Opinião

Advocacia criminal como advocacia de interesse público

Autor

16 de dezembro de 2020, 7h12

A chamada advocacia de interesse público (public interest lawyering) floresceu nos Estados Unidos da América a partir da década de 1960, como decorrência do movimento dos direito civis (civil rights movement) em favor da igualdade racial. As três principais bandeiras dessa causa política eram a erradicação de condições sociais desesperadoras, a oposição ao sistema de castas sociais e a cautela em relação ao Poder Judiciário [1].

Spacca
Esse movimento teve profundo impacto na cultura constitucional daquele país, levando à criação de organizações de interesse público tais como a American Civil Liberties Union (ACLU), o Center for Constitutional Rights, o NAACP Legal Defense and Education Fund, o Innocence Project etc [2].

A advocacia de interesse público foi catalisada, em escala global, pela proliferação de constituições escritas, cortes constitucionais e valores liberais impulsionando a globalização, além do fortalecimento de redes transnacionais de tutela dos direitos humanos.

Stuart Scheingold e Austin Sarat reconhecem a impossibilidade de se chegar a um conceito de advocacia de interesse público que seja universalmente válido, pois tal definição depende de cada contexto (cultural, histórico, político e profissional) no qual ela é exercida [3].

De uma forma genérica, a essência da advocacia de interesse público consiste no uso de habilidades legais para tentar atingir objetivos políticos modificadores do status quo (jurídico, cultural, econômico, moral, social ou político), portanto que transcendem o interesse pessoal do cliente.

Portanto, essa advocacia pode abarcar diversificada gama de causas (ambientais, criminais, fundiárias, humanitárias etc.), patrocinadas por entes governamentais, pequenos e grandes escritórios de advocacia, ou organizações do terceiro setor nacionais ou transnacionais, com infraestruturas, recursos, estratégias, táticas e objetivos políticos bastante heterogêneos.

Para Scheingold e Sarat, o critério definidor do conceito de advocacia de interesse público deve ser intencional e comportamental [4].

A advocacia tradicional é baseada na defesa efetiva dos interesses pessoais de pessoas naturais e jurídicas, independentemente dos fins e ideais desses clientes.

Por outro flanco, a advocacia de interesse público é exercida por profissionais que também são ativistas políticos, possuindo relação de identificação ideológica, moral ou política com a causa. Assim, a defesa é considerada meio para o profissional tentar atingir objetivos políticos que transcendem o interesse pessoal do cliente.

Já Anna-Maria Marshall e Daniel Hale defendem uma aproximação conceitual baseada nas práticas culturais e sociais dos profissionais. Nesse sentido, a advocacia de interesse público consiste no "conjunto de práticas sociais, profissionais, políticas e culturais engajadas por advogados e outros atores sociais, para mobilizar o Direito para promover ou resistir à mudança social" [5].

Para eles, o foco na prática advocatícia (e não nos profissionais) evita dificuldades metodológicas associadas à investigação de motivações pessoais. Além disso, ele é mais adequado por abarcar toda a variegada gama de atividades exercidas pelos advogados de interesse público, no que tange: 1) à organização do ambiente laboral; 2) às relações com a clientela, colegas, ativistas, instituições e organizações sociais; 3) às escolhas estratégicas em determinado contexto judiciário e político etc.

A advocacia de interesse público não é homogênea, comportando tipologia tripartida proposta por Thomas Hilbink [6].

Essa classificação reparte a advocacia de interesse público em procedimental (proceduralist), elitista (elitist) e de raiz (grassroots).

Para tanto, são usados três critérios classificatórios: 1) a visão do Direito e do funcionamento do sistema de administração da justiça (relação entre Direito e prática jurídica); 2) a visão (substancial ou procedimental) da causa e das estratégias e táticas para promovê-la (relação entre valores sociais e políticos e a prática jurídica); 3) a visão da prática advocatícia, incluindo aspectos comportamentais, relacionais, deontológicos e organizacionais.

A advocacia procedimental é aquela mais próxima da tradicional, sendo baseada na separação entre Direito e política, e na crença na legitimidade do ordenamento jurídico e do sistema de administração da Justiça. A principal causa defendida é a Justiça procedimental (procedural justice). Essa advocacia enfatiza a defesa efetiva do interesse individual do cliente por defensor que se considera neutro e apartidário no desempenho do seu múnus profissional.

