Defesa da concorrência

Economia digital, direito da concorrência e crise da Covid-19

Autor

  • Gesner Oliveira

    é ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (1996-2000) e da Sabesp (2006-2010) professor de economia da FGV-SP doutor em Economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e sócio da GO Associados. Coordena o grupo de Economia da Infraestrutura & Soluções Ambientais da FGV.

14 de dezembro de 2020, 16h57

A pandemia do novo coronavírus derrubou as projeções de crescimento para todas as economias do mundo. Mas, diferente das previsões mais catastrofistas do primeiro semestre, a queda do PIB no Brasil não será próxima de dois dígitos. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou que o PIB do Brasil cairia 9% — a projeção atual é de queda de 6% em 2020.

A mediana das expectativas da Pesquisa Focus indica um declínio em 2020 de 4,4%, comparável à pior recessão anual que o país sofreu depois do Plano Collor em 1990, em meio a uma crise hiperinflacionária.

O tombo da economia brasileira foi atenuado por três fatores: a rápida adaptação à economia digital das empresas, as medidas anticrise, com destaque para o auxílio emergencial, e medidas de isolamento social menos rigorosas do que em outros países. 

Mas a recuperação não é uniforme. O setor de serviços, por exemplo, acumula uma queda de 8,7% até outubro de 2020. Já o comércio foi menos prejudicado pela pandemia. As vendas no varejo acumulam alta de 0,9% no mesmo período.

No setor de serviços, a solução encontrada por bares e restaurantes para continuar funcionando pode se tornar um problema. Se o mercado de aplicativos de entregas de alimentos em domicílio estiver concentrado em uma única empresa, a ausência de concorrência pode criar uma situação adversa para o funcionamento de bares e restaurantes, ocasionando o fechamento do mercado.

Em 2021 a situação deve continuar delicada: o déficit público, que já era grande antes da pandemia, disparou em 2020. Não há espaço no orçamento para prorrogar o auxílio emergencial; e o crédito bancário não chegou como deveria, principalmente para as pequenas e médias empresas.

Apesar de alguns países iniciarem o processo de imunização, no Brasil, ao que tudo indica, apenas em meados de 2021 é que uma parcela significativa da população já terá sido vacinada.

Diante desse quadro de incertezas, novamente os serviços online serão fundamentais para evitar uma quebradeira. Segundo o IBGE, quase 40% das empresas com até 49 funcionários afetadas pelas restrições do isolamento social simplesmente faliram.

Não há nada de errado quando o crescimento de uma empresa reflete sua competência em prover serviços inovadores, melhores e mais baratos. No caso de aplicativos, isso pode ser reforçado por aquilo que no jargão técnico é chamado de “externalidades de rede” nessas plataformas e mercados de duas pontas. Tal conceito é amplamente discutido no recente trabalho no âmbito do grupo de concorrência e inovação dos BRICS publicado recentemente.

O fenômeno é simples: os usuários aderem ao app ao perceberem que podem acessar facilmente vários estabelecimentos de sua preferência; e estes, por sua vez, são atraídos pelo fato de poderem servir a um grande número de consumidores.

Até aí o xerife da concorrência não precisa agir. A sociedade deseja que o sucesso de algumas empresas de tecnologia seja emulado por outras que tentarão trazer mais e melhores tecnologias em benefício do consumidor e da economia como um todo.

Em que pese a existência do mercado de inovação oriundo dos negócios “built to sell”, o problema reside quando uma empresa com posição dominante lança mão de artifícios anticoncorrenciais para eliminar os concorrentes, atuais e potenciais. Isso ocorre quando o líder do mercado adquire toda e qualquer startup que possa representar uma ameaça e faz contrato de exclusividade de forma a exercer controle sobre o usuário final nos momentos de consumo.

A compra do Instagram pelo Facebook em 2012 constitui exemplo icônico. Embora, naquele momento, as autoridades de concorrência não tivessem proibido a operação, muitas delas admitem que o controle foi falho neste caso ao inibir a rivalidade entre duas redes sociais em vez de uma.

Outro termo técnico utilizado para essas aquisições de startups com ideias disruptivas são “killer acquisitions”. Como o próprio nome já sugere, as companhias maiores compram os novos empreendimentos diante de uma ideia possivelmente rentável e que podem passar, em um futuro próximo, a reter uma parcela importante de mercado. Consequentemente passam a manter os direitos de propriedade intelectual e know how das startups, podendo simplesmente encerrá-las.

Os patamares de faturamento convencionalmente utilizados para obrigar um exame de concentração pela autoridade tornam-se obsoletos na era da economia digital. Uma pequena startup pode ser a líder do mercado em menos de cinco anos. Se for adquirida pela empresa dominante, a sociedade nunca terá os mesmos benefícios da inovação. Se, em 2000, a Blockbuster tivesse adquirido por US$ 50 milhões a Netflix, que hoje vale cerca de US$ 180 bilhões, talvez a revolução do streaming tivesse demorado mais para transformar o mundo do entretenimento. 

Ainda sobre o exemplo do Instagram, vale ressaltar que o Federal Trade Comission (FTC), nos EUA, protocolou um processo contra tais aquisições, requerendo a separação da rede com o Whatsapp e o Instagram. Segundo o órgão, o poder de mercado adquirido conjuntamente entre essas redes faz com que o mercado atue de forma disfuncional, comportando-se sempre em favor daquele que chegou primeiro.

Portanto, a concorrência que antes deveria ser dentro do mercado, como ocorre na maioria das estruturas concorrenciais, passa a ser uma competição pelo mercado, onde o primeiro a chegar conquista todo o mercado e passa a atuar como um monopolista.

Mas o abuso não para por aí. Além de engolir empreendimento promissores, a empresa dominante pode limitar o acesso de concorrentes ao mercado por meio de cláusulas contratuais. Na medida em que os usuários descumprirem, são penalizados com multas ou, o que às vezes é pior, podem ser escanteados na tela de procura dos consumidores.

O aplicativo dominante passa a ter um grande poder de barganha junto aos usuários e ao consumidor. Daí para cobrar taxas mais altas de ambas as pontas do mercado não demora muito.

Ao fim e ao cabo, perde o consumidor, que paga mais caro e tem menos alternativas. Perdem o segmento de usuários, que pagam taxas mais altas para agarrar sua tábua de salvação em meio a uma crise tão severa. Perde o mercado, na medida em que os aplicativos concorrentes não conseguem criar uma massa crítica na sua base de fornecedores capaz de atrair demanda de tanto de consumidores quanto de prestadores, e acabam sendo excluídos. Por fim, perde a sociedade, em bem-estar, com serviços mais caros e piores, e mercados mais concentrados.

Os órgãos de investigação na União Europeia e nos Estados Unidos já acordaram para o risco do controle de mercado pelas empresas de tecnologia. Nos EUA, o rigor das autoridades aumentou mesmo sob o governo Donald Trump e deve ser ainda maior no do sucessor Joe Biden. É sintomática a recente abertura de inquérito contra o Google que investiga possível uso de dados dos consumidores de forma a prejudicar concorrentes e fechar o mercado.

Ninguém quer deter a inovação que é a propulsora do crescimento econômico. Mas a ausência de salvaguardas contra os abusos das empresas dominantes constitui o maior risco de destruição do ambiente de negócios propício à criatividade empreendedora.

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