Opinião

Com o novo marco legal, as tarifas de saneamento básico ficarão mais caras?

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

11 de dezembro de 2020, 7h12

De novo vem você falando sobre saneamento básico? Lembro que um professor certo dia me disse que não necessariamente devemos estudar aquilo de que gostamos, porque deveríamos estudar aquilo que é importante. E saneamento básico importa a um país que, apesar de estar entre as dez maiores economias do mundo, tem índices muito ruins de universalização no setor. E isso impacta na mortalidade infantil, na saúde da população, na proteção ao meio ambiente, nos índices de desenvolvimento humano, entre outros fatores.

Em suma, não temos dúvidas de que o estudo do saneamento básico importa. Então, hoje, pretendemos abordar um tema que é relevante a todos, e que parte da grande pergunta que qualquer cidadão faz: "A tarifa vai aumentar"? Colocando a questão de modo coloquial, dir-se-ia: "Vamos pagar mais pelo serviço?". Para responder ao questionamento, vamos antes falar de regulação tarifária do setor.

No saneamento básico, especificamente quanto ao tratamento de água e esgoto, o valor da tarifa deverá comportar o custeio: 1) da manutenção da estrutura atualmente existente; 2) dos investimentos previstos (Capital Expenditure – Capex); e 3) dos custos operacionais atuais e previstos (Operational Expenditure  OPEX) — custos de prestação de serviços. Em outras palavras, o "custo do saneamento básico" costuma ser atrelado à manutenção de infraestruturas e à prestação de serviços (v.g. desempenho de atividades — cobrança, comunicação etc.). Além disso, a expansão do setor para alcançar os níveis de universalização deverá ser contabilizada no valor da tarifa.

Hoje, em muitos negócios jurídicos na área de saneamento, a tarifa serve para pagar o custo da operação e o capital investido, e este é um ponto nodal que diferencia de mercados concorrenciais. E isso terá de ser revisto, porque a tarifa deverá comportar, adicionalmente, o custeio dos novos investimentos para se conseguir alcançar as metas de universalização determinadas na legislação nacional de regência. Esse é um ponto central na regulação do setor.

Mas não é só.

Especificamente quanto ao valor da tarifa relativa ao serviço de dispensação de água potável, podemos apontar que, em muitos locais, são inseridos dois componentes que determinam seu valor:

— O uso do recurso hídrico, a refletir a prestação do serviço em si;

— Custo de oportunidade, a refletir valores econômicos ligados à prognose, ou seja, às estimativas de futura escassez. Nesse caso, muitas vezes se aplicou tarifas maiores conforme maior era o consumo em tempos de estiagem, por exemplo. Claro que esse modelo deve tomar o cuidado de não penalizar situações disfuncionais, como, por exemplo, casos de famílias numerosas em que o consumo é naturalmente alto, o que geraria uma distorção injusta.

Já a tarifa que custeia o esgotamento sanitário normalmente contém, além do componente natural de contraprestação pelo serviço prestado, um valor pelo "custo social ambiental" (environmental cost). Nos dois casos, está ínsita a ideia do poluidor-pagador.

A esses dois componentes deve ser agregado um outro valor: o "custo social da água", ligado ao valor da igualdade material ou solidariedade social. Esse vetor pode estar relacionado, no mínimo, a duas perspectivas:

— Subsidiar o pagamento pelo serviço prestado a pessoas vulneráveis econômica ou socialmente;

— Equilibrar os custos do serviço em relação ao consumo real. Imagine que o custo total da dispensação de água e do tratamento de esgotamento sanitário seja ressarcido por 70% de consumidores domésticos, mas estes somente consomem, por hipótese, 15% dos recursos. Ademais, para deixar nosso exemplo ainda mais expressivo, imagine que a gama de consumidores domésticos tenha, no ano, poupado cinco vezes mais do que os consumidores industriais, sem que esse ato seja "premiado" pelo preço da tarifa paga. Em outras palavras, a tarifa pode ser um vetor para corrigir e equilibrar esta distorção.

