Opinião

Novas tecnologias: a caminho de uma Justiça privada?

Autor

  • Marcos José Porto Soares

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná coordenador do Grupo de Pesquisas em Inovação Direito e Novas Tecnologias do MP-PR diretor de Inovação e Novas Tecnologias da Associação Paranaense do Ministério Público e mestre em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona-Espanha e Universidade de Gênova-Itália

17 de dezembro de 2020, 6h05

As novas tecnologias, além de acentuarem a prática privada da Justiça, rompem em alguns casos com o paradigma da coercibilidade, característica do Direito, como monopólio do Poder Estatal.

Nesse caminho destaca-se a plataforma digital de solução de conflitos, estruturada em blockchain, chamada Kleros [1]. Caso não obtido o acordo entre as partes, o caso será julgado por um grupo por pessoas que se cadastram na plataforma (que se tornam "juízes particulares", sem as formalidades legais de um procedimento arbitral). Quem atua como julgador recebe uma remuneração, desde que seu voto tenha sido também o adotado pela maioria. A decisão é executável pelo sistema, diante do technological enforcement, sem intervenção de qualquer órgão externo. Isso se deve ao que se denomina de smart contracts, ou contratos inteligentes. Nos smart contracts, a linguagem das obrigações jurídicas é transmutada para a linguagem informática (código computacional) com capacidade de fazer que a execução (o enforcement) dos compromissos assumidos se dê de forma automática. Na operação que enseja a execução do contrato não há intercessão da Justiça pública, a operação se dá no campo privado. A execução automática afasta a necessidade de o Poder Judiciário intervir para fazer com que o contrato seja implementado.

Outro exemplo é dado por Riikka Koulu em sua obra "Law, Technology and Dispute Resolution: Privatization of Coercion"; trata-se da plataforma online de soluções de conflito usada pelo Icann, responsável pela distribuição e manutenção dos domínios de nome na internet. A plataforma atua em cooperação com a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Wipo) para resolver disputas sobre titularidades de nomes. Após a decisão tomada, se a parte não procurar a Justiça em dez dias, o Icann executa a decisão sobre a titularidade ou o litígio que envolvia o domínio do nome.

A privatização da Justiça não pode ser um fenômeno que assusta os juristas. Tão somente a partir dos últimos 400 anos a sociedade convive com a figura do Estado da forma que se conhece. Antes desse período não se pode falar em lei ou ordem conduzida exclusivamente por meio de um ente estatal.

Na Idade Média, por exemplo, havia círculos de direitos próprios advindos das corporações, da igreja (Direito Canônico) e também dos regimes feudais pluralizados. O Estado disputava, seja com a igreja ou com outras grupos, espaço na criação e aplicação de normas jurídicas. Ainda nessa época os comerciantes, sobretudo em razão da expansão marítima, faziam suas leis, em forma de estatutos, para garantir o adimplemento dos contratos. A ideia da fairness ­— boa-fé objetiva ­— importava, pois se a obrigação era voluntária, a reciprocidade e os mútuos benefícios deveriam ser reconhecidos. Os mercadores construíam suas próprias cortes, cuja sanção poderia ser o esquecimento. Naquele tempo já se usava a reputação — a classificação do negociante com base em seu comportamento anterior — como meio de estimular os comerciantes a cumprirem as obrigações. Nesse período os comerciantes tinham um ordenamento jurídico próprio, distinto das cortes reais.

Somente em 1606, numa revisão de um caso julgado em arbitragem privada, lorde Edward Coke pronunciou que a lei dos mercadores não era uma lei em separado e que poderia ser revertida pelas commom law courts, ou seja, estaria, doravante, sob o controle da realeza [2].

O que é um grande equívoco pois da história se infere que o ideal de efetivação da Justiça sempre existiu, como ainda existe fora do campo da soberania estatal.

São várias as concepções de Justiça: desde Aristóteles aos utilitaristas como Benthan e Stuart Mill, aportando na defesa da igualdade material e da dignidade humana por Rawls e Kant. O que todas elas sinalizam é que o valor Justiça não está adstrito a um campo da vida social ou ramo científico, mas a todas as áreas da vida humana, devendo ser o norte para as decisões individuais ou coletivas.

