Opinião

Sobre William Shakespeare e o Direito

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12 de dezembro de 2020, 6h05

Neste artigo, falaremos sobre um clássico da literatura mundial: "Medida por medida", do festejado dramaturgo inglês William Shakespeare.

A sobredita peça, escrita em 1604, trata de questões jurídicas de alta relevância e de dilemas que, séculos após, continuam a intrigar a sociedade contemporânea.

Outrossim, antecipa a discussão hermenêutica levada a efeito pelos juristas do século XIX, debate esse que persiste até os dias atuais. Tais reflexões são atemporais, como soem ser todas aquelas que emergem dos clássicos.

Vamos, então, sem demoras, ao exame desse clássico.

O enredo gira em torno de dois eixos principais, interdependentes:

1) Preocupado com os rumos de seu governo em razão da "imoralidade que norteia Viena", seu chefe maior, o duque Vicêncio, resolve simular uma viagem e permanece na cidade, disfarçado de monge, para melhor observar o funcionamento da sociedade. Em seu lugar, para lhe substituir, deixa lorde Ângelo, que ostenta fama de ser probo, leal; enfim, um exemplo de virtude.

2) Logo no início do governo temporário, Cláudio engravida sua noiva Julieta antes do casamento e é levado ao julgamento de Ângelo, com base no antigo Código de Costumes, quase em desuso, que comina a pena de morte a quem "desonrar uma virgem".

A partir daí se desenha a história.

Ângelo, pretendendo demonstrar firmeza e retidão de caráter, decide restaurar antigas leis vigentes em Viena e se mostra absolutamente irredutível na aplicação da pena capital a Cláudio, ainda que esse manifestasse intenção de assumir sua responsabilidade e casar com a moça.

Algumas pessoas tentam interceder por Cláudio, considerado um rapaz trabalhador e cumpridor de seus deveres, mas Ângelo faz ouvidos moucos. Sua justificativa é que a lei deve ser cumprida independentemente de qualquer circunstância.

Lúcio, amigo de Cláudio, sugere que a irmã desse último, Isabela, noviça que se prepara para fazer seus votos, interceda pelo irmão junto a lorde Ângelo.

E assim ela o faz.

Implorando por leniência para seu irmão, Isabela ouve de Ângelo ser impossível acatar seu pedido, eis que:

"É muito tarde; Cláudio já se acha sentenciado".

E acrescenta:

"Resignai-vos, bela menina, mas é a lei que pune vosso irmão, não sou eu. Fosse ele, embora, meu parente, irmão, filho, pouco importa: morreria amanhã".

Isabela, então, questiona Ângelo: "Quem, até hoje, morreu já por tal crime? No entretanto, muitos o cometeram".

Ao que Ângelo redargui: "A lei não estava morta, a lei apenas cochilava (…). Agora está acordada, observa quanto passa e, qual profeta, vê num espelho os crimes do futuro, quer novos, quer gerados por desleixo (…)".

Contudo, após longo e acalorado debate, Ângelo, revelando sua verdadeira faceta, aduz que há um único modo de perdoar Cláudio e faz uma proposta à Isabela: que ela durma com ele em troca da vida de seu irmão.

Isabela se nega, argumentando que "(…) é melhor que o irmão morra de um lance, do que ficar morrendo eternamente a irmã, para salvá-lo".
E ameaça Ângelo: "Hipocrisia tudo, hipocrisia! Cuidado, Ângelo! Vou desmascarar-te! Vais assinar-me logo a liberdade de meu irmão, se não, com toda a força dos pulmões vou gritar por esse mundo que espécie de homem tu és".

Mas Ângelo não se deixa intimidar e diz para Isabela que ninguém há de acreditar nela:

"Quem dará crédito ao que disseres, Isabela? Meu nome sem mácula, a austereza do meu modo de viver, a formal contestação a quanto asseverardes, e meu posto dentro do Estado, tanto a vossas queixas hão de prevalecer que heis de asfixiar-vos em vosso próprio conto, só restando de tudo, ao fim, um cheiro de calúnia".