Logo, partindo destes componentes, mostrar-se-á fundamental que as análises de impacto regulatório (AIR) a serem expedidas pela ANA no tema da regulação tarifária estabeleçam uma série de regras relativas à transparência, a fim de que se consiga perfazer as correções e adaptações necessárias, bem como sindicar os valores cobrados. Por exemplo, a segregação de custos é uma medida essencial neste aspecto. Nem todas as tarifas praticadas diferenciam o tipo de serviço prestado, o que prejudica, por exemplo, a prática de subsídios cruzados. Veja que a cobrança por etapas, se de um lado se mostra mais justa e realista, de outro pode eliminar a compensação. Em outras palavras, no momento em que a tarifa decodifica os custos de cada etapa da prestação, haverá usuários pagando somente pela coleta, e outros cidadãos custearão o tratamento e coleta.

A partir de tudo o que se apresentou até aqui, especialmente diante da realidade brasileira, bem como frente às experiências internacionais, podemos eleger algumas ponderações e soluções em vários aspectos do modelo tarifário. São pontos sensíveis e complexos sobre o tema, apontando-se soluções e cuidados a serem tomados na AIR sobre regulação tarifária do saneamento básico. São estes:

— Tarifas diferenciadas por tipo de serviços;

— Consumo mínimo versus parcela tarifária fixa e variável;

— Tarifa social e subsídios;

— Tarifas residenciais e não residenciais.

A regulação tarifária brasileira apresenta dois modelos de pagamento: um pelo consumo mínimo e outro que relaciona o preço à parcela tarifária fixa e variável. Exemplifico: imagine que os usuários dos serviços em dada região sejam obrigados a pagar o mínimo de 10 m³ de água, independentemente de consumirem menos. Significa que o preço da tarifa será o mesmo para quem consome 10 m³ ou para quem nada consome. Esse modelo segue a lógica de que, quando alguém paga mais do que o volume consumido, esta parcela reverte à remuneração dos custos fixos. A desvantagem é que esta cota, especialmente se for alta, pode estimular o consumo supérfluo, o que desestimula a economia de água [1].

Ou, de outro lado, os mesmos usuários poderiam ser compelidos a pagar o rateio dos custos fixos. E o restante do valor varia de acordo com o consumo e as classes de usuários. Assim, neste último modelo, a tarifa seria composta pelos custos adequados a cada parcela: fixa ou variável. A vantagem deste sistema é que ele passa uma sensação de "justiça social", a cobrar o valor real pelo consumo de cada um. Assim, cada m³ consumido refletirá o preço real que se está a cobrar. A adoção deste modelo pode não ser eficiente diante de momentos de baixo consumo, o que gerará queda na receita que sequer cobre os custos de prestação. Também pode-se ter dificuldade em medir pequenas vasões. No Brasil, o cálculo da tarifa em duas faixas (fixa e variável) é aplicada por Copasa (MG) e Sanepar (PR), por exemplo. Independentemente do modelo adotado (consumo mínimo ou tarifa fixa), a regulação deve garantir recuperação dos custos da prestação, ponderada com a modicidade tarifária.

É possível compreender que a tarifa pode combinar uma série de possíveis subsídios. Destacarei alguns deles:

1) Subsídios entre regiões: aqui, há uma série de combinações que podem ser feitas, como, por exemplo, entre regiões rurais e urbanas; entre regiões metropolitanas e litorâneas; entre regiões maiores ou menores; entre regiões lucrativas e regiões deficitárias etc.;

2) Subsídios entre produtos (água e esgoto): essa estratégia pode ter por meta incentivar a universalização, alocando-se recursos à expansão das estruturas carentes;

