Observatório constitucional

Hermenêutica constitucional feminista ressoa no STF

Autores

  • Christine Peter da Silva

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília professora titular de Direito Constitucional do UniCeub-DF e secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral.

  • Carolina Gomide de Araújo

    é bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e discente-pesquisadora do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC/ICPD/UniCeub).

12 de dezembro de 2020, 8h00

O julgamento do Recurso Extraordinário nº 576.967, que analisou a constitucionalidade da inclusão do salário-maternidade na base de cálculo da contribuição previdenciária incidente sobre remuneração, impulsionou a reflexão que trazemos aqui nesta estimada e prestigiada coluna do Observatório Constitucional.

O constitucionalismo feminista ilumina uma concepção de Estado democrático de Direito fundado na igualdade, na perspectiva crítica das instituições e institutos, no deslocamento de temas considerados periféricos ao centro dos debates constitucionais, na ênfase para a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, nos aportes do constitucionalismo comparativo e na visão interseccional e plural para a hermenêutica dos temas constitucionais.[3]

Se o constitucionalismo clássico estuda a organização do Estado e o sistema de direitos fundamentais sob as perspectivas liberal e/ou social, a sua vertente feminista busca relê-los sob a inflexão dos feminismos, sendo importante deixar claro que a proposta metodológica que permeia a reflexão aqui posta é a leitura dos direitos fundamentais sob a perspectiva de uma das possibilidades de feminismo, qual seja, aquela que faz a pergunta da mulher.[4]

Insistente é a assertiva de que o Direito Constitucional brasileiro ainda não assimilou os pressupostos e exigências do movimento feminista, especialmente quanto ao compromisso pela efetividade dos direitos fundamentais das mulheres, decorrendo daí a necessidade de criação de uma teoria da constituição feminista, com influência da proposta de construção de uma teoria de Estado de mesma natureza, tal qual defendida, há muitas décadas, por Catharine Mackinnon[5].

A ausência da opinião da mulher na produção legislativa, na formulação de políticas públicas, bem como na concretização das normas jurídicas, desqualifica a vida pública e privada das mulheres, ao negar espaço e visibilidade à própria experiência feminina na cultura e na sociedade.[6]

A proposta de análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no RE nº 576.967, à luz da hermenêutica constitucional feminista, então, perpassará pela análise dos dispositivos constitucionais em discussão neste precedente, evidenciando a participação feminina em sua hermenêutica constitutiva.

O recurso é o caso paradigma do Tema 72 da sistemática de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal. O tema constitucional que foi decidido pelo Plenário da Suprema Corte assim ficou registrado: "Inclusão do salário-maternidade na base de cálculo da Contribuição Previdenciária incidente sobre a remuneração". 

A repercussão geral do tema foi reconhecida pelo Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, em 26/04/2008, nos termos da proposta do então relator, ministro Joaquim Barbosa. O processo foi incluído em pauta e teve julgamento iniciado em 06/11/2019, no Plenário presencial do Supremo Tribunal Federal. Em tal oportunidade, após os votos dos ministros Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, pediu vista o ministro Marco Aurélio. Em 15/06/2020, o Marco Aurélio liberou o processo para continuidade de julgamento, que ocorreu em Plenário virtual assíncrono.

Importante registrar que o RE tem sua origem processual em 31/07/2006, como mandado de segurança preventivo impetrado pelo Hospital Vita Batel S.A., no qual se alegava que a incidência da contribuição previdenciária sobre o salário maternidade afrontava o artigo 195, I, a, da Constituição. O juízo de primeiro grau proferiu sentença denegatória da segurança, a qual foi mantida integralmente pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Em face desse acórdão, foi interposto recurso extraordinário.

Em suas razões recursais, o recorrente sustentou, perante o plenário da Suprema Corte brasileira, que a contribuição previdenciária incidiria somente sobre os pagamentos efetuados em razão da contraprestação de serviços, o que não ocorre no período de fruição da licença maternidade. Apontou que o salário maternidade não se enquadrava nos conceitos de "folha de salários" ou "demais rendimentos do trabalho", previsto no artigo 195, I, a, da Constituição, e que não competia ao legislador ordinário criar fonte de custeio para a seguridade social, sem correspondência às hipóteses estabelecidas na referida norma constitucional.

Na tribuna, o advogado do recorrente, Renato Guilherme Machado Nunes, apontou que o salário maternidade é um mecanismo de "abrandamento" das consequências de ordem financeira que afetam a mulher no período pós parto. Relembrou que o benefício foi alçado à estatura constitucional pelos artigos 201 e 203 da Constituição da República de 1988, como consequência da proteção à maternidade e à mulher, no mercado de trabalho, direitos fundamentais assegurados pelo artigo 5º, inciso I, 6º, 7º, incisos XIII, XX  e XXX, bem como pelo artigo 10 do ADCT, todos da Constituição.

