opinião

O prazo para progressão de regime de reincidente condenado por crime hediondo

Autores

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

  • André César Mariano da Silva

    é assistente Jurídico do TJ-SP e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMP-SP.

11 de dezembro de 2020, 21h36

Um dos temas de execução penal que mais ensejam interposição de recursos é o percentual necessário para a progressão de regime prisional quando o sentenciado cumpre pena por crime hediondo ou equiparado e é considerado reincidente. Discute-se na doutrina e na jurisprudência se a reincidência é a específica em crime hediondo ou equiparado ou é a genérica.

A questão já chegou ao Superior Tribunal de Justiça, existindo divergência entre as duas turmas competentes pela apreciação dos recursos de natureza criminal.

A 5ª Turma do Tribunal da Cidadania, interpretando sistematicamente o artigo 112 da Lei de Execução Penal, mais especificamente o inciso VII, defende que a reincidência é a genérica, ou seja, por qualquer crime. Segundo os ministros integrantes dessa turma, a jurisprudência histórica da corte "consolidou-se no sentido de que a condição de reincidente, uma vez adquirida pelo sentenciado, estende-se sobre a totalidade das penas somadas, não se justificando a consideração isolada de cada condenação e tampouco a aplicação de percentuais diferentes para cada uma das reprimendas" [1]. Em outras palavras, para fins de execução criminal, a condição de reincidente do sentenciado se estende a todas as suas condenações, inclusive aquelas cometidas ainda quando era primário, de modo que não há motivo para fazer diferenciação entre a natureza da reincidência, genérica ou específica.

Por outro lado, a 6ª Turma, em sentido contrário, defende que o artigo 112, incisos V e VII, da Lei de Execução Penal, após as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019, não contempla a hipótese do agente reincidente genérico, haja vista que o inciso V regula a pena do sentenciado condenado por crime hediondo ou equiparado e primário, ao passo que o inciso VII exige que o sentenciado seja reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado. Assim, inexistindo disposição legal específica para o agente condenado por crime hediondo ou equiparado e que ostente outra condenação definitiva por crime comum (reincidência genérica), a dúvida na interpretação deve sempre favorecer o réu, aplicando-se, portanto, o prazo previsto no artigo 112, inciso V, da Lei de Execução Penal, que exige o cumprimento de 40% da pena [2].

Resumidamente, enquanto a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, interpretando sistematicamente o artigo 112 da Lei de Execução Penal, mais especificamente o inciso VII, propugna pela reincidência genérica, ou seja, por qualquer crime, a 6ª Turma, em sentido contrário, defende que a dúvida na interpretação deve sempre favorecer o réu e, por isso, a reincidência a que se refere o dispositivo é a específica.

Toda essa celeuma decorre da alteração trazida pela Lei nº 13.964/2019, conhecida como pacote "anticrime", que deu nova redação ao artigo 112 da Lei de Execução Penal e estabeleceu prazos diferenciados para a progressão de regime, levando em consideração a hediondez do delito, seu resultado, ter sido cometido mediante violência ou grave ameaça, e a reincidência.

Além do mérito lhe ser favorável, para que possa ser deferida a progressão ao sentenciado há necessidade do cumprimento do prazo estabelecido no dispositivo, que é:

"I. 16% da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;
II. 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;
III.25% da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;
IV. 30% da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;
V. 40% da pena para o apenado primário condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado;
VI. 50% da pena, se o apenado for:
a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional;
b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou
c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada;
VII. 60% da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado;
VIII. 70% da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional".

Para ser mais fácil o entendimento da questão, antes de adentrarmos o tema, faremos breve análise histórica da evolução dos prazos para a progressão de regime prisional dos crimes hediondos e equiparados.

A Lei 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) determinava que os condenados por crime hediondo, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, ou terrorismo, deveriam cumprir a pena privativa de liberdade em regime integral fechado, sendo-lhes, portanto, vedada a progressão de regime, por expressa disposição legal do artigo 2º, §1º.

Desde a entrada da lei em vigor, referida vedação foi objeto de severas críticas por parte de alguns juristas que sustentavam a inconstitucionalidade do seu artigo 2º, §1º, por não possibilitar a individualização da pena, que é direito do preso consagrado no artigo 5º, XLVI da Constituição Federal.

