Interesse Público

O 171 que deve ser evitado na nova Lei de Licitações

Autores

  • Fabrício Motta

    é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

  • Victor Amorim

    é advogado consultor jurídico doutorando em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e professor dos cursos de pós-graduação do IDP do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do Instituto Goiano de Direito (IGD).

17 de dezembro de 2020, 8h01

A aprovação recente de uma "nova" Lei de Licitações pelo Senado Federal tem merecido a atenção e despertado preocupações em agentes públicos e nos particulares interessados no complexo universo das contratações públicas [1]. Não obstante a importância e a euforia de alguns com a notícia, é preciso atentar para a análise jurídica e política que serão feitas pelo presidente da República acerca do projeto aprovado pelo Congresso Nacional, sendo cabíveis e até esperados vetos a dispositivos específicos do texto, sobretudo se considerarmos a extensão do normativo (190 artigos) e o maximalismo da abordagem, chegando a abranger, sob o manto da legislação primária, matérias tradicionalmente tratadas por regulamentos [2].

Spacca
No novo tratamento normativo dispensado ao controle das contratações, a previsão contida no artigo 171 chama a atenção — em especial por ter passado incólume no Senado, após inclusão no substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados em setembro de 2019:

"Artigo 171  Os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e a propiciar segurança jurídica aos interessados.
Parágrafo único. A decisão que não acompanhar a orientação a que se refere o caput deste artigo deverá apresentar motivos relevantes devidamente justificados".

A necessidade de segurança jurídica é tão inquestionável que seria prescindível tal referência, notadamente diante dos preceitos da LINDB [3]. Entretanto, o texto proposto confere competência normativa anômala ao Tribunal de Contas da União, a ser materializada por meio de enunciados abstratos apriorísticos, decorrentes de uma pretensa consolidação dos entendimentos da corte. A previsão é inconstitucional e merece ser objeto de veto.

Partindo da sistemática do controle externo estabelecida na Constituição Federal, percebe-se não haver qualquer suposição ou indicação de proeminência do TCU em face dos demais Tribunais de Contas, estaduais e municipal. Há diferente campo material para atuação de cada corte, notadamente em razão da autonomia dos entes da federação. Pressupõe-se, assim, a independência entre os Tribunais de Contas, mesmo nos casos de atuação concomitante, quando se está diante de aplicação de recursos de diferentes origens federativas. O dispositivo também afronta o artigo 74 da Constituição por mitigar a autonomia de atuação dos órgãos de controle interno que, muito embora devam auxiliar o controle externo, possuem espaço próprio de atuação exercido, em regra, ex ante. Muito embora seja recomendável a atuação dos controladores internos em harmonia com as orientações dos tribunais de contas, os obstáculos e dificuldades reais dos casos concretos podem direcionar a atuação em sentido distinto daquela sumulada pelo controle, em benefício do interesse público (o que não isenta a atuação do controle interno de posterior escrutínio pelo Tribunal de Contas, no limite de suas atribuições) [4].

Ainda que o texto do artigo 171 se refira a "súmulas" (e não a todo e qualquer julgado da corte de contas), o fato é que se tratam de enunciados textuais de caráter abstrato-normativo. Logo, vincularão, ope legis, os agentes públicos quando do enfrentamento de situações futuras, independentemente das características e do contexto do caso concreto. Daí, estar-se-ia a retirar toda liberdade interpretativa do agente público e a fechar os caminhos alternativos não reputados pelo TCU como viáveis.

A interpretação que se propõe não implica em qualquer demérito ao TCU ao contrário, aquela corte reconhecidamente desempenha papel essencial no controle da Administração e possui corpo técnico de excelência. Entretanto, notadamente em matéria de licitações e contratos, o TCU, nas últimas duas décadas [5], tem demonstrado tendência expansiva e até mesmo invasiva, em determinados casos , mitigando a própria segurança jurídica que se quer proteger. A desconsideração de interpretações jurídicas razoáveis por parte do gestor pode ser caracterizada como indeferência, cristalizando entendimentos gerais que não se adequam à natural variedade de casos concretos vivida em cada um dos milhares de órgãos e entidades públicas. Ou seja, estaríamos diante de "supersúmulas", dando respostas antes mesmo das perguntas [6]. Para tanto, já temos a experiência institucional observada na edição das súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal, destacando-se apenas que tal possibilidade é expressamente prevista no artigo 103-A da Constituição Federal.

Sob o prisma histórico, é salutar registrar a existência de discussão similar à atualmente vivida com o artigo 171. No caso, o próprio Plenário do TCU, em sessão no dia 13/8/1987, no bojo do Processo TC 2.084/1987 [7], travou discussão sobre a abrangência e os limites da suposta competência normativa da corte prevista no §2º do artigo 79 do Decreto-Lei 2.300/1986 [8], a norma geral sobre licitações e contratos administrativo revogada posteriormente pela Lei 8.666/1993. Em seu voto, expôs o ministro Ivan Luz:

"(…) Em nenhum momento ao legislador constitucional ocorreu a hipótese de atribuir ao Tribunal de Contas funções regulamentadoras das leis, 'instruções complementares' a estas. Não lhe compete, desenganadamente, normatizar ‘procedimentos licitatórios’ ou matéria relativa a ‘contratos administrativos’. O que lhe cabe, isso sim, é, no exercício de suas funções jurisdicionais, interpretar as normas que regulam as atividades da administração federal para realizar o controle de legalidades de seus atos e o julgamento, consequente, da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens, dinheiros e valores públicos (…). Em conclusão e pelos motivos expostos, não me parece deva o Tribunal expedir as instruções complementares de que trata o §2º do artigo 79 do Decreto-lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1986" (grifos dos autores).