O advogado do recorrente apontou também, em seu discurso, que a questão tributária é importante, mas a possibilidade de criação de um mecanismo tributário estimulador da discriminação de gênero era o ponto mais sensível do debate. Mostrou-se, no particular, um jurista afinado com os pressupostos da hermenêutica constitucional feminista.

A decisão definitiva do precedente foi tomada em julgamento virtual finalizado em 05/08/2020, quando foi fixada a seguinte tese: "É inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário maternidade".

Três foram as mulheres que participaram do julgamento, uma delas advogada, Daniela Lima Andrade, e as outras duas, as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, as quais serão referenciadas e citadas como forma de demonstrar a participação de mulheres na interpretação constitucional dos direitos fundamentais em debate.

Cinco advogados falaram da tribuna, desses, quatro eram homens. A única advogada mulher falou em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Daniela Lima de Andrade Borges, que é mestra em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e é professora de Direito Tributário na graduação dos Cursos de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Faculdade Baiana de Direito, bem como na pós-graduação da FBD.

Durante sua sustentação, a advogada utilizou o pronome "vocês" para se dirigir à Corte, motivo pelo qual foi interrompida pelo ministro Marco Aurélio, que expressou em voz alta: "Presidente, novamente, advogado se dirige aos integrantes do Tribunal como ‘vocês’? Há de se observar a liturgia. É uma doutora, professora”. A advogada, então, respondeu: “Peço desculpas a Vossa Excelência. Talvez pelo nervosismo. O senhor, Vossa Excelência, tem toda a razão. Peço desculpas. É o que posso fazer no momento".

Importa registrar que o ministro Marco Aurélio afirmou expressamente durante o julgamento: "(…) uso a palavra apenas para lançar uma ideia e estava pronto a votar no sentido do desprovimento do recurso. Convenci-me do contrário, principalmente tendo em conta o que sustentado pela 'mãe docente", doutora Daniela Lima Andrade: "é possível conceber-se contribuição social a cargo do empregador se ele não satisfaz a parcela geradora dessa mesma contribuição social, posto que o ônus é da Previdência?" (…)

No julgamento do RE, aqui em análise, a ministra Rosa Weber, em voto de quase 8 min, acompanhou o relator. Fundamentou seu posicionamento no argumento de que, quando a legislação foi alterada para transferir a obrigação do pagamento do salário maternidade para o Estado, ao seu juízo, transformou o que era uma causa de interrupção do contrato de trabalho em uma causa de suspensão, entretanto, relembrou que a doutrina trabalhista não é unânime nesse ponto. 

Apesar de acompanhar o Relator pela inconstitucionalidade da norma, importante consignar que quanto à questão de gênero, a Ministra Rosa Weber afirmou expressamente que: "não tem maior relevo a circunstância, e nesse ponto concordo com o ministro Alexandre de Moraes, especificamente a questão de gênero, porque, hoje, o benefício foi estendido para mãe adotante, o pai adotante, hoje se prevê (…) que prevê que na hipótese de falecimento da segurada, passa o direito de recebimento do salário-maternidade ao cônjuge e companheiro sobrevivente. Então, na verdade, hoje o benefício tem um caráter muito mais amplo e nada a ver, exclusivamente, com a própria situação feminina ou com a condição de 'empregadas', existência de vínculo de emprego, trabalhadoras avulsas também tem direito ao salário-maternidade, na verdade, o salário maternidade é um benefício previdenciário assegurado a quem detiver essa condição, aos segurados da previdência social enquanto detiver aqueles requisitos previstos em lei".

A ministra Cármen Lúcia, terceira mulher que efetivamente participou do julgamento em análise, proferiu voto de apenas 1 minuto, não chegando a discorrer sobre a questão de gênero, mas concordando com o relator, integralmente. Pela análise do discurso na referida decisão, não se sabe a posição de Cármen Lúcia quanto à questão da igualdade de gênero, portanto.

Registrada a participação das mulheres na interpretação constitucional em análise, seja como julgadoras ou como advogada da tribuna, passa-se agora a uma análise do discurso utilizado pelos demais magistrados, a partir dos pressupostos da hermenêutica constitucional feminista.

Ao fazer alguns comentários sobre o voto do ministro Alexandre de Moraes, o ministro Roberto Barroso, relator, apontou que: "é evidente que há uma questão tributária, os empregadores não querem recolher, estou de acordo, a questão é saber se isso impacta, ou não, as mulheres".

O constitucionalismo feminista não exclui a análise dos problemas a partir da dogmática-jurídica clássica, entretanto, reforça, como o fez o Ministro Barroso, que a existência de uma questão tributária e/ou previdenciária não impede que sejam debatidos pela Corte os efeitos da decisão para as mulheres. É a pergunta da mulher, que se coloca no ambiente dogmática constitucional, tal qual exigido pelo artigo 5º, I, da Constituição da República de 1988.

