Opinião

Convenção contra o racismo depende do presidente para entrar em vigor

Autor

  • Valerio de Oliveira Mazzuoli

    é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em Mato Grosso São Paulo e Distrito Federal.

15 de dezembro de 2020, 12h09

A Câmara dos Deputados, por maioria qualificada, aprovou no último dia 9 a Convenção Interamericana contra o Racismo, nos moldes do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal. O instrumento seguiu ao Senado Federal para o fim de ser aprovado com a mesma maioria qualificada, se assim entender a Câmara Alta. Estando aprovado em dois turnos, por três quintos dos votos dos membros de ambas as casas do nosso Parlamento federal, ainda deverá a Convenção Interamericana contra o Racismo ser ratificada pelo presidente da República (com o depósito do instrumento de ratificação na OEA) para que possa integrar a ordem jurídica brasileira com a desejada "equivalência de emenda constitucional".

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Versamos esse assunto, longamente, em nossos livros "Direito dos Tratados" (2014) e "Curso de Direito Internacional Público" (13ª edição, 2020), ambos publicados pela Editora Forense, cujas linhas sintetizarei aqui para o entendimento daquilo que pode se passar com a aprovação da Convenção Interamericana contra o Racismo, em pauta neste momento no Brasil.

De início, relembre-se que todo e qualquer tratado de direitos humanos deve ser ratificado para entrar em vigor no Brasil, independentemente do quórum de aprovação parlamentar, pois é conditio sine qua non para a entrada em vigor interna de um tratado que o instrumento já esteja ratificado e em vigor no plano internacional.

A ratificação de um tratado é ato exclusivo do presidente da República, por ser ele o chefe da dinâmica das relações internacionais. Assim sendo, não há que se falar — por absoluta impropriedade técnica — em "ratificação constitucional" ou em "ratificação de Direito interno", como querendo significar a aprovação dada pelo Poder Legislativo ao tratado internacional ou à sua promulgação interna. Qualquer referência à "ratificação do Congresso" ou à "ratificação interna" do tratado é incorreta, e não jurídica; sequer há costume dos Estados em assim nominar a participação do Legislativo na processualística dos atos internacionais.

A própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, no seu artigo 2º, §1º, "b", abraça a tese de ser a ratificação ato jurídico de natureza externa. Lê-se, no citado dispositivo, que por "ratificação" entende-se o ato "pelo qual um Estado estabelece no plano internacional o seu consentimento em obrigar-se por um tratado". A convenção foi bastante clara na assertiva de que tais termos se referem a atos jurídicos internacionais.

Portanto, o que existe internamente é tão somente o referendum do Parlamento com o quórum que lhe aprouver, o que não significa "ratificação" no sentido que lhe dá o Direito Internacional Público, que é ato próprio (exclusivo) do governo. A competência para ratificar é sempre do poder em nome do qual foram assinados os tratados e, portanto, não dizem respeito à ratificação em sentido técnico o referendo parlamentar ou quaisquer outros procedimentos similares estabelecidos pelo Direito interno.

Esclarecido esse ponto, mister verificar a questão dos tratados aprovados com maioria qualificada no Congresso para que entrem em vigor no Brasil com a desejada "equivalência de emenda constitucional".

Primeiramente, não há de se confundir a equivalência às emendas de que trata o artigo 5º, §3º, com as próprias emendas constitucionais previstas no artigo 60 da Constituição. A relação entre tratado de direitos humanos e as emendas constitucionais é de equivalência, não de igualdade. O artigo 5º, §3º, não disse que "A é igual a B", mas que "A é equivalente a B", certo de que duas coisas só se "equivalem" se forem diferentes. Por isso, é inconfundível a norma do tratado equivalente a uma emenda constitucional com uma emenda propriamente dita, sendo também inconfundível o processo de formação de um (tratado) e de outra (emenda). Não é porque não existe sanção presidencial nas emendas que não haverá ratificação do governo para os tratados internacionais. De fato, como a relação entre ambos não é de igualdade, mas de equivalência (ou equiparação), não se aplicam aos tratados os procedimentos estabelecidos pela Constituição para a aprovação das emendas, tampouco a regra constitucional sobre a iniciativa da proposta de emenda (artigo 60, incisos I a III).

Como se nota, a Constituição não diz que se estará aprovando uma emenda, mas um ato (nesse caso, um decreto legislativo) que possibilitará tenha o tratado (depois de ratificado) equivalência de emenda constitucional. Assim, tudo continua da mesma forma como antes da EC 45/04, devendo o tratado ser aprovado pelo Congresso por decreto legislativo, mas podendo o Parlamento decidir se com o quorum (e somente o quorum…) de emenda constitucional ou sem ele.

Destaque-se que foi exatamente dessa forma que agiu o Congresso Nacional brasileiro ao aprovar os dois primeiros tratados de direitos humanos com equivalência de emenda constitucional depois da EC 45/2004, que foram a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, aprovados conjuntamente pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Atualmente, um terceiro tratado — a Convenção de Marraqueche sobre o direito ao livro impresso às pessoas cegas ou com deficiência visual — já foi aprovado pelo Parlamento pela maioria qualificada referida, e já está ratificado e em vigor no Brasil. 

Perceba-se que o Congresso Nacional, em ambos os casos, não se uti­lizou do processo próprio das propostas de emendas constitucionais para a aprovação desses tratados de direitos humanos, tendo apenas editado (como realmente tem de fazer) um decreto legislativo por maioria qualificada, nada mais. Daí o equívoco daqueles que lecionam no sentido de não mais haver necessida­de (após a EC 45) de ratificação do tratado pelo presidente da República e de promulgação e publicação posteriores. Aqueles que assim pensam não entenderam que a relação estabelecida pela Constituição entre os tratados de direitos humanos e as emendas (repita-se) não é de igualdade, mas de equivalência.

Não é porque o presidente da República não sanciona as emendas constitucionais que ele não irá ratificar um tratado internacional aprovado nos termos do §3º do artigo 5º da Constituição. Uma coisa é absolutamente distinta da outra: a aprovação parlamentar do tratado de direitos humanos (com ou sem o quorum de emenda) é uma coisa, totalmente diversa dos atos posteriores de ratificação, promulgação e publicação daquele.

Portanto, não há de se comparar o processo de celebração de tratados com o processo legislativo de edição das emendas constitucionais no Brasil. É, inclusive, impossível que tenha um tratado internacional valor interno sem que, antes, tenha sido ratificado e já se encontre em pleno vigor no plano externo.

Caso a Convenção Interamericana sobre o Racismo seja aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em dois turnos nas casas, por três quintos dos votos de seus respectivos membros, deverá obrigatoriamente seguir à presidência da República (o Itamaraty também auxilia nesse trâmite) para que seja, se entender por bem o presidente, ratificada com o respectivo depósito de seu instrumento no organismo internacional respectivo (no caso, a OEA). Somente após a ratificação brasileira é que esse tratado passará a vigorar, no Brasil, com a desejada "equivalência de emenda constitucional". Tollitur quaestio.

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    é pós-doutor pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS, professor-associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e membro consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB.

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