Senso Incomum

A "literalidade" e a falsa disputa entre "letra" e "além da letra"

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10 de dezembro de 2020, 8h03

Coluna conceitual. Na segunda edição do meu Dicionário de Hermenêutica[1], me pediram para acrescentar novos verbetes. Foram dez. Entre outros, fiz os de "valores", "livre convencimento", "livre apreciação da prova", "literalidade" e "voluntarismo".

Spacca
Estes dois últimos são aqueles que mais suscitam controvérsias no cotidiano, muitas vezes de forma velada. O que significa aplicar o texto da lei? O que é, afinal, uma "aplicação literal"?

A todo momento aparecem as (falsas) dicotomias como "literalidade" — "não literalidade" (muitas vezes travestida de voluntarismo). Não é proibido aplicar a "letra da lei". Mas, por que ponho as aspas? Porque até o texto literal é interpretável. Despiciendo dizer que, ao menos depois do linguistic turn, já não se pode falar no "in claris…". Adágio preso no século 19, como aqueles que parecem incapazes de compreender que o mais simples dos textos é, afinal, interpretado. Não existe uma cisão entre aplicar e interpretar uma lei. Só se aplica… interpretando. Como dizia Gadamer, no pietismo é que se fazia cisão entre subtilitas (intelligendi, explicando e applicandi). E ele dizia: está errado. O que há é applicatio.

Não é difícil, no âmbito do STF (para citar apenas esse tribunal), encontrar decisões propugnando literalidade, como no caso do artigo 403 do CPP (ordem de inquirição) e o mesmo ministro depois, quando em face de aplicação da "clareza textual" em outros casos (por ex., ADC 44), rejeitar o argumento textualista.

Aí é que está. Na verdade, optar por literalismos ou textualismos (no Dicionário explico isso amiúde) é uma aventura fadada a tropeços. Por vezes, aplicar a "letra" gera inconstitucionalidades. Claro, essa é a parte mais simples, como se pode ver nas minhas seis hipóteses (ver nota de rodapé 3) pelas quais o Judiciário pode deixar de aplicar uma lei. (Parte de minha teoria da decisão, que lança perguntas por meio das quais podemos diferenciar ativismo de judicialização — perguntas institucionalizadas na decisão do STF acerca do homeschooling (voto lapidar do Ministro Gilmar) e que, portanto, deveriam significar um precedente, na medida em que marcam exatamente os princípios que definem a melhor interpretação/aplicação de uma ratio decidendi.)

Como contraponto, alguém, atrasado na discussão sobre o conceito de positivismo, poderia dizer que "quem aplica a letra da lei é um positivista", como se ainda os positivistas estivessem no século 19 ou na fase pré-kelseniana ou pré-hartiana (exceção à forma de um positivismo textualista atual defendido, com variações, por autores como Waldron e Tom Campbell — sendo que o próprio textualismo de Waldron é bastante sui generis e, se me permitem, "interpretativo"; não é por acaso que Gilberto Morbach, em sua pesquisa de mestrado por mim orientada, define sua teoria como uma terceira via).[2] Aqui remeto o leitor ao meu texto cujo título é uma pergunta: Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? (aqui)

O problema é saltar de Séca à Meca. E intercalar posições tomadas ad hoc. Em uma democracia é desejável que se cumpram os limites semântico-hermenêuticos de um texto legal. Não posso invocar a literalidade quando me interessa; e tampouco devo ignorar os limites esses quando desgosto subjetivamente daquilo que também podemos chamar de significado convencional. O ponto: há que se ter coerência no tipo de abordagem interpretativa que define a concepção de direito que tem o intérprete.

Por exemplo, o legislador deixou claro (até nas discussões parlamentares) o prazo de 90 dias para revisão obrigatória de prisão (parágrafo único do artigo 316). O que fazer com isso? Ignorar? A AMB quer, via ADI 6582, nulificar o texto, por ser inconstitucional. Só não se sabe qual é o artigo da CF que teria sido machucado. Vê-se aí um salto de Séca à Meca.  Sobre isso, Guilherme Nucci disse aqui na ConJur que esse prazo — singelo (sic) — de 90 dias não é peremptório. Como observou um comentarista aqui na ConJur, advogado Rodrigo Barbosa, "o legislador discorda de Nucci". E eu me permito acrescentar, com Friedrich Müller: os textos podem revidar (die Texten können zurück schlagen). Você pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Mas aí os constrangimentos vêm. Porque — sabemos desde Heidegger, ou mesmo Wittgenstein, Austin, Grice (para que não digam que fico apenas na filosofia hermenêutica ou na hermenêutica filosófica) — não existe linguagem privada. A linguagem é pública. Não só textos. Contextos.

O problema fulcral nisso tudo é que, por trás da própria discussão está uma velha tese — empirista — de teoria política do poder. Qual? Simples: o realismo jurídico, pelo qual o direito é o que os tribunais dizem que é. E o estranho nisso tudo é que até mesmo o uso da literalidade pode ser fruto de um realismo, desde que, em determinado caso, seja mais conveniente, no plano da avaliação subjetivista, que se "cumpra a letra da lei".