A Justiça, como à primeira vista possa aparecer, não é um local físico, o fórum, o local onde se resolve os conflitos. Ela tem os seus próprios caminhos, de tal maneira que numa visão prática está mais ligada à ideia de atividade e serviço do que de um lugar [3]

Os conflitos entre as pessoas é algo inato da sociedade. A vida em harmonia e a perpetuação da espécie humana — base comum da Justiça – não são ambição apenas do Direito, mas de quase todas as ciências. O Direito é apenas um dos métodos de pacificação social.

Formas voltadas a tornar o mundo um lugar melhor vão desde as crenças espirituais que orientam a se comportar bem, respeitar a natureza e amar ao próximo aos métodos científicos que são desenvolvidos para evitar ou resolver conflitos. Neste último sentido destacam-se alguns tradicionais, como mediação, conciliação, contratos e os procedimentos em cortes judiciais, e os mais modernos, ligados às novas tecnologias, como as plataformas privadas online de solução e os smart contracts.

O que torna o Direito um sistema próprio são características identificadas em muitos anos de história. A primeira é que ele é estruturado por normas abstratas. Não faz parte do mundo jurídico o estudo de uma ordem concreta desligada de uma norma geral. A segunda é a exterioridade, ou seja, as normas não podem incidir sobre a consciência ou pensamento do homem (esse é um plano psicológico e moral), mas tão somente a um comportamento externo. E a terceira é a coercibilidade. Com ela o Direito dá um passo além da moral e da ética, sancionando quem viole as suas normas. Da coercibilidade é que se extrai a ideia de obrigatoriedade ao cumprimento das normas. A jurisdição, por seu instrumento, o processo, é o campo da atuação prática da norma abstrata, e que impõe a sua obediência. É através da atuação jurisdicional (pública) que a norma se torna coercitiva.

O Direito, pode-se dizer, atualmente é uma forma pública, organizada pelo Estado de realizar a justiça. Pois, com institucionalização do que se passou a chamar de Estado Moderno, tornou-se difícil desvencilhar o Direito do ente Estado. Afinal é o Estado, por meio do Poder Legislativo, que cria as leis (as normas gerais e abstratas), e do Poder Judiciário, que forma uma sentença (inicialmente uma norma concreta, mas com aptidão de tornar-se um precedente vinculante, norma igualmente geral e abstrata). E é mediante o Poder Judiciário que o Estado faz imperar a sua força coercitiva na aplicação das normas, as quais devem ser obedecidas sob pena da execução forçada de seus comandos.

Não é pelo fato de atualmente o Direito ser estruturado pelo Estado que todas as formas de justiça também serão de natureza pública. Pois não é ele o único meio para se alcançar a justiça. Existem várias outras formas.

Se uma pessoa perguntar qual o mais significante evento das últimas décadas no campo da resolução civil de disputas, outra poderá responder facilmente que é a privatização. "Nós estamos assistindo um surgimento da substituição do sistema público de adjudicação com várias alternativas privadas de resolução de disputas formas como a modalidade principal de solucionar os conflitos entre as pessoas. Para contextualizar essa tendência não está confinada em uma jurisdição isolada ou numa área específica do mundo, mas acontecendo em todo lugar", assinala Carlo Giabardo [4].

O estudo da relação entre tecnologia e Justiça é importante para compreender como os meios de prevenção e solução de conflitos se firmam e crescem na esfera privada, e como o Direito e o sistema público de Justiça deverão absorver as novas tecnologias para permanecerem ativos, com mais eficiência, sem perder a identidade.

 


[2] IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Tercero em Discordia: Jurisdicción y Juez Del Estado Constitucional. Madrid: Trotta, 2015, p. 49

[3] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford, United Kingdom: Oxford University Press, 2019, p. 95-98.

[4] GIABARDO, Carlos Vittorio. Private Justice: The Privatisation of Dispute Resolution and the Crisis of (July 1, 2020).Wolverhampton Law Journal, Vol. 4, 2020, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3679932.

Autores

  • é promotor de Justiça, coordenador do Núcleo de Inovação e Tecnologia da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná e mestre em Razonamiento Probatorio pela Universidade de Girona e Universidade de Gênova.

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