Opinião

O Senado e a missão de lapidar o marco legal das startups

Autores

  • Izabela Patriota

    é diretora de políticas públicas do Livres mestre em Direito Econômico pela Universidade de Brasília e doutoranda em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo.

  • Lucas Bezerra

    é advogado sócio do QBB Advocacia coordenador da Setorial Nacional de Empreendedorismo e Inovação do Livres e membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo e Tecnologia da Fundação Arcadas - USP.

15 de dezembro de 2020, 17h40

Depois da instituição do Inova Simples (Lei Complementar nº 155/2019) e da Declaração de Direitos da Liberdade Econômica (Lei Federal nº 13.784/2019), mais um passo foi dado no fortalecimento do ambiente empreendedor para a inovação no Brasil. O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 146/2020, que institui o "marco legal das startups e do empreendedorismo inovador". O projeto agora vai para validação pelo Senado Federal.

Criar ambientes de estímulo aos novos negócios, com uma normatização que potencialize o desenvolvimento dessas empresas inovadoras e exponenciais é uma pauta recente, mas que não surgiu com a proposição que ora se encontra sob os holofotes. Ainda em 2012, o senador José Agripino (DEM-RN) já havia apresentado o PL 6.625/2013, que discorria sobre o Tratamento Especial a Novas Empresas de Tecnologia — SisTenet, "(…) elencando critérios para definir 'novas empresas de tecnologia' (startups)".

Entretanto, a proposição do SisTenet foi pontual. A temática ganhou verdadeira força a partir de 2017, quando surgiram Projetos de Lei destinados a normatizar investimentos-anjo (PLP 214/2019), criar fundos de financiamento às startups (PL 3.466/2019 e 2.670/2019) e regulamentar a matéria de forma geral (PL 9.362/2017, PLP 366/2017 et al).

Com a discussão pulverizada de uma matéria inovadora, surgiu a necessidade de instituir uma norma que unificasse as proposições e servisse como fundamento para a temática, como aconteceu com o Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.695/2014) e o Marco da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei Federal nº 13.233/2016). Assim, surge o conceito do "marco legal das startups".

O resultado desse trabalho foi o PLP 249, remetido pelo Poder Executivo ao Congresso em 20 de outubro deste ano. Considerando os trabalhos que já vinham sendo desenvolvidos pela Câmara no PLP 146/2019, que apresenta medidas de estímulo à criação e desenvolvimento de startups, houve o apensamento da proposta do Executivo a este procedimento.

O marco aprovado tem oito capítulos principais, que tratam das definições, princípios e diretrizes fundamentais; do enquadramento das empresas startups; dos instrumentos de investimentos em inovação; do fomento à pesquisa, desenvolvimento e inovação; dos programas de ambiente regulatório experimental; da contratação de soluções inovadoras pelo estado; das relações trabalhistas e das opções de subscrição de ações (stock options). As disposições gerais promovem alterações legislativas essenciais à harmonização das alterações propostas com a legislação vigente, além de propor a criação de novas formas de tratamento especial para as startups em institutos já consolidados, tal como a simplificação dos procedimentos de publicação nas sociedades anônimas.

De pronto, é possível notar uma extensão no projeto apreciado ao remetido pelo Executivo para deliberação, que não tratava de forma direta sobre aspectos trabalhistas e tributários. Os capítulos que abordam as relações trabalhistas (VII), os planos de stock options (VII) e outras disposições específicas, tal como a que trata sobre o imposto de renda sobre o ganho de capital (vide artigo 7) foram acrescentadas como uma forma de garantir um alcance maior à norma, respondendo aos interesses das entidades que participaram da sua construção. Afinal, o projeto contou com uma forte participação dos representantes do mercado, o que torna a redação final considerada primorosa por boa parte das entidades do setor

Na sua concepção, as tratativas foram construídas com base em cinco eixos principais, considerados essenciais ao fomento desses novos negócios. São eles: burocracia, que visa reduzir os ritos de formalização (parcialmente sanado com a Lei Federal 13.784/2019); investimentos, com o fito de regulamentar instrumentos de aporte que concedam segurança jurídica aos investidores; relações trabalhistas, para viabilizar mecanismos mais flexíveis de contratação e retenção de talentos; tributos, essencial para minimizar os custos tributários, e, por fim; contratações públicas, para facilitar o participação das startups nas compras públicas. Estes, indubitavelmente, são os principais calos das startups na esfera jurídica.

Não há dúvidas que o marco legal proposto traz consigo grandes avanços para o ecossistema empreendedor. Uma conceituação objetiva de startup com critérios bem definidos (faturamento, data de constituição e autodeclaração) permite uma parametrização objetiva das empresas que poderão gozar dos benefícios para o estímulo à inovação.

Além disso, regulamentar as responsabilidades dos investidores e seus instrumentos de aporte, estimular o fomento à inovação por entes públicos e prever de forma específica mecanismos de contratação, dentre todas as demais disposições, representam avanço que, muito em breve, merecem ingressar no ordenamento jurídico pátrio.

