Opinião

A crise da Covid-19, o professor e o direito de imagem

Autor

  • Jorge Batalha Leite

    é juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região tendo atuado previamente como magistrado na 15ª Região e como assessor de desembargador do Trabalho de 2009 até o seu ingresso na magistratura.

11 de dezembro de 2020, 16h16

A pandemia transformou 2020 em um ano que ficará registrado como um dos mais desafiadores, seja qual for o ângulo que se observe.

Para o Direito não foi distinto. A evolução normativa e jurisprudencial é por natureza gradativa, sem sobressaltos, refletindo primeiramente um valor que é dado pela sociedade a um fato e que posteriormente se torna norma. Ademais, a interpretação que é dada à norma passa por maturação pelos juristas e é posteriormente sedimentada no Poder Judiciário pelas reiterações dos julgados.

Ocorre que o período pandêmico impulsionou para a escala de meses a evolução da tecnologia de comunicação à distância e a realização de atividades em home office, por videoconferências e telepresencial, o que certamente demandaria o período de anos para se alcançar.

Nesse contexto, sobretudo para as atividades antes empreendidas pelos professores em salas de aula físicas, e agora por meio virtual, é necessário balizar quais os limites para o uso da imagem da pessoa que exerce o magistério.

Para os professores que lecionavam e lecionam em cursinhos, possivelmente não há maiores dilemas, já que é usual que as aulas sejam gravadas, transmitidas e disponibilizadas por tempo contratualmente previsto em pacotes dos mais variados tipos, havendo a correspondente paga conforme devidamente ajustado pelas partes.

Aqui merece se fazer distinção entre o ensino EAD (ensino à distância), já consagrado, e o que pode ser denominado de "ensino remoto". No ensino remoto temos algo similar ao ensino presencial, no qual a aula é dada ao vivo, através de plataformas de interação como Zoom e Google Meets, entre outras. Já no EAD as aulas, por regra, são gravadas e as interações são restritas a fóruns ou encontros.

Como se vê, para os professores de colégios e de universidades que possuíam contratos típicos para lecionar presencialmente, lançados agora no ensino remoto, os limites do empregador em relação ao uso do conteúdo que é ministrado é a zona gris que se procura esclarecer neste breve artigo.

Fixe-se a premissa de que o professor é, antes de tudo, um autor intelectual. Ele disponibiliza seu conhecimento e o expõe. O professor tem resguardados, sobretudo, sua imagem, voz, nome, material pedagógico por ele produzido e aulas que ministra.

O bem jurídico protegido, nas palavras do professor Leonardo Zanini, é a própria personalidade, aqui considerada como um todo, em que pese ser constituída de inúmeras facetas.

Nessas facetas se pode colocar que os direitos da personalidade são aqueles inerentes ao indivíduo, tais como liberdade, vida, honra, voz, imagem, entre outros, sendo irrenunciáveis e intransmissíveis, conforme dispõe o artigo 11 do Código Civil.

A utilização comercial da aula proferida pelo professor depende, assim, de sua autorização, eis que é o seu titular, sob pena de emergir o direito a correspondente contraprestação além de ressarcimento por danos. A imagem "é um espelho da personalidade do indivíduo que se for captada sem autorização por terceiro, fixada de forma duradora em um suporte material, publicada ou divulgada, acaba por ferir o direito que seu titular tem de dispor desse bem jurídico" [1].

Preocupou-se a Constituição Federal em assentar a todos o direito à indenização por dano material e à imagem conforme o seu inciso V do artigo 5º, sendo que o direito emergirá nas hipóteses em que houver uma lesão ou ainda um enriquecimento indevido daquele que explorou indevidamente o bem jurídico protegido.

No período em que as aulas presenciais estão vedadas por medidas de prevenção ao contágio pelo SARS-CoV-2 e a doença dele decorrente — Covid-19 —, é adequado se considerar como dentro do jus variandi patronal demandar que, fornecidos os equipamentos necessários (artigos 2º e 75-D da CLT), a aula seja ministrada de forma virtual, isto é, remota, e o labor realizado da própria residência do professor ou ambiente seguro.

Merece parênteses que a regra prevista na CLT é que a ida para o regime virtual, e vice-versa, deve ser por mútuo consentimento escrito, conforme §1º do artigo 75-C consolidado.

Não obstante, a MP 927/2020 disciplinou que, para o período de calamidade pública, a mudança é unilateral por parte do empregador, sendo que se justifica "a tomada de decisão do legislador, em aumentar a dimensão do poder direito do empregador neste particular, alterando-se o ajustado entre as partes no início do contrato de trabalho, porque neste caso a preservação dos empregos também encontrou a necessidade do isolamento social" [2].

Atente-se que muito embora a Medida Provisória 927 não tenha sido convertida em lei, as situações entabuladas no seu período de vigência continuam por ela reguladas nos termos do §11 do artigo 62 da Constituição Federal.