O Supremo Tribunal Federal, em inúmeras decisões, pronunciou-se pela constitucionalidade do dispositivo [3]. Entenderam os ministros que cabe ao legislador ordinário, no uso da prerrogativa que lhe foi deferida pela norma constitucional, fixar os parâmetros dentro dos quais o julgador poderá efetivar a concreção ou a individualização da pena. No caso da Lei dos Crimes Hediondos, ao determinar que a pena fosse cumprida integralmente no regime fechado, o legislador não deixou ao juiz qualquer discricionariedade na fixação do regime prisional, que deveria ser obrigatoriamente o fechado. E nem se poderia alegar violação à norma constitucional, pois a própria Constituição estabeleceu que o legislador ordinário instituísse os crimes hediondos (artigo 5º, XLIII) e lhe conferiu competência para dispor sobre individualização da pena (artigo 5º, XLVI).

Entretanto, mudando drasticamente o seu anterior posicionamento, a Excelsa Corte, em decisão plenária, proferida por seis votos a cinco, entendeu que não caberia ao legislador ordinário vedar a progressão de regime prisional, por se tratar de direito do condenado decorrente do princípio da individualização da pena [4]. Somente com a progressão de regime prisional o preso teria as condições necessárias para se readaptar ao convívio social, o que ficaria mais difícil quando saído diretamente do regime fechado para a liberdade, seja pelo cumprimento integral da pena ou pelo livramento condicional, quando cabível. Além do que, a impossibilidade de progressão de regime prisional feriria o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF).

O Poder Legislativo, a fim de obstar que praticantes de crime hediondo ou equiparado tivessem o mesmo tratamento dado aos condenados por delitos de outra natureza, tratou de publicar a Lei 11.464, de 28/3/2007. Referida lei entrou em vigor no dia 29/3/2007 e deu nova redação ao artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos.

Por essa sistemática, os autores e partícipes de crimes hediondos ou equiparados (tortura, tráfico de drogas ou terrorismo) tinham tratamento mais rigoroso, haja vista serem esses delitos considerados pela Constituição Federal (artigo 5º, XLIII) como de especial gravidade. Para que pudessem obter a progressão de regime prisional, seja do fechado para o semiaberto ou deste para o aberto, era necessário cumprir dois quintos da pena (40%), caso primário, e três quintos (60%), se reincidente (artigo 2º, §2º), além de preencher o requisito subjetivo previsto no artigo 112 da Lei de Execução Penal e o seu mérito recomendar o benefício.

Note-se que o §2º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, expressamente revogado pelo artigo 19 da Lei 13.964/2019, referia-se apenas à reincidência, sem mais nada dizer, e, por isso, a jurisprudência consolidada a tinha como a genérica, ou seja, por qualquer espécie de crime.

A Lei 13.964/2019, que entrou em vigor no dia 23 de janeiro deste ano, alterou sobremaneira os prazos para a progressão de regime prisional, escalonando-os de acordo com a gravidade do delito e a reincidência do condenado.

Contudo, como ocorre em várias normas de natureza penal em vigor, falhas técnicas na redação e lacunas normativas deixam dúvidas na interpretação, cabendo à doutrina e jurisprudência dirimi-las, mediante o emprego de métodos hermenêuticos.

Vamos nos ater apenas aos dispositivos que tratam do prazo para a progressão de regime para os condenados por crime hediondo ou equiparado e tentar resolver a dúvida a respeito da natureza da reincidência (específica ou genérica).

No inciso VII do artigo 112 da LEP, a norma se refere à reincidência específica em crime hediondo ou equiparado, seja qual for, o que ensejará o prazo para progressão de regime prisional de ao menos 60% da pena.

No que concerne ao inciso VIII do mesmo diploma legal a reincidência específica será quanto à condenação por crime hediondo ou equiparado com resultado morte. NesSe caso, o prazo para a progressão de regime será de ao menos 70% da pena, sendo-lhe vedado, ainda, a obtenção do livramento condicional.

Em todos os casos em que a reincidência aumenta o prazo para a progressão de regime prisional, devem ser observadas as regras pertinentes previstas nos artigos 63 e 64 do Código Penal, inclusive o período depurador de cinco anos ("prescrição da reincidência").