A visão da causa é procedimental, pois a representação do interesse pessoal do cliente é considerada um fim em si mesmo. Em havendo defesa efetiva dos interesses do cliente, os objetivos do advogado são cumpridos. O seu compromisso é com o funcionamento correto do sistema de administração da Justiça, cujo aperfeiçoamento e legitimação decorrem da atuação profissional zelosa em prol do cliente.

Já a visão da relação advogado-cliente é tradicional e passiva. O advogado permanece inerte, sendo procurado pelo cliente. O cliente e sua causa são vistos de forma individualizada. O advogado não se vê como ativista político, e, sim, como profissional neutro e indiferente aos ideais e valores do cliente.

A advocacia elitista, por seu turno, considera o Direito uma nobre forma de exercício da política, visando à Justiça substancial e à transformação da realidade social de cima para baixo. A causa política é a defesa de grupos sociais ou princípios, mediante litigância estratégica direcionada à criação de precedentes paradigmáticos. A estratégia de atuação profissional é sempre dentro dos limites legais e institucionais.

Sua visão da causa é substancial, pois a representação do cliente é considerada meio de modificação da realidade (econômica, jurídica, social ou política), de fomento à igualdade (de gênero, racial etc.) ou de inclusão social de minorias marginalizadas.

A visão da relação advogado-cliente é não tradicional e ativa. Cabe ao advogado exercer papel de protagonista, escolhendo causas, clientes, estratégias, táticas e objetivos políticos. O comprometimento maior do advogado é com a causa substancial, e não o interesse pessoal do cliente. Este, por vezes, é indefinido, consistindo em um interesse difuso ou coletivo.

Por fim, a advocacia de raiz vislumbra o Direito como mais uma forma de exercício da política, nutrindo ceticismo quanto à sua utilidade para mudar a realidade social. Há tendência de caracterizar o sistema de administração da Justiça como conservador, desigual, injusto e opressor. O objetivo político de atingir a justiça social substantiva é buscado por meios jurídicos e extrajurídicos (v.g. organização de ações comunitárias, educação pública, interação com meios de comunicação social, campanha política etc.), inclusive desafiadores de instituições (desobediência civil). O advogado tende a desempenhar papel coadjuvante: prestar assistência jurídica a cliente que é movimento social criado de baixo para cima (grassroot movement), cujo objetivo político é alinhado à ideologia do advogado.

A visão sobre a causa é uma mescla entre Direito e política, envolvendo estratégias e táticas de politização da prática judiciária, de forma articulada com movimentos sociais. O objetivo é promover mudanças econômicas, legais, políticas ou sociais, baseadas em valores relacionados à igualdade e justiça social. Ao contrário da advocacia elitista, a advocacia de raiz busca a transformação social de baixo (a partir de indivíduos e movimentos sociais) para cima.

Já a visão sobre a relação advogado-cliente é não tradicional, envolvendo relação de colaboração e solidariedade com uma coletividade de pessoas, havendo menos hierarquia e mais compartilhamento do poder decisório.

Expostas essas três tipologias, é possível enfrentar o ponto fulcral deste texto: é possível caracterizar a advocacia criminal como uma vertente de advocacia de interesse público?

Margareth Etienne realizou interessante pesquisa empírica nesse sentido [7].

Ela começa reconhecendo que alguns defensores são motivados por ideologia, moralidade ou objetivos políticos que contradizem o senso comum, tendente a caracterizá-los como pistoleiros de aluguel amorais, que são capazes de fazer qualquer coisa para assegurar a impunidade de seus clientes pelo preço certo.

Tais valores ideológicos, morais ou políticos desafiam problemas que o atual marco deontológico da advocacia não é capaz de solucionar: por vezes, o engajamento do defensor como ativista de uma causa política pode conflitar com o seu dever ético de visar ao melhor interesse do acusado.

Com base em pesquisa qualitativa, consistente em entrevistas estruturadas com quarenta defensores públicos e privados, Etienne aponta as principais motivações profissionais relatadas pelos entrevistados: 1) tutela das garantias processuais penais do acusado; 2) reforma do sistema de administração da Justiça criminal, pelo combate às suas mazelas (abusos persecutórios, corrupção e violência policial, parcialidade, penas desproporcionais, racismo estrutural etc.); 3) articulação da presença e participação efetiva do acusado no processo criminal; 4) acesso do acusado hipossuficiente a recursos tais como tratamento para dependência química, educação, moradia, assistência médica, aconselhamento etc.; 5) exercício prático de valores religiosos (v.g. caridade) ou morais (v.g. assistência a grupos sociais discriminados), ou a identificação étnica ou racial com a pessoa do acusado; 6) convívio com colegas da advocacia criminal e a obtenção do seu respeito profissional; 7) motivos diversos (v.g. autonomia, experiência, remuneração etc.).