Retomando ao foco, é distinto ministrar uma aula em ambiente virtual de modo telepresencial, isto é, ao vivo, tal qual seria uma aula presencial, da gravação da mesma aula e sua disponibilização aos alunos.

Veja que não se discute a possibilidade daqueles que assistem fazerem anotações e até, por que não, breves gravações e registros para uso pessoal. É a evolução dos "cadernos" que os alunos usualmente montam com o conteúdo para revisitá-lo e reforçar o próprio aprendizado.

Pertinente o destaque de que a própria Lei de Direitos Autorais consagra que não constitui ofensa a reprodução do apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou (artigo 46, I, da Lei 9.610/98).

No entanto, é abusiva a gravação por parte do estabelecimento de ensino sem que haja previsão contratual expressa sobre essa possibilidade através de um aditivo prevendo as formas de uso, tempo e remuneração correspondente.

Observe-se que o simples aditivo sem que se preveja retribuição para tanto será nulo de pronto, eis que nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, em prejuízos ao empregado (artigo 468 da CLT). Procedendo dessa forma o empregador estará ampliando o seu ganho sem o correspondente equilíbrio da contraparte, rompendo o sinalagma e a comutatividade da relação empregatícia.

Não socorre o contratante quanto ao uso não remunerado da imagem, voz e conteúdo gravados do professor a previsão de que o laborista compromete-se a prestar todas as atividades que lhe forem competidas dentro dos limites da sua potencialidade a que alude o parágrafo único do artigo 456 da CLT, haja vista que lecionar em tempo real é distinto em amplitude com o lecionar e ter esse conteúdo salvo para reprodução futura com fins comerciais pela instituição de ensino.

Na situação em que não for prevista remuneração específica o desfecho será um arbitramento nos termos do artigo 460 da CLT.

Relembro que já é pacífico que o uso indevido de imagem gera ipso facto o direito a indenização (Súmula 403 do C. STJ), não sendo necessária a comprovação do prejuízo, sendo simples consequência da utilização não autorizada.

É nítido que atritos existirão, e não há como se olvidar que o contrato de trabalho se assemelha em muito a um contrato de adesão diante da típica assimetria entre os contratantes. Condições abusivas, tal qual na relação consumerista, serão nulificadas.

A forma de trazer maior segurança jurídica é a negociação coletiva entre os sindicatos patronais e dos professores fixando balizas, prestigiando-se inclusive o disposto no artigo 7º, XXVI, da CF.

Em pesquisa, se localizam notícias de muitos sindicatos prestando orientações, existindo igualmente nota técnica do Ministério Público do Trabalho (GT Covid-19 11/2020 [3]). Ocorre que, muito embora salutares, se tratam tão somente de orientações, sem força cogente. Com efeito, são poucos os ajustes convencionais efetivamente firmados sobre o tema, podendo-se citar como exemplo o firmado entre os sindicatos profissional e patronal da categoria no Rio Grande do Sul [4].

Ocorre que a eficácia perante o laborista de cláusulas como a da CCT referida no sentido de que "as gravações de aulas (…) para utilização em outras turmas (…) serão remuneradas com adicional de 100% (…)", sendo que "o pagamento (…), será devido, ao professor(a), uma única vez, independentemente do número de vezes que a gravação for reproduzida", certamente terá de passar pelo crivo da adequação setorial negociada que trata das possibilidades e limites jurídicos da negociação coletiva.

Nos moldes convencionais acima será devido, no mínimo, o pagamento da hora-aula com o acréscimo de 100%. Por outro ângulo, se faculta o uso irrestrito do número de reproduções. A depender do caso concreto poderá se caracterizar um enriquecimento sem causa nos termos do artigo 884 do Código Civil [5]. Basta imaginar o cenário em que existam três professores de matemática e diversas turmas. O empregador rompe o vínculo com dois e reproduz a mesma aula para as demais turmas, havendo nítido descompasso no equilíbrio econômico financeiro contratado (artigo 422 do Código Civil).

Enfim, esgotar os inúmeros cenários não é tarefa a que um artigo pode se propor. Não obstante a instituição de ensino certamente possui balizas a seguir como firmar um aditivo contratual para as aulas em ensino remoto, disciplinando o uso do direito de imagem, voz e conteúdo ministrado, bem como o pagamento correspondente ao passo que o professor poderá ser demandado a cumprir sua carga horária em meio virtual, relembrando que as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes (artigo 444 da CLT).

A falha nesse zelo possivelmente terminará em evitável litigiosidade.

 


[1] ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito à imagem. Pág. 144. Juruá, 2018.

[2] SILVA, Homero Batista Mateus da. Legislação Trabalhista em tempos de pandemia: Comentários às Medidas Provisórias 927 e 936. Pág. 30. Thomson Reuters Brasil, 2020.

[5] "Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários."

Autores

  • Brave

    é especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina, juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região deste 2018, tendo atuado previamente como magistrado na 15ª Região desde 2016 e como assessor de desembargador do Trabalho de 2009 até o seu ingresso na magistratura.

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