3) Subsídios entre segmentos residenciais e não residenciais: essa estratégia regulatória pode gerar uma série de externalidades positivas ou negativas. De regra, as unidades não residenciais consomem mais água e seus resíduos reclamam mais insumos para o tratamento. Assim, deveriam pagar mais pelo serviço. De outro lado, como há um consumo maior, a receita deste segmento custeia, por vezes, a expansão do restante do serviço;

4) Subsídios entre as faixas de consumo: essa estratégia regulatória deverá definir se existe, por exemplo, pagamento por custo fixo ou por consumo mínimo. De mais a mais, a fim de atrair grandes consumidores, pode ser adequado dar descontos a eles. Mas, essa estratégia pode vir a desincentivar o uso racional da água, por exemplo.

A aplicação da tarifa social e o regime de subsídios é de extrema relevância. Alguns pontos-chave devem ser mensurados:

— Há de se definir critérios claros e objetivos de renda familiar para o deferimento da benesse;

— A AIR no tema deve incentivar um cadastro único, a fim de que se tenha objetividade na definição do público-alvo;

— Fundos públicos sempre são alternativas eficientes para cobrir o impacto no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos;

— Subsídio cruzado é o mecanismo mais comum de redução do impacto da tarifa social no equilíbrio econômico-financeiro;

— Os subsídios devem ser claramente discriminados na tarifa, a fim de se lhes dar transparência;

— É relevante que a AIR preveja teto para os subsídios.

A equação entre tarifas residenciais e não residenciais é extremamente complexa. Não é à toa que é objeto de intensos debates. As tarifas não residenciais são aquelas aplicadas ao uso industrial, comercial, agrícola, usuário de água por atacado ou grande consumidor. As tarifas residenciais são aquelas não categorizadas nas situações anteriores.

O uso racional da água é o principal aspecto do debate, em aspectos relativos ao consumo elevado de poucos usuários e ao risco em se priorizar determinados setores (v.g. agrícola e industrial). Outro fator determinante é que estes setores podem ter mais facilidade em migrar a outras fontes de abastecimento, gerando uma disfunção econômico-financeira na prestação. Esse ponto incentivou muitos prestadores a darem descontos maiores aos grandes consumidores, a fim de atraí-los e os manter na sua carteira de clientes. Contudo, essa estratégia vai na contramão das mais basilares compreensões sobre recursos hídricos, do princípio do poluidor-pagador e do desincentivo ao desperdício. Aqui, o incentivo à adoção de uma política de reuso de água faria todo o sentido.

Afinal, por tudo o que se disse até aqui, vamos pagar mais pelo serviço de saneamento básico? A resposta é atrelada a várias condicionantes, ou melhor, a vários "senões". Dois aspectos sempre serão ponderados: a necessidade de custear o serviço e a sua expansão versus a modicidade tarifária. E será a regulação do setor, seja ela institucional ou contratual, quem definirá o valor ajustado, considerando a realidade e a projeção dos investimentos, compatibilizando toda sorte de variáveis apontadas logo antes.

Em suma, alguns fatores podem ser antecipados à resposta ao questionamento. Devemos perguntar se a tarifa atual custeia o serviço prestado e a sua expansão. Se a resposta é negativa, haverá uma tendência no seu aumento. Mas isso pode ser evitado se atualmente não é cobrada a devida eficiência do prestador, por exemplo, em relação aos seus custos de operação. Como saber isso? Várias informações podem dar pistas neste sentido: há programa de reuso de água consolidado? Quais são os índices de perda? Qual o nível de endividamento do prestador? Etc.

Portanto, a regulação tarifária do saneamento básico mostra-se um tema central em se conseguir adequada prestação do serviço público mencionado. E, por isso, merece um olhar atento de todos.

 


[1] Esse modelo é aplicado em Nova York, Los Angeles e Buenos Aires. Na cidade californiana, por exemplo, cobra-se um valor fixo que equivale a uma quantidade de m³ de consumo.

Autores

  • é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito (UFRGS), professor de Direito Administrativo e autor da obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm).

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