Entretanto, numa matéria tão relevante para o cenário empreendedor nacional, o timing deve ser preciso. Por tratar de inovação, é um caso que merece celeridade, mas que uma aprovação à toque de caixa pode deixar passar detalhes que mereciam um aprimoramento técnico, em prol da segurança jurídica de todos os players interessados nesse mercado.

Recebendo um projeto que possui qualidade em sua constituição, o Senado assume agora o papel de lapidar o marco. Solucionar lacunas legislativas, evitando aberturas para leituras enviesadas por parte de entidades fisco-regulamentares, e promover alterações para uma melhor redação podem ser fundamentais nesta próxima etapa legislativa.

Esse é um trabalho em minúcias a ser realizado. Citaremos alguns pontos passíveis de discussão.

O artigo 4º, § 1º, III, 'a", por exemplo, que lista como um dos requisitos para enquadramento como startup a "(…) declaração, em seu ato constitutivo ou alterador, e utilização de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços nos termos do disposto no inciso IV do caput do artigo 2º da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004", merece esclarecimento se a única conceituação cabível é efetivamente a supracitada, que tem como parâmetro a para a inovação a "introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho".

Afinal, não seria passível de utilização também o conceito para modelos inovadores do artigo 65-A da Lei Complementar nº 167/2019? Este, na conceituação para fins de Inova Simples, trouxe a figura da disrupção, ainda não elencado na Lei Federal nº 10.973/2004, ao afirmar que "(…) considera-se startup a empresa de caráter inovador que visa a aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos, os quais, quando já existentes, caracterizam startups de natureza incremental, ou, quando relacionados à criação de algo totalmente novo, caracterizam startups de natureza disruptiva".

Há de se observar também que a utilização da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), parâmetro consolidado pelos entes públicos para definição de aspectos tributários e regulatórios foi preterida à figura da autodeclaração, incluída no ordenamento pátrio como decorrência do princípio da boa-fé do particular perante os entes públicos (artigo 2º, II, da Lei Federal 13.784/2019). Não poderia a norma prever também, assim como fez com as atividades de baixo risco (artigo 9º da Declaração da Liberdade), que ato do Poder Executivo federal disporá sobre listagem de atividades que serão automaticamente reconhecidas como inovadoras, desde que efetivamente exerçam tais atividades?

O prazo de inscrição no CNPJ para validação como startup é outro tópico passível de debate. Afinal, a proposta elenca as regras para os casos de criação de nova pessoa jurídica, incorporação, fusão e cisão. Visando minimizar debates futuros, incluir os regramentos para as modalidades de aquisição e joint ventures é uma medida de cautela. Afinal, se uma empresa adquire a outra, mas mantém o seu CNPJ, aplica-se a regra da incorporação ou vale a data de sua formalização? Para os casos de joint venture, há interferência das condições das empresas parceiras no novo negócio instituído? Este é o momento de esclarecer tais incertezas.

Merecem prudência também aspectos tributários sobre os investimentos. O artigo 7º da normativa proposta prevê a possibilidade de inclusão das perdas incorridas nas operações com os instrumentos de investimentos como custo de aquisição para apuração de ganhos de capital que forem auferidos com a venda da participação societária convertida. Em regra, um benefício para o investidor, que agora conta com o cômputo de uma perda no cálculo do seu ganho de capital, reduzindo a sua base de cálculo tributária. Para o empreendedor, a vantagem de que a utilização dos valores das perdas no custo de aquisição do capital implica em remissão da dívida da startup (artigo 7, §2º).

Não há objeção dessa benesse para a relação startup-investidor. Todavia, uma análise essencialmente tributária pode ensejar estranheza sobre a viabilidade da norma, uma vez que a possibilidade legal de acumulação das perdas até anular o ganho de capital obtido é algo demasiadamente arrojado, aos olhos dos que têm uma visão mais pró-Fisco.

Ademais, a norma aprovada apresenta um hiato quando não põe em pauta a revisão das questões já existentes que geram insegurança jurídica tributária aos investidores, tais como o conflito entre o repasse ao titular do aporte de remuneração correspondente aos resultados distribuídos (artigo 61-A, §6, da LC 155/2017) e a tributação promovida pela Instrução Normativa 1.719/2017 da Receita Federal, que foi desalentadora para muitos investidores-anjos. Não seria o momento de trazer esse debate para o marco, para que não fiquemos sujeitos a mais uma regulamentação unilateral do Fisco sobre as matérias?

Os comentários realizados podem aparentar uma visão negativa sobre a proposta construída do marco, quando não é isso que ocorre. É exemplar o trabalho realizado ao longo dos anos na construção desse projeto, que efetivamente contou com a participação popular. A proposta legislativa atende diversos anseios do mercado, propondo diversos avanços técnicos para o empreendedorismo, elogiáveis em diversos sentidos. Afinal, muito do que está proposto foi pautado e discutido com as entidades que representam o ecossistema no Brasil. E, tecnicamente, o projeto é de uma qualidade inquestionável.

Considerando, entretanto, que o momento é de construção, discutir e questionar são tarefas primordiais para uma boa construção legislativa. Caberá ao Senado lapidar esse projeto tão importante para a inovação no Brasil, afinal ele será o pilar normativo para as startups do nosso país.

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