Opinião

Desjudicialização da execução civil: a quem atribuir as funções de agente de execução?

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10 de dezembro de 2020, 9h12

O Conselho Nacional de Justiça, no relatório "Justiça em Números 2020", apontou a existência de 77 milhões de processos pendentes, dos quais 55,8% se referem à fase de execução [1], isto é, cerca de 42 milhões de processos. Isso significa que mais da metade das demandas que tramitam no país envolvem atividades de natureza executiva, sejam fundadas em título judicial (cumprimento de sentença), seja em título extrajudicial. Há, portanto, grande dispêndio de tempo e de esforço dos magistrados para atos que poderiam ser realizados fora do âmbito do Poder Judiciário.

O tema é da maior atualidade e relevância. Deve-se analisar e debater no Brasil as propostas legislativas [2] para a desjudicialização da execução civil e a fiscal. Entre elas, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 6204, de autoria da senadora Soraya Thronicke, o qual propõe a "desjudicialização das execuções civis fundadas em títulos extrajudiciais e cumprimento de sentenças condenatórias de quantia certa". O projeto contou com a colaboração dos professores Flavia Pereira Ribeiro e Joel Dias Figueira Junior, ambos processualistas e estudiosos da matéria, bem como de André Gomes Netto, tabelião de Notas e de Protesto de Títulos. Em síntese, o que se pretende é a redução das atividades do Poder Judiciário em processos que, em verdade, dependem muito mais de iniciativas burocráticas. Isso é extremamente positivo para o sistema processual.

Em recente artigo, os professores Arruda Alvim e Joel Figueira Jr. chamaram a atenção para vários pontos importantes desse projeto de lei. Destacaram também a sua constitucionalidade. Têm eles, nesse ponto, total razão. Isso porque a desjudicialização das execuções constitui uma opção legislativa que não viola qualquer garantia constitucional. Com efeito, o direito fundamental de acesso à jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV) adquire no sistema atual uma ressignificação. Ele não se limita mais às atividades exclusivas do Poder Judiciário. Há mais de 30 anos, Kazuo Watanabe já sustentava não se tratar apenas "de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa" [3]. Nos últimos anos, foram inúmeros os exemplos de desjudicialização. Basta lembrar o divórcio e o inventário extrajudicial (Lei 11.441/2007), o registro de nascimento após transcorrido o prazo legal (Lei 11.790/2008), a usucapião especial (Lei 11.977/2009) e os artigos 1.071, 571, 610, §1º, 703, §2º, e 733 do Código de Processo Civil de 2015. Disso decorre que, se o legislador pode desjudicializar a própria resolução de conflitos, com mais razão pode fazê-lo em relação ao procedimento executivo, cuja maioria dos atos sequer possui natureza tipicamente jurisdicional. Diga-se que os atos executivos já são praticados pelo oficial de Justiça (penhora), pelo avaliador judicial (avaliação) e pelo leiloeiro público (leilão judicial), sob o controle do juiz.

Importante também destacar que o PL 6204 não impede o controle do Poder Judiciário em relação aos atos executivos, sempre que provocado pelas partes (suscitação de dúvida) ou pelo denominado agente de execução (consulta). É o que se vê na redação dos artigos 20 e 21. Ou seja, embora desjudicializada, a execução deve continuar sob o controle e a fiscalização dos magistrados. Aqui, vale uma sugestão: deve-se utilizar a plataforma digital do Poder Judiciário para a execução desjudicializada, sob pena de se perder tempo a cada suscitação de dúvida ou de consulta ao Poder Judiciário. Além disso, não se pode imaginar que cada agente de execução tenha a sua própria plataforma digital. Lembre-se que, quando se iniciou a digitalização dos processos, cada Estado, cada região possuía a própria plataforma digital. Em alguns casos, o primeiro grau e o segundo grau da mesma região possuíam plataforma digitais distintas. Não se pode incorrer no mesmo erro.

Nesse ponto, defende-se que a execução desjudicializada seja distribuída perante o Poder Judiciário, cabendo ao juiz, mediante sorteio, distribuir para um dos agentes de execução aptos. Dessa forma, a plataforma digital já será a do Poder Judiciário, o que tornará mais fácil o controle pelo juiz dos atos do agente de execução.