Com literalidade ou para além dos textos e seus limites, assistimos a uma revolução silenciosa – e aqui tomo emprestado a tese de Bernd Rüthers no livro que tem o sugestivo título "Die Heimliche Revolution vom Rechstaat zum Richterstaat"[3] (A revolução silenciosa: Do Estado de Direito ao Estado Judicial [ou Estado dos Juízes]). Por essa quieta revolução, já não há leis e textos constitucionais; há o que o judiciário diz que é; questão também presente na crítica de autores como Mathias Jestaedt, problemática que também abordo no Dicionário de Hermenêutica mais amiúde. Trata-se do velho realismo, tão empirista quanto a matriz filosófica por trás desse que é o verdadeiro positivismo: uma compreensão (inadequada) de direito como fato social posto pela mão humana.

O que quero dizer é que, por vezes, aparecem no cenário jurídico acalorados debates sobre o "valor dos textos". Mas o fundo é subjetivo-moral-político. Na comunidade jurídica, muitos que antes diziam que a clareza do artigo 283 do CPP e do inciso do artigo 5º —  que tratam da presunção da inocência —  nem de perto era "tão clara assim", agora diziam que era óbvio que o artigo 57, parágrafo quarto, da CF, proibia a reeleição-recondução. E também o contrário ocorreu (sobre esse tipo de discussão recomendo o texto que escrevi na ConJur: professor e juiz explicam a literalidade da Constituição. Bom, o STF, por maioria, disse que a reeleição para as mesas da Câmara e Senado estão vedadas. O texto é claro, disse-se. OK. A questão que fica é: o que podemos tirar disso para o futuro, exatamente no plano da discussão da "força dos textos"?

O que precisamos é levar a discussão sobre interpretação e aplicação do Direito muito a sério. Se não mais falamos de Auslegung (interpretação exegético-subsuntiva-reprodutiva), também não podemos falar em uma Sinngebung (dar sentido) livre. Esse salto não se dá no escuro.

Venho insistindo de há muito acerca dos limites interpretativos. Interpretar é fazer um "fit", um ajuste, como ensina Dworkin. É interpretar é aplicar o texto em seu contexto, sob sua melhor luz — a luz dos princípios que fundamentam o direito, em nosso caso, num paradigma constitucional inaugurado em 1988.

Por isso, o juiz não é nem o escravo e nem o dono da lei. Isso até pode ser visto na peça Medida por Medida, de Shakespeare, escrita em 1604. Ângelo condena Cláudio à morte (escravo da lei); Ângelo quer fazer sexo com a irmã de Cláudio (proprietário dos sentidos da lei).  A hermenêutica trata de buscar esse caminho intermediário. É o que tento fazer há décadas. Já escrevi milhares de páginas sobre isso. Aqui o espaço é apenas para acepipes e indicações de leitura.

Lembro, ademais, que essa discussão ultrapassa oceanos. Por exemplo, trago aqui, de novo pela voz de Rüthers, a doutrina de Andreas Vosskuhle, Udo di Fabio e Lerke Osterloh, para quem é inconstitucional qualquer decisão que altera o direito (contrariando disposição literal, por exemplo).[4] Dizem os juristas (juízes do Tribunal Constitucional): Se o legislador tomou uma decisão (elaborou uma lei) clara, o juiz não pode alterar esse conteúdo a partir de suas próprias ideias de política jurídica e e substituí-la por uma solução judicial que não foi possível alcançar no parlamento. Em linha similar, a primeira Sala do Bundesverfassungsgericht disse que "a criação judicial do direito não pode conduzir a que o juiz coloque suas próprias convicções sobre a justiça em substiuição ao legislador".

Observemos: Os limites interpretativos (e suas usurpações ou ausência de limites) de que falam Rüthers (um adepto do racionalismo crítico) e os três juristas citados não devem ser lidos sob à falsa dicotomia "literalismo-textualismo"  — "métodos teleológicos-objetivos-espirituais" ou coisas desse jaez (ou a dicotomia Auslegung [reprodução de sentidos] —Sinngebung [atribuição de sentidos], como alertava bem Gadamer). Interpretar e aplicar em uma democracia exige muito mais. E essa é a tarefa de uma hermenêutica adequada ao Estado Democrático de Direito: controle, limitação, accountabillity e critérios (teoria da decisão). Eis a fórmula para termos coerência e integridade.

Como falei, a coluna Senso Incomum hoje foi acústica. Um banquinho e um violão. Tudo para mostrar que Direito é um fenômeno complexo.  Por enquanto, fico por aqui. Creio já ter cansado os leitores com tanta doutrina e tantas denúncias sobre os limites hermenêuticos da interpretação, isso que não sou (i) nem literalista, (ii) nem textualista, (iii) nem originalista, além de ser (a) antirrealista e (b) antivoluntarista.

No final, a questão fulcral é sempre essa: o que é isto — o direito? Enquanto não exigirmos coerência na resposta de quem o interpreta e aplica, teremos textualismos e literalidades e voluntarismos. Só que sem epistemologia.

Post scriptum: a coluna já estava fechada quando li a decisão paradigmática do ministro Gilmar Mendes na ADPF 758, que pode ser vista a partir da bela matéria do competente Sérgio Rodas (aqui). Tratarei do assunto na sequência. Para falar sobre "qual é o papel do Ministério Público". O voto do ministro Gilmar dá o que pensar. De há muito que sustento que o MP deve ser isento.


[1] Belo Horizonte, Editora Casa do Direito, 2020.

[2] Entre Positivismo e Interpretativismo – a terceira via de Waldron. Salvador, Jus podium, 2020.

[3] Mohr Siebeck, Tübingen, 2016, passim.

[4] Claro que é necessário prever exceções em um Estado Constitucional com jurisdição constitucional. Por exemplo, aqui lembro das 6 hipóteses que coloco como exceção no meu Dicionário de Hermenêutica.

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