Sancionado o artigo 171, sem sombra de dúvida, o TCU emergirá como a grande e principal — fonte produtora de normas em matéria de licitações e contratos, não havendo sequer delimitação da força vinculativa das súmulas à lógica da cisão entre "normas gerais" e "normas específicas" (e alcançando indistintamente, por essa razão, a Administração de todos os entes federados). Trata-se de um verdadeiro paradoxo, no qual a "norma geral" dota um órgão sem representação democrática da competência de edição de enunciados textuais vinculativos que, inclusive, poderão se referir à "normas específicas", mas que irão atrelar Estados e municípios.

Registre-se que o próprio TCU já se atribuiu poderes semelhantes àqueles comentados neste artigo, consagrados no verbete de sua súmula nº 222: "Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios". Viável fosse a juridicidade desta súmula, talvez as decisões do TCU que envolvessem orçamento, proteção ao patrimônio histórico e responsabilidade por dano ao meio ambiente, por exemplo, igualmente deveriam ser acatadas por todos os administradores públicos do país, uma vez que se trata de competências concorrentes às quais cabe à União regular com normas gerais. Entretanto, é fácil perceber que o verbete desta súmula não resiste a um simples confronto com a Constituição.

Em arremate, existem motivos jurídicos e políticos de sobra para que o artigo 171 seja vetado ao tempo da sanção do projeto da "nova" Lei de Licitações pelo presidente da República. Além da inconstitucionalidade tratada, há o fundado risco de engessar ilegitimamente a atuação dos gestores estaduais e municipais às interpretações originalmente vocacionadas à unicamente à atuação suportada com recursos federais [9] lembremos que levar a sério os artigos 20 e 22 da LINDB demanda o reconhecimento das realidades particulares de Estados e municípios de diferentes portes, ainda assim muito distantes da realidade vivida na Esplanada brasiliense.

A sanção do artigo 171 representará empecilhos talvez insuperáveis ao desenvolvimento de um paradigma hermenêutico próprio dos estados e municípios, caracterizado pela elaboração e condução autônomos do modo de se fazer gestão pública a partir da contextualização e da consideração das realidades peculiares de cada um desses entes e pela incorporação crítica, quando for o caso, das práticas observadas no âmbito da Administração federal. Por outro lado, cabe aos Tribunais de Contas dos Estados e municípios buscar a construção de seus próprios precedentes de forma tecnicamente motivada, com coerência e transparência, para que seja possível não somente fiscalizar como também contribuir para o incremento da qualidade das contratações públicas.

 


[1] A bem da verdade, a despeito da aprovação do PL nº 4.253/2020 (referente à autuação do substitutivo da Câmara dos Deputados ao PLS nº 559/2013), o processo legislativo ainda não foi concluído, restando pendente a consolidação textual pela Secretaria Geral da Mesa do Senado Federal, a formação dos “autógrafos” a serem assinados pelo Presidente da Casa Legislativa e, por fim, a sanção do Presidente da República. Tramitação disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145636>.

[2] A exemplo, vide: o §1º do artigo 23 que incorpora a redação da Instrução Normativa SEGES nº 05/2014, já revogada pela IN SEGES nº 73/2020; o §2º do mesmo artigo 23, baseado no Decreto Federal nº 7.983/2013; o artigo 49 que trata das minucias da documentação de fiscalização e acompanhamento de contratos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra; o artigo 85 que incorpora os procedimentos específicos da "intenção de registro de preço" com esteio em similar redação existente no artigo 4º do Decreto Federal nº 7.892/2013.

[3] Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com as alterações operadas pela Lei nº 13.655/18.

[4] Já é possível imaginar interpretação ampliativa da regra proposta para abranger também a Advocacia Pública, na densificação do conceito de “órgão de controle”, dado o disposto no inciso II do artigo 162 do projeto: “Artigo 168. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa: […] II – segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade”;

[5] Vide, para tanto: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Julgados do TCU em matéria de licitações e contratos não são jurisprudência. Consultor Jurídico, abr. 2018, disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-17/vitor-amorim-julgados-tcu-nao-sao-jurisprudencia>.

[6] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 31.

[8] "O Tribunal de Contas da União, no exercício de sua competência de controle da administração financeira e orçamentária (artigo 70, §§ 1º e 3º da Constituição), poderá expedir instruções complementares, reguladoras dos procedimentos licitatórios e dos contratos administrativos".

[9] Acerca da necessidade de observância da autonomia hermenêutica de Estados e Municípios em matéria de licitações e contratos, vide: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Por um "giro hermenêutico" no Direito Administrativo de estados e municípios. Consultor Jurídico, set. 2019, disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-16/victor-amorim-visao-nacional-compras-publicas>.

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    é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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    é advogado, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e professor dos cursos de pós-graduação do IDP, do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e da Escola Brasileira de Direito (Ebradi).

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