Etienne ressalva que a caracterização da advocacia criminal como vertente da advocacia de interesse público é problemática, em razão: 1) da sobredita imprecisão conceitual da expressão advocacia de interesse público; 2) da heterogeneidade da advocacia criminal, que mescla profissionais com firmes convicções ideológicas ou políticas e profissionais neutros em relação às questões que transcendem o interesse pessoal do cliente; profissionais bem e mal remunerados; profissionais pertencentes a órgãos públicos precariamente estruturados e escritórios privados prestigiosos; profissionais que representam hipossuficientes e profissionais que representam poderosos grupos empresariais transnacionais etc.

Não obstante, segundo Etienne, sua pesquisa empírica comprova que a advocacia criminal é composta por muitos profissionais que se veem como advogados de interesse público, pois eles têm fortes convicções ideológicas, morais ou políticas.

A implicação prática é que o defensor pautado por essas firmes crenças ideológicas, morais ou políticas, além das normas deontológicas e legais aplicáveis, é capaz de proporcionar uma defesa mais efetiva ao acusado. Para esse profissional, o parâmetro mínimo de sucesso advocatício é mais rigoroso. Além disso, a aposta é mais elevada para o defensor preocupado tanto com o interesse pessoal do acusado quanto com determinada causa política.

Essa conclusão de Etienne deve ser vista com reserva, pois dificilmente ela se aplica a todos os casos penais e clientes indistintamente, que são bastante variegados entre si.

Ademais disso, o objetivo político do defensor pode ensejar limitação material da sua capacidade de representar o interesse individual do acusado. O risco da superveniência de conflito de interesses põe em causa a conclusão de Etienne, no sentido de que o defensor engajado em causa política é capaz de propiciar defesa mais efetiva ao acusado.

De fato, na advocacia tradicional há clivagem entre deontologia profissional e ideologia (ou moralidade) pessoal: o dever do defensor é propiciar defesa efetiva ao acusado, mantendo-se neutro em relação a quaisquer interesses (econômicos, morais, sociais, políticos etc.) mais amplos que porventura estejam em jogo no caso concreto.

Assim, a não convergência entre os ideais e valores do defensor e do acusado, ou mesmo a defesa de acusado cujos ideais e valores são antagônicos aos do defensor, não representa dilema ético à luz do marco deontológico vigente.

Já os praticantes da advocacia de interesse público são ativistas políticos que consideram o Direito como um meio de modificação da realidade social, buscando o maior grau possível de convergência entre sua ideologia, moralidade, ou objetivos políticos, e os do acusado.

Portanto, o tema da advocacia de interesse público desafia importante reflexão sobre a deontologia do advogado criminalista: a defesa efetiva do interesse individual do acusado é um fim em si mesmo ou um meio para atingir objetivo político que transcende esse interesse individual?

 


[1] SUNSTEIN, Cass. What the civil rights movement was and wasn’t, In: University of Illinois Law Review, n. 01, pp. 191-209, 1995.

[2] Sobre as mudanças nos perfis dessas entidades, ver: NIELSEN, Laura Beth; ALBISTON, Catherine. The organization of public interest practice: 1975-2004, In: North Carolina Law Review, v. 84, pp. 1.591-1.622, 2006.

[3] SCHEINGOLD, Stuart; SARAT, Austin. Something to believe in: Politics, professionalism and cause lawyering, pp. 03 e ss. Stanford: Stanford University Press, 2004.

[4] SCHEINGOLD, Stuart; SARAT, Austin. Idem, ibidem.

[5] No original: "The set of social, professional, political, and cultural practices engaged in by lawyers and other social actors to mobilize the law to promote or resist social change" (MARSHALL, Anna-Maria; HALE, Daniel Crocker. Cause lawyering, In: Annual Review of Law and Social Science, n. 10, pp. 301-320, 2014).

[6] HILBINK, Thomas. You know the type: Categories of cause lawyering, In: Law & Social Inquiry, v. 29, n. 03, pp. 657-698, 2004.

[7] ETIENNE, Margareth. The ethics of cause lawyering: An empirical examination of criminal defense lawyers as cause lawyers, In: Journal of Criminal Law & Criminology, v. 95, n. 04, pp. 1.195-1.260, 2004-2005.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!