A utilização de barreiras processuais bem como de discurso que desperdiça a oportunidade de discutir pautas que afetarão a vida das mulheres não é condizente com a hermenêutica constitucional feminista. Se a discussão de fundo é tributária, portanto, o método da hermenêutica constitucional feminista propõe que se analise o sistema como instrumento potencializador de justiça social, diminuindo exclusões históricas, como a das mulheres, por exemplo, em relação ao mercado de trabalho.

As áreas dos direitos fundamentais não são isoladas, na visão do constitucionalismo feminista, de modo que o direito tributário também deve ser interpretado à luz dos direitos fundamentais sociais e vice-versa, em busca de concretizar os direitos fundamentais de todos e todas, inclusive das minorias, em geral, e das mulheres, em especial.

O ministro Edson Fachin, ao acompanhar o Relator também reafirmou a inconstitucionalidade da norma impugnada, apontando ser o caso de dupla inconstitucionalidade manifesta: a primeira ofensa constitucional seria formal,  em razão da obrigatoriedade de edição de lei complementar para estipulação de nova forma de custeio da seguridade social, argumento de dogmática jurídico tributária; mas também afirmou, como segundo fundamento de inconstitucionalidade, que: "se não fosse isso, a questão da igualdade e a questão de gênero, com todas as vênias, não é discurso metajurídico, a menos que consideremos o inciso I, do artigo 5º, da Constituição como estando fora do direito e não está. A igualdade é um dever constitucional e é estatuído, quer como regra, quer como princípio, e tem eficácia normativa vinculante e, portanto, nesse sentido, ainda que lei complementar houvesse, haveria uma inconstitucionalidade material no sentido não de preservar a diferença, mas de transformar a diferença numa discriminação, portanto uma desigualdade que não se justifica no plano de respeito à diferença".

O voto de Fachin é exemplo de utilização da hermenêutica constitucional feminista, ao qual propõe que, ao lidar com os problemas jurídico-constitucionais típicos, a partir de uma visão plural, aberta e tolerante, reconhece a igualdade de gênero como questão de dogmática-jurídica, a qual preza pela garantia de uma diferença não desigual.

A advogada Daniela Lima Andrade também sustentou sua tese em discurso que revela os pressupostos da hermenêutica constitucional feminista, pois lembrou que o dispositivo constitucional que determina a igualdade entre homens e mulheres perante a lei é eficaz, mas sua efetividade depende de que o Poder Legislativo elabore leis que garantam essa igualdade e de leis que não a violem.

Afirmou, ainda, Daniela, que a igualdade de gênero depende também de o Poder Executivo criar políticas públicas que garantam essa isonomia e também depende que o judiciário possa fazer cessar a lesão, quando os demais poderes não o fazem. Ressaltou que a isonomia não é só uma norma jurídica, enquanto princípio, mas também um dos valores mais caros em qualquer Estado que se proponha democrático. Finalizou apontando que a isonomia não é a supressão da diferença, pois todos somos diferentes, mas tais diferenças não podem justificar ou legitimar menos direitos para uns ou para outros.

O constitucionalismo feminista requer, necessariamente, um pensamento que associa teoria e prática, pois a percepção das inúmeras formas das discriminações de gênero precisa ser estudada e transformada em ações que façam chegar às instituições o método da hermenêutica constitucional feminista para análise de seus atos normativos e decisões.

O caminho para a consolidação de uma hermenêutica constitucional feminista entre nós ainda é íngreme e com muitos desafios, mas já é possível perceber que a caminhada está em marcha e muitas mulheres e homens brasileiros já estão dispostos a conhecer as possibilidades e as consequências benéficas, para toda a sociedade, do reconhecimento da igualdade de gênero como vetor do Estado Democrático de Direito. O RE nº 576.967 é mais passo nessa longa caminhada.

[3] BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012, p. 2-4.

[4] BARTLETT, Katharine T. Cracking Foundations as Feminist Method, in The American University Journal of Gender, Social Policy & the Law 8, n.1 (2000), 31-54. Vide também: GRESCHNER, Donna. “Can Constitutions be for Women too? , in Dawn Currie and B. Maclean, eds. The Administration of Justice, Saskatoon: University of Saskatchewan Social Research Unit, 1986.

[5]  MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1991.

[6]  SILVA, Christine Oliveira Peter da. Por uma Teoria Feminina da Constituição. In: Leite, George Salomão; Novelino, Marcelo; Rocha, Lilian Rose Lemos.. (Org.). Liberdade e Fraternidade – A contribuição de Ayres Britto para o Direito. 1ed.Salvador: Editora JusPodivum, 2018, v. 1, p. 655-677.

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