Diário de Classe

Reasonable doubt e in dubio pro reo: voluntarismo mascarado a partir da dúvida

Autores

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

12 de dezembro de 2020, 8h01

Caso 1
24 de janeiro de 2018. Por unanimidade, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) decide pela condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2ª instância no caso do triplex em Guarujá. Pela decisão também foi ampliada a pena do ex-presidente da República para 12 anos e um mês de prisão, com início em regime fechado. O desembargador João Pedro Gebran Neto, relator do caso, fundamentou sua decisão no fato de que haveria provas "acima de dúvida razoável" de que o apartamento triplex estava destinado a Lula como vantagem, com base em: depoimentos de Leo Pinheiro, ex-presidente da OAS e réu no processo, e Agenor Franklin Magalhães Medeiros, diretor da área de óleo e gás da construtora OAS e réu no processo; mensagens de celular de Leo Pinheiro se referindo ao projeto do "chefe" e da "madame", que seriam Lula e sua esposa Marisa Letícia; testemunhos de funcionários da OAS, de empresas contratadas para a reforma do triplex

e de funcionário do edifício Solaris sobre as obras e visitas de Lula e Marisa ao imóvel. O desembargador citou ainda depoimentos de delatores da "lava jato" — como Alberto Yousseff, Nestor Cerveró e Paulo Roberto Costa que confirmavam informações de Leo Pinheiro sobre o esquema de corrupção na Petrobras. A prova documental consistiu em documentos rasurados sobre o imóvel no condomínio em Guarujá encontrados na casa de Lula e na Bancoop. Gebran afirmou que Lula tinha conhecimento do que ocorria, era "garantidor de um esquema maior", "agia nos bastidores" e que influenciava nomeações da Petrobras. Restam, no entanto, algumas dúvidas razoáveis: qual desses elementos probatórios seria suficiente para comprovar a titularidade e uso do imóvel? Qual o ato praticado em retorno à suposta vantagem recebida?

Caso 2
9 de setembro de 2020. André Camargo Aranha é absolvido das imputações realtivas à prática de estupro de vulnerável em Florianópolis, pelo juiz Rudson Marcos, pela "ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza". Existia um laudo que confirmava a conjunção carnal, no entanto o juiz acredita no consentimento para a prática. Também existia um laudo toxicológico que, apesar de apresentar resultados negativos, era seguido de um laudo pericial que informava que a relatividade da análise se dava em razão da janela de tempo da ingestão e da coleta do material. A vítima relatou perda de memória e que houvera sido dopada e estuprada pelo acusado, mas ainda assim o juiz são outros os elementos hábeis a fundamentar uma condenação criminal. Todos os depoimentos, com exceção do da mãe da menina, são de pessoas que de alguma forma estão relacionadas com o evento e não possuem relação de proximidade com a vítima. Na maioria deles há o relato de que a menina estava embriagada. Ainda assim, no sentir do juiz, o relato de uma moça que claramente possuía controle motor e não apresentava distúrbio de marcha, segundo as imagens do local, não se reveste de suficiente segurança ou verossimilhança para autorizar a condenação do acusado. O juiz finaliza sua argumentação citando o livre convencimento motivado, afinal, para ele "melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente". Restam, no entanto, algumas certezas: os depoimentos relatam que a menina ingeriu bebida alcoólica.

Esses são dois dos casos de maior repercussão midiática dos últimos anos e que apontam para a necessária discussão acerca da forma como as decisões judiciais são tomadas e fundamentadas no Brasil. A dúvida fundada na falta de provas assume em cada caso contornos diferentes para fundamentar o que já houvera sido decidido antes mesmo da sentença. Propugna-se, com o presente texto, uma reflexão acerca da relativização de garantias processuais versus a busca pela consolidação do princípio da presunção de inocência.

Frisa-se de ínicio que existem respostas corretas em Direito e que o constitucionalmente adequado, tanto em se tratando de dúvida razoável, quanto de in dubio pro reo, necessariamente está vinculado à conservação da presunção de inocência, que não é relativizável. Ainda, é mister compreender que o Poder Judiciário tem a obrigação de decidir por princípios, o que está completamente dissociado da correção moral do Direito. Não podemos, com isso, deixar de (re)conhecer as táticas utilizadas para encobrir posturas incompatíveis com esse marco de garantia da democracia.

Primeiro, quanto a dúvida razoável, este instituto nasceu em torno da tarefa de dizer aos jurados quais os padrões que deveriam sustentar as suas decisões [1]. Seu desenvolvimento gerou dois tipos de regras probatórias na jurisdição de common law: a primeira relativa aos tipos de prova que podem ser apresentadas ao júri, ao momento e à forma da sua apresentação. A segunda, que interessa especialmente a essa discussão, diz respeito à avaliação da prova pelo júri, de como decidir se existe lastro probatório suficiente para justificar o veredito [2]. A avaliação da prova, portanto, deve levar em conta de que existem garantias constitucionais que devem ser percebidas tanto por culpados como por inocentes, ou seja, a ideia de que o réu é tão humano quanto o júri que o condena [3].

Segundo, adentrando ao concernente à garantia do in dubio pro reo, nesse mesmo sentido, se dá a justificação da impossibilidade de repartição do ônus da prova e, havendo dúvida sobre o fato relevante, é regra um julgamento a favor do acusado [4]. Esse é um princípio positivado na constituição pátria. Isso porque a alocação do ônus probatório se insere na concretização do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, que envolve não apenas garantias constitucionais mas também um compromisso judicial com o ônus justificativo, ou seja, com uma fundamentação íntegra e coerente [5].

Da "caça as bruxas" que o Judiciário vem promovendo, é resultante a busca pela ressignificação do princípio da presunção da inocência e do in dubio pro reo. O que se pode perceber, por consequência, é que não é qualquer dúvida que afasta uma condenação. Somente as razoáveis o fazem. Mas quais são as dúvidas razoáveis? A partir da breve análise desses dois casos, no Brasil, podemos dizer que são aquelas que interessam ao juiz. Sim. A presunção de inocência, a partir do emprego do in dubio pro reo, se consubstancia pela existência de provas. Contudo, quando é uma questão política, a presunção de inocência é afastada quando não se tem prova contundentes nos autos.

 


[1] SHAPIRO, Barbara J. Beyond Reasonable Doubt and "probable cause": historical perspectives on the Anglo-American law. Berkeley and Los Angeles, California: University of California Press, 1991. p. 1.

[2] SHAPIRO, Barbara J. Beyond Reasonable Doubt and "probable cause": historical perspectives on the Anglo-American law. Berkeley and Los Angeles, California: University of California Press, 1991. p. 1-3.

[3] WHITMAN, James Q. The origins of reasonable doubt: theological roots of criminal trial. New Haven e Londres: Yale University Press, 2008.

[4] BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. P. 296.

[5] STRECK, Lenio Luiz, 30 anos da CF em 30 julgamentos: uma radiografia do STF, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018, p. 335.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos/RS), membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), bolsista Capes/Proez e secretária administrativa da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL).

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