A crítica, contudo, diz respeito à impossibilidade de recurso em face das decisões judiciais proferidas no curso do procedimento. O §2º do artigo 20 e o §2º do artigo 21 do PL 6204 estabelecem, respectivamente, que as decisões que julgarem a consulta e a suscitação de dúvida serão irrecorríveis. Isso evidentemente não pode ser admitido. Observe-se que o Código de Processo Civil, mesmo quando quis limitar o cabimento do agravo de instrumento, manteve a ampla recorribilidade de todas as decisões proferidas no cumprimento de sentença e no processo de execução (CPC, artigo 1015, parágrafo único). Logo, desjudicializar a execução, impedindo o recurso ao tribunal, implicaria grave retrocesso ao sistema processual vigente. Ademais, o sistema de precedentes, tão caro ao Código de Processo Civil de 2015, exige que se profiram decisões pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. Ora, se não houver recurso, a questão ficará restrita ao juiz da causa.

O PL 6204 apresenta ainda outra exigência injustificável: a obrigatoriedade do prévio protesto do título judicial ou extrajudicial como condição para a instauração do procedimento (artigos 6º e 14 do PL 6204). Trata-se, evidentemente, de requisito inaceitável, uma vez que o protesto sempre foi uma opção do credor, jamais um pressuposto para o início do processo executivo. Tal imposição cria um novo e desnecessário ônus financeiro ao exequente, frequentemente combalido pelo inadimplemento.

Mas, o maior problema do Projeto de Lei 6204 reside na atribuição das funções de agente de execução aos tabeliães de protesto. O agente de execução é justamente a pessoa a quem compete a "realização de todas as diligências do processo de execução, nestas se incluindo citações, notificações, publicações, acto de penhora, venda e pagamento" [4]. Nesse ponto, o artigo 3º prevê: "Ao tabelião de protesto compete, exclusivamente, além de suas atribuições regulamentares, o exercício das funções de agente de execução e assim será denominado para os fins desta lei."

Isso gera um gravíssimo risco de falta de operosidade e efetividade para as execuções civis. Saliente-se que o próprio projeto de lei reconhece a atual ausência de capacitação dos tabeliães de protesto para o desempenho das atividades de execução. Tanto é assim que prevê no artigo 22 a realização desta capacitação, determinado que isso deverá ser concluído até a entrada em vigor da lei.


 

 

 

Além disso, não existe estrutura suficiente de tabelionatos de protesto para o atendimento do volume de execuções. No ano passado, além das execuções que já se encontravam em andamento, surgiram mais 3.994.836 execuções no espaço de um ano [5]. A quantidade impressiona e demonstra que a execução constitui o gargalo do sistema de Justiça civil brasileiro. Por outro lado, o número de tabelionatos de protesto é infinitamente menor, não chegando a 1% desse montante. Somando os tabelionatos de protesto das capitais brasileiras, chega-se a apenas 99 serventias [6]. São 20 tabelionatos de protesto nas capitais da Região Norte [7], 26 nas capitais da Região Nordeste [8], 21 nas capitais da Região Centro-Oeste [9], 19 nas capitais da Região Sudeste [10] e 13 nas capitais da Região Sul [11]. Constata-se, portanto, uma absoluta desproporção entre o número de tabelionatos de protesto e as quase quatro milhões de execuções que se iniciam a cada ano.

 

Em outros países, admite-se que a função do agente de execução seja exercida por profissionais liberais, ou seja, por agentes privados, que atuam sob a fiscalização de associações de classe e do próprio Poder Judiciário. Na França, a figura do huissier de justice é desempenhada por um profissional liberal, o qual se submete à fiscalização disciplinar de associação de classe, além de ter seus atos sujeitos ao controle judicial. Em Portugal, o agente de execução pode ser um advogado, um solicitador ou um bacharel em Direito, inscrito como agente na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e fiscalizado por uma comissão independente (Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça CAAJ).