Quanto aos crimes hediondos ou equiparados, o inciso V exige que o agente seja primário. Entretanto, a primariedade a que se refere a norma é a de não ter sido condenado anteriormente por delitos dessa natureza. Assim, mesmo que o apenado tenha anterior condenação transitada em julgado por crime comum, para efeito de prazo de progressão de regime, será tido como primário em crime hediondo ou equiparado. Dessa forma, v.g., já tendo sido condenado anteriormente por roubo agravado pelo concurso de agentes, vindo a receber posterior condenação por extorsão mediante sequestro, para efeito de progressão de regime, será considerado primário em crime hediondo ou equiparado e, por isso, o prazo para progressão pelo crime hediondo será de 40% da pena. Por outro lado, se condenado definitivamente por homicídio qualificado e sofrer nova condenação por extorsão agravada pelo emprego de arma, será considerado reincidente em crime comum, cometido com o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça, quanto ao crime patrimonial, sendo o prazo para progressão de 30%.

Outra hipótese possível é a concernente ao sujeito condenado por tráfico de drogas, crime equiparado a hediondo, que recebe posterior condenação definitiva por crime de furto simples, que é delito comum. Nesse caso, mesmo sendo os crimes de natureza diversa, o condenado não deixa de ser reincidente em crime cometido sem o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça, e, por isso, a melhor solução é, quanto ao crime equiparado a hediondo, o prazo para a progressão ser de 40% (inciso V) e, pelo delito comum, 20% (inciso II). Sendo o inverso, ou seja, sofrendo condenação por furto simples e outra posterior e definitiva por tráfico de drogas, como se trata de condenado primário pelas duas espécies de delito (comum e hediondo ou equiparado), quanto ao crime comum, o prazo será de 16% (inciso I), e pelo equiparado a hediondo, 40% (inciso V).

A reincidência mencionada pela norma quanto aos crimes hediondos ou equiparados é a específica, ou seja, quanto a delitos da mesma natureza. Destarte, por exemplo, o sujeito condenado com trânsito em julgado por tráfico de drogas que sofrer nova condenação por extorsão mediante sequestro, é considerado reincidente específico em crime hediondo ou equiparado e, portanto, o prazo para progressão de regime será de 60%.

O mesmo ocorre com o crime hediondo ou equiparado com resultado morte, que também exige reincidência específica para que o lapso da progressão de regime seja de 70%. A reincidência específica também se dá em qualquer crime hediondo ou equiparado que resulte morte, como homicídio qualificado, latrocínio, estupro seguido de morte, entre outros da mesma natureza. Como a norma é genérica, não especificando a natureza do resultado para o aumento do prazo para a progressão de regime do condenado por crime hediondo ou equiparado com resultado morte, o delito pode ser doloso ou preterdoloso.

Defendemos que se trata de reincidência específica porque as normas expressamente dizem "se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado", e "se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte", ou seja, se tiver sido novamente condenado por essas espécies de delito. A norma anterior revogada prevista no artigo 2º, §2º, da Lei dos Crimes Hediondos, referia-se apenas à reincidência para que a fração aplicável à progressão de regime fosse de três quintos da pena e, por isso, a reincidência era a genérica. As normas atuais não se limitaram como a anterior a dizer apenas reincidente. Assim, não há como interpretar de outro modo as regras a não ser no sentido de que a reincidência é a específica em crime hediondo ou equiparado.

É certo que há divergência de entendimentos na doutrina e na jurisprudência sobre qual percentual aplicar (40% ou 60%), existindo posicionamentos de ser necessária a reincidência específica ou bastando a genérica, como ocorria no sistema anterior. Nesse caso, ocorrendo conflito normativo, que não pôde ser solucionado, mesmo após a aplicação dos métodos hermenêuticos, deve prevalecer o posicionamento que mais favoreça o condenado em obediência ao princípio do favor rei.

Com efeito, o assunto é controvertido e certamente a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça em breve resolverá a questão, uniformizando sua jurisprudência.

 


[1] STJ: AgRg nos EDcl no HC 588.529/PR, Rel. Minº Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, v.u, j. em 06.10.2020.

[2] Nesse sentido: STJ: HC 607190/SP, 6ª Turma, Rel. Minº Nefi Cordeiro, v.u. j. em 06.10.2020.

[3] HC 68847/RJ, Rel. Minº Sepúlveda Pertence, j. em 21.10.1991; HC 70939/SP, Rel. Minº Celso de Mello, j. em 04.02.1994 entre outros.

[4] STF: HC 82.959-7/SP, Rel. Minº Marco Aurélio, j. em 23.02.2006.

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