opinião

Quatro sugestões para as próximas interpretações construtivas do STF

Autor

  • Cláudio Ladeira de Oliveira

    é doutor em Direito professor de Direito Constitucional no cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UFSC e coordenador do GConst - Grupo de Pesquisas em Constitucionalismo Político.

12 de dezembro de 2020, 7h11

Decisões judiciais que ignoram disposições expressas do texto da Constituição e que, a título de interpretá-la, efetivamente legislam, não são uma invenção nacional, nem uma exclusividade do Supremo Tribunal Federal. A estrutura teórica é bastante conhecida: o texto da Constituição estabelece expressamente "X", mas o intérprete deseja "Z", assim "X" é descrito como o resultado de uma interpretação "meramente" literal, incapaz de promover também o princípio abstrato "W", o qual é abstrato o suficiente para significar o "Z" desejado pelo intérprete, e assim a decisão correta deve ser "Z" e não "X". É impossível concluir uma graduação em Direito sem conviver com exemplos reiterados dessa prática e simplesmente não existem sistemas jurídicos, mesmo em democracias constitucionais consolidadas, nas quais essa prática não encontre algum assento no dia a dia dos tribunais. A bem da verdade, mesmo críticos dessa prática e defensores de posturas de autocontenção no exercício da jurisdição, como é o meu caso, guardam alguma simpatia, mínima que seja, por alguma decisão que exemplifica esse tipo de construção.  

Nas últimas décadas, tanto teóricos do Direito quanto ministros de cortes superiores buscaram respaldar esse processo de expansão das competências legislativas dos tribunais (afinal, é disso que se trata) recorrendo a construções doutrinárias as mais inusitadas. Já nos anos 2000, o ministro Gilmar Mendes, que ademais da posição institucional é uma das maiores referências doutrinárias na área, afirmava que o tribunal que integra "pode, sim, ser uma casa do povo, tal qual o parlamento. Um lugar onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e religioso encontram guarida nos debates procedimental e argumentativamente organizados em normas previamente estabelecidas" (STF, ADI 3.510). Recentemente o ministro Luís Roberto Barroso, também ele teórico que ocupa posição de destaque entre nós, acrescentou outra função ainda menos modesta para a corte que integra: "Para além do papel puramente representativo, tribunais constitucionais desempenham, ocasionalmente, o papel iluminista de empurrar a história quando ela emperra" (BARROSO, 2017, p. 60). Construções teóricas dessa natureza justificam e estimulam esse tipo de consequências: a Constituição diz "X", mas "X" significa "o atraso": em nome do "progresso", o tribunal — até por ser "representante" —, deve ignorar o texto.

Mas se a prática não é nova, é fato que a frequência com a qual nossa Corte Suprema tem recorrido em excesso a esse tipo de "interpretação criativa", a ponto de ameaçar com isso corroer sua própria autoridade [1]. O caso mais recente foi o debate sobre a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado (ADI 6.524), no qual a corte discutiu se a expressa proibição estabelecida pelo artigo 57, §4º ("vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente"), significava mesmo que a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente está vedada ou não. O tribunal, por apertada maioria, decidiu que sim, mas o ministro Luís Roberto Barroso já demonstrou disposição para iniciar um outro debate, sobre a obrigatoriedade do voto em nosso sistema eleitoral [2]. Quem sabe estaremos discutindo em breve se o artigo 14, § 1, I ("O alistamento eleitoral e o voto são (…) obrigatórios para os maiores de 18 anos") significa mesmo que o alistamento e o voto são obrigatórios para os maiores de 18 anos. Em 2018, em outro caso que trata da organização do Poder Legislativo (QO-AP 937), o tribunal discutiu se o artigo 53, §1º ("Os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal") significa que os congressistas, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o STF. Ao final, decidiu que a prerrogativa está restrita "apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas". E isso para não falar nas peripécias interpretativas às quais foram submetidos os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal, na discussão sobre a constitucionalidade da regra do Código de Processo Penal (CPP) que expressamente prevê o esgotamento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado da condenação) para o início do cumprimento da pena. Como foi possível perceber no caso da reeleição dos presidentes das casas, a interpretação constitucional construtiva parece ter despertado alguma reação pública, a ponto de algumas dos ministros que haviam se comprometido a permitir a reeleição, mudaram de opinião durante o julgamento. De acordo com o jornalista Fernando Rodrigues, esse teria sido o caso dos ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso [3].