Isabela, então, se dirige à prisão e conta ao irmão: "Acreditas-me, Cláudio? Poderias deixar esta prisão se eu consentisse em dar-lhe a virgindade".

Ao que Cláudio replica, tentando convencer a irmã a aceitar a indecorosa proposta: "Querida irmã, deixai que eu viva! Sim, qualquer pecado cometido somente para a vida de um irmão resgatar, de tal maneira o escusa a natureza, que ele acaba tornando-se virtude".

Isabela, contudo, se recusa, dizendo: "Morre, irmão! Isabela, sê sempre pura! Os irmãos passam, a pureza dura".

Contudo, duque Vicêncio, disfarçado de monge, ouve toda a conversa e arquiteta um plano para ajudar aos irmãos.

No passado, Ângelo teria enjeitado sua noiva, Mariana, e cancelado o casamento, porque o dote que lhe seria oferecido por ela teria afundado em um naufrágio.

O duque, então, chama Mariana e lhe indaga sobre a persistência de sua vontade de casar com Ângelo, ao que ela responde afirmativamente.

O plano do duque era ousado: combinou com Isabela de fingir para Ângelo a aceitação de sua proposta indecente, sendo que ela deveria ajustar com ele de se encontrarem naquela mesma noite, em um local isolado e escuro. Em seu lugar, contudo, quem deitaria com Ângelo, seria Mariana. E assim foi feito.

No dia seguinte, após deitar-se com Mariana, acreditando tê-lo feito com Isabela, entretanto, Ângelo, mais uma vez demonstrando seu caráter torpe, descumpre o trato e decreta que matem Claudio, ordenando que, cumprida a sentença, lhe trouxessem sua cabeça.

Todavia, o duque, antecipando a conduta de Ângelo e contando com o auxílio do carcereiro, manda suspender a ordem e determina que entreguem a Ângelo a cabeça de outro prisioneiro, que havia morrido na cela.

Ao final, Ângelo é desmascarado em praça pública pelo duque, que acaba por condená-lo, não à morte, como deveria, para aplicar a mesma medida por ele utilizada contra Cláudio, mas a se casar com Mariana.

Shakespeare era um amante do Direito. Em suas obras, questões jurídicas estão por toda a parte.

Na peça em exame não é diferente: versa sobre o juiz natural, sobre a imparcialidade e limites na atuação do juiz, sobre legalidade, equidade, autoritarismo, abuso de Direito e positivismo.

Em determinado trecho da peça, Ângelo obtempera: "A lei não estava morta, a lei apenas cochilava (…)".

Deparamo-nos, logo no início, com a problemática que assombra os operadores do Direito até os dias atuais: pode o juiz deixar de aplicar ao caso concreto uma lei que caiu em desuso?

Consoante estatui o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

Desse modo, o julgador, ao examinar o caso concreto, deve atentar à finalidade social da norma, evitando ser mero tecnicista replicador da letra fria da lei.

O juiz não é escravo da lei.

Destarte, deve observar a função finalística da norma, repelindo a concepção positivista kelseniana, que propugna que julgar é meramente aplicar a regra ao caso concreto, sem qualquer juízo de valor ético ou convicção ideológica.

Nesse diapasão, uma lei que caiu em desuso, seja porque deixou de atender aos fins sociais que levaram à sua promulgação, seja porque passou a representar violação à Constituição Federal ou apresentar antinomia em relação a uma norma de direito internacional, deve ser declarada inválida pelo magistrado e, por conseguinte, não aplicada.

Na hipótese versada na peça, a finalidade da norma era de não legar à margem da sociedade uma "donzela desonrada", obstando que ela restasse privada do matrimônio — finalidade primeira e última da educação das mulheres naquela época, por não ser mais virgem.

No entanto, Cláudio amava Julieta e queria com ela contrair núpcias, o que ainda não havia ocorrido por uma questão burocrática.

