Sobre a 'indústria de precatórios'
14 de dezembro de 2020, 12h56
Chamou-me a atenção a declaração do ministro Paulo Guedes, divulgada nos sites de notícia brasileiros, de que a "indústria de precatórios" irá destruir o Brasil. Referia-se ele ao fato de que a estimativa de pagamento de precatórios alcançava, no ano de 2012, a expressiva cifra de R$ 52 bilhões.
O sistema de pagamento de ordens judiciais brasileiro é extremante moroso, custoso e complexo. Já foi objeto de inúmeras alterações constitucionais promovidas pelo Congresso Nacional e impugnações no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Originalmente incorporado no artigo 100 da Constituição e no artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o sistema do precatório foi objeto de ajuste na Emenda Constitucional (EC) 30 (introduziu o artigo 78 do ADCT); na EC 37 (introduziu os artigos 86 e 87 do ADCT); na EC 62 (alterou o artigo 100 da CF e introduziu o artigo 97 do ADCT); na EC 94 (alterou o artigo 100 da CF e introduziu o artigo 101 do ADCT); e na EC 99 (alterou o artigo 101 do ADCT). Considerando a declaração do ministro Paulo Guedes, não serão essas as últimas alterações constitucionais que veremos acontecer
Na verdade, se examinarmos o crescimento da despesa de precatório em comparação com o crescimento do estoque da dívida ativa da União, verificamos que a distorção, se houver, não ocorre em apenas um dos lados da moeda. A dívida ativa da União cresceu de R$ 2,196 trilhões, em 2019, para R$ 2,436 trilhões, em 2020, o que representa o acréscimo, em apenas um ano, de R$ 240 bilhões (quase cinco vezes o valor previsto para pagamento em precatórios). Considerando que a Selic tem sido mantida pelo Banco Central em um percentual anual baixo, o crescimento do estoque da dívida ativa deve-se basicamente a novos valores inscritos.
No caso, a dívida ativa da União é anabolizada por um sistema sancionador capaz de duplicar e muitas vezes triplicar o valor devido pelo contribuinte, em violação ao princípio da capacidade contributiva e da proibição de confisco, como já decidiu o Supremo Tribunal em outras oportunidades (ARE-AgR 938538, relator ministro Luiz Roberto Barroso).
Mas o que gera a existência de valores tão expressivos nos precatórios?
Primeiramente, ao meu ver, a incapacidade de resolução administrativa do Estado. Apesar dos esforços da AGU e da PGFN em implementar os modelos de transação judicial e extrajudicial, o fato é que a Administração Pública, em geral, é extremante hermética aos pleitos e necessidades dos cidadãos e das empresas. Dos contratos públicos à concessão de benefícios individuais, a Administração Pública é resistente ao reconhecimento de direitos e, muitas vezes em face dos valores envolvidos, arrisca-se a interpretações jurídicas que apostam na ausência de jurisprudências estáveis do Poder Judiciário. Isso é agravado por um sistema de controle e correição altamente punitivo e com um olhar distante dos problemas enfrentados pelo administrador público e, especialmente, pelos cidadãos e empresas que necessitam da providência do Estado. Tudo isto leva à um sistema burocrático que vê no Judiciário uma escapatória ao risco da decisão e um substituto conveniente aos desafios de administrar.
Os valores são então potencializados por um sistema judicial que, além de moroso, é colocado na condição de substituto da atividade de administração e forçado a ser um parceiro do Estado. Pautas econômicas; grave lesão à administração pública; riscos fiscais e outras agendas são recorrentemente incorporadas no dia a dia do juiz, tornando-o não um realizador da justiça e aplicador equânime da lei, mas um campeão das pautas de salvação de um sistema ineficiente e estruturalmente patológico.
Os altos valores em precatório, bem como aqueles em cobrança na dívida ativa da União são representações gráficas e pontuais dessa patologia estatal que, incapaz de resolver no agora os problemas que lhe são trazidos, vê a transferência dos mesmos no tempo (adia-se o problema) e no espaço (resolva no Judiciário) como uma forma de administrar. Para essa solução todas as teses são possíveis e aceitáveis e o Poder Judiciário, assoberbado pelo volume de processos e pressionado pelas constantes demandas fiscais, acaba muitas vezes por aceitar essa realidade.
Portanto, talvez o precatório seja de fato um problema, na medida em que é mais um instrumento a transferir para o futuro o que deveria ser resolvido hoje. A constante incapacidade do Estado de cumprir o princípio constitucional da eficiência, particularmente no que se refere à duração razoável do processo, faz com que o tempo produza constantes distorções nos resultados que, ao final de muitos anos ou décadas, são alcançados (afinal tudo deve ter um fim). Tal constatação não serve para justificar a inconformidade declarada pelo ministro da Economia com a "indústria de precatórios", mas apenas reforçar a patologia que está presente no nosso sistema estatal.
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