De todo modo, se o tribunal pretende seguir testando os limites de sua autoridade política, gostaria de fazer algumas sugestões de pauta para os debates sobre organização dos poderes, em especial sobre a competência do próprio STF. Eis as sugestões, que permitem trocar o significado "meramente literal" do texto, por outro, mais "avançado":

1 ) Mandatos de ministros do STF
A redação meramente literal do artigo artigo 100 estabelece que "…os ministros do Supremo Tribunal Federal (…) aposentar-se-ão, compulsoriamente, aos 75 anos de idade". Outro caso de "história emperrada". Esse dispositivo fica bem melhor se interpretado assim: "Exercerão mandatos de oito anos, renovável por mais oito".

2) Composição do STF
A redação meramente literal do artigo 101, parágrafo único, estabelece: "Os ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal". Em nome de uma melhor compreensão da separação de poderes, o STF deveria interpretar esse dispositivo de um modo que, a cada vaga surgida, o novo ministro fosse indicado alternadamente pelo presidente da República, pela Câmara dos Deputados e pelo Conselho Federal da OAB, sendo sempre necessária a aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal.

3) Composição do Conselho Nacional de Justiça
O texto da CF/88, na intepretação meramente literal do artigo 103-B, em seus 13 incisos, estabelece que o órgão de controle assim chamado "externo" do Poder Judiciário possui na verdade uma esmagadora maioria de integrantes oriundos da própria magistratura, indicados por tribunais superiores. É controle interno, e da cúpula, portanto. Certamente só não foi atualizado ainda devido à inercia legislativa. É história emperrada. Esse artigo ficaria bem melhor se interpretado de modo que o presidente da República, a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil indicassem, cada um, um terço das vagas do Conselho Nacional de Justiça, devendo o Senado Federal aprovar a indicação pela maioria absoluta.

4) Competências do Conselho Nacional de Justiça
De acordo com a redação meramente literal do artigo 103-B, § 4º, "compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes…". Que tal interpretarmos "controle da atuação administrativa" de forma mais criativa? Ele poderia significar algo como "amplas revisões de decisões de gestão, inclusive para rever projetos de lei propostos por tribunais tratando da estrutura da carreira, decisões sobre gestão do orçamento, revisão de concursos públicos etc.".

Para todas essas matérias, com alguma criatividade argumentativa, é possível afirmar que demandam há muito alguma espécie de reforma constitucional, as quais somente não foram ainda aprovadas devido à "inércia legislativa", o que autorizaria o tribunal a "empurrar a história quando ela emperra". O problema é que uma tal postura pode, com o tempo, reverter contra o próprio tribunal. Afinal, se o que importa realmente não é o texto, mas as rebuscadas técnicas interpretativas utilizadas por aqueles autorizados a interpretar esse mesmo texto, pode ser que o distinto público comece a perguntar: qual a utilidade de um texto constitucional, já que ele nunca tem significado relevante? E qual a utilidade de um tribunal destinado a exercer a guarda desse texto?

