Opinião

Comentários ao voto do ministro Dias Toffoli no RE 695.911/SP

Autor

  • Vinícius Monte Custodio

    é doutor em Direito Econômico e Economia Política pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra e advogado.

17 de dezembro de 2020, 6h34

No último dia 4, o STF iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário 695.911/SP, que versa sobre a constitucionalidade da cobrança de contribuição associativa compulsória de moradores de loteamento, visando ao custeio dos serviços de administração imobiliária prestados por associações de moradores.

Nessa ocasião, o relator ministro Dias Toffoli apresentou seu voto, ratificando a prevalência da liberdade fundamental de associação em face do princípio da vedação do enriquecimento sem causa, já bastante assente na jurisprudência do STJ e do STF [1]. Esse entendimento baseia-se na ideia de que as obrigações no Direito brasileiro decorrem da lei ou do contrato, razão pela qual sem previsão legal ou expressa manifestação de vontade, ninguém pode ser cobrado a contribuir com o rateio dessas despesas.

O voto do relator inova ao estabelecer um marco temporal para a possibilidade de contribuição associativa compulsória em loteamentos, qual seja a Lei 13.465/2017. Na visão do ministro, esse diploma legal, ao introduzir o artigo 36-A na Lei 6.766/1979, teria instituído a obrigação legal — e, consequentemente, tornado constitucional — de os titulares de imóveis de loteamentos e empreendimentos assemelhados se cotizarem na forma dos atos constitutivos dessas associações.

E, finalmente, propôs a seguinte tese:

"É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário ur­bano de proprietário não associado até o advento da Lei 13465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível a cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que (i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato consti­tutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis".

Com a devida vênia, o voto é preocupante e desacertado.

O primeiro equívoco do voto está na assunção de que a Lei 13.465/2017 "equiparou os loteamentos de acesso controlado (loteamentos regulares, portanto) a condomínios edilícios". Não existe tal equivalência, pois o próprio artigo 78 da Lei 13.465/2017, ao dar nova redação ao artigo 2º, §7º, da Lei 6.766/1979, deixa claro que o "lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes".

No loteamento de acesso controlado, os proprietários dos lotes não têm qualquer relação jurídica de natureza condominial com os proprietários das demais parcelas da gleba originária, pois os lotes são autônomos. Registrado o loteamento, os lotes surgem ex novo, com matrículas próprias e independentes, sem partes comuns, porque o concurso voluntário transfere as vias de circulação abertas ou prolongadas, bem como os espaços livres e áreas destinadas a equipamentos públicos, ao domínio municipal (artigo 22 da Lei 6.766/1979). Por esse motivo, a manutenção dos loteamentos deve ser financiada pela tributação, e não pela contribuição involuntária dos particulares.

Já no condomínio de lotes, aí, sim, existe um condomínio edilício, constituído por unidades autônomas (os lotes) e partes comuns, dentro da quadra ou fração da quadra (subquadra) que os confina [2].

A aproximação desses regimes jurídicos é, portanto, descabida.

A elaboração do projeto de loteamento é um ônus do loteador, exigido com fundamento no poder de polícia municipal, objetivando "ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" (artigo 182 da CR).

Logo, não se pode impor a obrigação de cotização, por meio de registro na matrícula do loteamento no registro de imóveis. As limitações incidentes sobre os lotes e suas construções discriminadas no memorial descritivo do projeto somente se legitimam quando colmatam a legislação urbanística (artigo 9º, §2º, inciso II, da Lei 6.766/1979), não podendo veicular obrigações de direito privado.

Por fim, a tese de repercussão geral erroneamente presume que o artigo 36-A da Lei 6.766/1979 ou eventual lei municipal afim [3], ao possibilitar o registro da obrigação na matrícula do loteamento e, assim, a anuência automática daqueles que vierem a adquirir lote gravado com essa obrigação, é constitucional.

No entanto, à luz da dogmática dos direitos fundamentais, a restrição da liberdade fundamental de associação (e de desassociação!) não tem previsão constitucional expressa. Sendo assim, ela só se justifica se ponderada com o direito de terceiros (vizinhos) ou os direitos coletivos e difusos, sob a orientação do postulado da proporcionalidade.

A tese proposta pelo relator ofende o conteúdo essencial da liberdade de associação, porquanto impossibilita o exercício da liberdade de desassociação.

Consequentemente, a solução que oferece a melhor concordância prática dos princípios envolvidos é aquela enunciada pela ministra Maria Isabel Gallotti no supramencionado REsp 1.280.871/SP:

"O acolhimento desta tese [a do prevalecimento da liberdade de associação] não significa que não possa, em tese, haver o ajuizamento de ação de indenização por enriquecimento sem causa quando alegado e demonstrado que o morador se beneficia, utiliza concretamente de serviços fornecidos pela associação e por eles nada paga".

Dessa maneira, é inconstitucional compelir não associados a contribuir com a associação, mas nada impede que a associação, demonstrando concretamente que um não associado utiliza de serviço específico e divisível prestado por ela, ajuíze ação indenizatória, com fundamento no princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, para receber pelo serviço efetivamente prestado e não pago.

 


[1] Cf. SUPREMO Tribunal Federal. ADI 1.706/DF (Tribunal Pleno). Diário da Justiça Eletrônico, 12 set. 2008. rel. min. Eros Grau; SUPREMO Tribunal Federal. RE 432.106/RJ (1ª Turma). Diário da Justiça Eletrônico, 4 nov. 2011. rel. min. Marco Aurélio; SUPERIOR Tribunal de Justiça. REsp 1.280.871/SP (2ª Seção). Diário da Justiça Eletrônico, 22 maio 2015. rel min. Ricardo Villas Bôas Cueva.

[2] Para uma visão aprofundada dos regimes jurídicos do loteamento de acesso controlado e do condomínio de lotes, cf. o nosso Análise jurídica do loteamento de acesso controlado e do condomínio de lotes na lei federal nº 13.465/2017. Revista de Direito da Cidade, v. 9, n. 4, 2017, p. 1930-1952. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/30871/21985. Acesso em: 8 dez. 2020.

[3] Sobre a impossibilidade de o município, a pretexto de legislar sobre direito urbanístico, dispor sobre condomínio edilício, que é matéria de direito civil, portanto privativa da União, cf. o nosso Princípio da reserva de plano: comentários ao acórdão do Recurso Extraordinário 607.940/DF. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, ano 19, n. 110. Belo Horizonte: Fórum, mar./abr., 2020, p. 58-68.

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    é advogado, mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo.

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