativa que nos força a repetir situações. O novo não pode surgir sob a forma do velho. O novo surge no instante do despertar do sonho" [7].

A excepcionalidade sindical está exatamente aqui. Na oportunidade de se defrontar e se adaptar com o novo, para renascer em importância, grandeza, plenitude e defesa incondicional dos trabalhadores: todas, todos, todes, empregado(a)(e)s ou não.

 

[1] PINTO, Pazzianotto Almir. 100 anos de sindicalismoLex Editora. São Paulo: 2007, p 09.

[2] Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/03/05/sindicatos-perdem-90-da-contribuicao-sindical-no-1-ano-da-reforma-trabalhista.htm. Acessado em 11/12/2020, às 15h25.

[3] BONDER. Nilton. O Segredo Judaico de Resolução de Problemas9ª edição. Imago. Rio de Janeiro: 1995, pag. 120.

[4] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/governo-registra-mais-de-290-mil-acordos-de-reducao-salarial-ou-suspensao-de-trabalho.shtml#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20de%20acordos%20entre,quinta%2Dfeira%20(9).. Acessado em 11/12/2020, às 15h59.

[5] PAIVA, Marcelo Rubens. Papai Noel VirtualJornal O Estado de S. Paulo, 28 de novembro de 2020.

[6] WARAT. Luiz Alberto. Manifesto do Surrealismo JuridicoEditora Acadêmica. São Paulo: 1988, pag. 21.

[7] Ob. Cit., pag. 101.

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    é sócio do escritório Peixoto & Cury Advogados, doutor em Direito do Trabalho e titular das cadeiras 28 e 48 das Academias Paulista e Brasileira de Direito do Trabalho.

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