No início dos anos 1930, no ambiente de crise institucional permanente vividos pela Alemanha durante a República de Weimar, Carl Schmitt levantava reservas contra a expansão da competência política dos tribunais, pois "se o Judiciário se expandir para um assunto que não pode mais ser judicial, o Judiciário só poderá ser prejudicado. Porque (…) o resultado não seria uma juridificação da política, mas uma politização do Judiciário" (SCHMITT, 2016, p. 22). A posição de Schmitt no debate daqueles anos é sabidamente controvertida, e não é meu ponto aqui defendê-la. Mas suas palavras parecem descrever com fidelidade a situação de uma corte que, ao expandir suas competências políticas no últimos anos, ao invés de domesticar constitucionalmente a política, parece colaborar para politizar cada vez mais a Justiça. De todo modo, os defensores de uma jurisdição constitucional expansiva e criativa precisam decidir: ou o STF tem legitimidade para legislar, ainda que sob formas processuais filosoficamente ornamentadas, e então é razoável esperar que todas as forças políticas com alguma capacidade de influência estejam representadas no tribunal; ou então o STF deve adotar posturas de autorrestrição e reduzir dramaticamente a judicialização da política que marcou as últimas décadas. Defender um STF legislador e, simultaneamente, rejeitar que forças políticas com capacidade de pressão ocupem espaço no tribunal, mais que uma contradição teórica, é enorme ingenuidade prática.

 

Referências bibliográficas
BARROSO, 2017. A Razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens (orgs). A Razão e o Voto: diálogos institucionais com Luís Roberto Barroso. São Paulo: FGV, 2017, pp. 25-75.

BARROSO, Luís Roberto. País iniciou transição para o voto facultativo, que é o ideal, diz Barroso, presidente do TSE. Entrevista concedida a Matheus Teixeira e Leandro Colon. Folha de São Paulo. 06/12/2020. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/12/pais-iniciou-transicao-para-o-voto-facultativo-que-e-o-ideal-diz-barroso-presidente-do-tse.shtml.

OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. 2020. Judicialização da Política, Auto-restrição judicial e a Defesa da Constituição: algumas lições de Carl Schmitt em Der Hüter der Verfassung. Revista Doispontos. Dezembro de 2020. Dossiê: "Direito e política: a judicialização da política e a politização do sistema jurídico".

RODRIGUES, Fernando. "Derrota de Rodrigo Maia no STF é grande vitória de Bolsonaro", 2020, in https://www.poder360.com.br/analise/derrota-de-rodrigo-maia-no-stf-e-grande-vitoria-de-bolsonaro/.

SCHMITT, Carl. Der Hüter der Verfassung. 5ª ed. Berlin: Duncker & Humblot, 2016.

 


[1] Discuto esse tema em "Judicialização da Política, Auto-restrição judicial e a Defesa da Constituição: algumas lições de Carl Schmitt em Der Hüter der Verfassung", artigo que será publicado em dezembro próximo na revista doispontos, no dossiê: "Direito e política: a judicialização da política e a politização do sistema jurídico".

[2] BARROSO, Luís Roberto. País iniciou transição para o voto facultativo, que é o ideal, diz Barroso, presidente do TSE. Entrevista concedida a Matheus Teixeira e Leandro Colon. Folha de São Paulo. 06/12/2020. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/12/pais-iniciou-transicao-para-o-voto-facultativo-que-e-o-ideal-diz-barroso-presidente-do-tse.shtml.

[3] Fux "falou a vários colegas que votaria a favor da tese apresentada por Gilmar. Disse isso também, mais de uma vez, a Davi Alcolumbre, com quem celebrava o fato de serem ambos judeus e no comando de dois poderes da República" Já Barroso "manifestou internamente a colegas no STF restrições ao passado do deputado Arthur Lira (PP-AL), o preferido do Planalto para ser presidente da Câmara. Sinalizou que votaria a favor do texto de Gilmar, inclusive até fazendo um voto separado para evitar ter de dizer que estava apenas seguindo o que propôs seu conhecido desafeto". RODRIGUES, Fernando. "Derrota de Rodrigo Maia no STF é grande vitória de Bolsonaro", 2020, in https://www.poder360.com.br/analise/derrota-de-rodrigo-maia-no-stf-e-grande-vitoria-de-bolsonaro/.

Autores

  • Brave

    é professor associado de Direito Constitucional da Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em Direito e coordenador do GConst/UFSC/CNPq — Grupo de Pesquisas em Constitucionalismo Político.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!