Assim sendo, a finalidade da norma estava atingida, descabendo, pois, a aplicação da pena capital.

A peça também registra lições irrepreensíveis sobre o dever de imparcialidade do juiz, requisito de Justiça e validade do processo.

É exatamente para que o magistrado possa atuar com isenção e independência, fazendo valer o cânone da imparcialidade no julgamento, que a CF de 1988 assegura a ele as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios.

Tal atributo impõe que o juiz examine as causas postas à sua apreciação buscando "nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito" (artigo 8º do Código de Ética da Magistratura).

E não se está aqui falando em neutralidade — que é um mito, eis que o juiz carrega consigo suas vivências e ideologias, sendo impossível que delas se dispa antes de sentenciar —, mas de imparcialidade, dever de quem julga.

Como cediço, essa imparcialidade, que decorre do princípio do juiz natural, garante ao litigante a certeza de que o órgão que irá lhe julgar o faça com isenção e equanimidade, na forma do que prescrevem os artigos 95, parágrafo único, incisos II, III e IV da Carta Magna e o artigo 8º do Código de Ética da Magistratura

Também se origina dos diversos instrumentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, que preconizam o tratamento justo, público, igualitário e imparcial a todos os cidadãos que buscam o Judiciário, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 10), a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (artigo 8º) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 14), todos eles integrantes do nosso ordenamento jurídico por força do que assenta o artigo 5º, §3º, da Carta Magna.

Logo após, Shakespeare traz o retrato de uma das mais relevantes obrigações que reveste a atuação judicial: a fundamentação das decisões judiciais.

A Constituição Federal assenta como requisito de validade das decisões judiciais a sua apropriada fundamentação (artigo 93, X). Na mesma linha está o CPC, conforme estatuem os artigos 371 e 489, II.

Assim, não basta pronunciar sua decisão, o julgador deve demonstrar o raciocínio dedutivo linear que o fez chegar aquele determinado silogismo.

Na peça, Ângelo não fundamenta sua decisão.

Mais do que isso, incorre em grave contradição ao utilizar dois pesos e duas medidas para uma mesma conduta: enquanto condena Cláudio por haver "fornicado" com sua noiva, pretende "fornicar" com a irmã de Cláudio em troca do perdão à sua pena.

Insta ressaltar, oportunamente, que o julgador que assim age relativiza a lei, a seu bel-prazer e incorre em grave violação aos princípios da legalidade, da isonomia e da imparcialidade, que norteiam a atuação judicial, sem falar que comete o crime de prevaricação, previsto no artigo 319 do Código Penal ("Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal").

É à relativização da lei praticada por Ângelo — cuja conduta autoritária acaba por ofender o Estado democrático de Direito — a que Isabela se refere quando fala:

"Oh, bocas cheias de perigos, que, com uma língua apenas, tanto podem matar como dar vida, dobrando a lei com tais e tais caprichos, que o justo e o injusto espetam no apetite que os maneja à vontade!".

Outrossim, o escalo — espécie de conselheiro do duque — resume com maestria a peça: "Que lhe perdoe o céu, como a nós todos! Uns sobem pelos crimes; outros caem pela virtude. Alguns impunemente vivem sempre, nos vícios atolados, outros por uma falta são julgados".

Por derradeiro, uma indagação: o que faz de "Medida por medida" um clássico?

Busquemos a resposta na célebre lição de Ítalo Calvino:

"Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos".

Deixemos nos surpreender pelos clássicos, então.

Como enfatiza a professora de Direito Constitucional da UF-PR Vera Karam, "a literatura abre um espaço de reflexão e de ação mais crítico, porque é mais sensível às especificidades do humano".

Assim, trazer a literatura para a nossa vida pessoal e profissional é tratar de se humanizar, de alçar voos, de ponderar o imponderável, enfim, de evoluir.

É o que prega Roland Barthes, para quem "A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa (…)".

Leiamos, pois!

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