No Brasil, a atribuição dessas funções a agentes privados (entre os quais podem estar os advogados regularmente inscritos na OAB) teria a grande vantagem de evitar uma sobrecarga no sistema, afastando as limitações naturais de estrutura e nomeação de agentes públicos. Lembre-se que o pequeno número de solicitadores de execução foi o que levou Portugal a reformar o sistema, ampliando o rol de profissionais autorizados e permitindo que as atividades do agente de execução fossem igualmente desempenhadas pelos advogados, após formação específica e adequada. Lá, a população é de aproximadamente dez milhões de habitantes e o número de processos é pequeno (menos de um milhão em 2018!). No Brasil, a população é muito maior (cerca de 210 milhões de habitantes), assim como o número de execuções (mais de 42 milhões em 2019). Daí a preocupação em se atribuir tal função exclusivamente aos tabeliães de protesto, como faz o PL 6204.

Evidentemente, o exercício das funções por agentes privados (inclusive advogados) deveria ter como pressuposto a realização de cursos de formação e a devida fiscalização pelo poder público e respectivos órgãos de classe.

Seriam igualmente necessárias regras sobre impedimento. Em Portugal, por exemplo, os advogados que quiserem assumir as funções de agente de execução deverão encerrar seus mandatos judiciais. Nesse ponto, no Brasil, sugere-se que a lei preveja o impedimento temporário ao exercício da advocacia (por exemplo, cinco anos) e limitado às partes da própria execução.

Pode-se aqui traçar um paralelo em relação ao mediador. Tanto o artigo 172 como o artigo 6º da Lei nº 13.140/2015 estabelecem o impedimento por um ano, contado do término da última audiência, para assessorar, representar ou patrocinar qualquer das partes. Nesse sentido, alterou-se a previsão do Código de Ética da Resolução nº 125, o qual previa um impedimento permanente. Por sua vez, o artigo 167, §5º, do CPC prevê o impedimento, sem prazo determinado, para os mediadores exercerem a advocacia nos juízos em que atuarem. Mas vale lembrar que os mediadores desfrutam de uma proximidade muito maior com o Poder Judiciário. Daí a razão pela qual, em relação aos agentes de execução, o que se propõe é um impedimento relativo às partes do processo e com um prazo limitado.

Em suma, a proposta de desjudicialização da execução civil é extremamente bem-vinda. Resta agora aprimorá-la, com críticas e sugestões da doutrina, da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia, pública e privada, especialmente no que tange às pessoas que deverão receber as relevantes funções de agente de execução.

Ter uma boa estrutura de agentes (em número suficiente para assumir as atribuições dos atos executivos) parece ser providência essencial para a efetividade da execução, sob pena de se ter que, em pouco tempo, modificar o texto legal para permitir que outras pessoas exerçam tal função, como ocorreu na experiência estrangeira. A esse respeito, são atuais as lições de Egas Dirceu Moniz de Aragão: "Aprimorar a lei e a magistratura, porém, não é tudo. Urge preparar adequadamente a infraestrutura dos juízos e tribunais, pois sem isso a máquina judiciária continuará a funcionar precariamente" [12].

Em outras palavras, de nada adiantará afastar do Judiciário a execução civil, caso não se ofereça um sistema adequado para a prática célere e eficiente dos atos executivos.

A desjudicialização da execução civil é medida que se espera — e os autores deste escrito defendem. Todavia, a atribuição da função de agente de execução aos tabelionatos de protestos ou a todos os tabelionatos não resolverá a taxa de congestionamento dos processos executivos (judicial e extrajudicial). O número ínfimo de tabelionatos causará maiores problemas do que soluções para essa questão tão importante, que onera, por exemplo, a concessão de crédito no país (taxa de juros elevada). Os advogados podem exercer tal função com as restrições necessárias (regras de impedimento, de quarentena etc.), sendo certo que, pela prática, já possuem maior experiência para tanto do que os tabeliães, apesar da necessidade de se realizar um curso de habilitação.


 

 

 

 

 

 

[2] PL 6204/2019 (relativo à execução civil) e PL 4257/2019 (referente à execução fiscal).

[3] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna, in Participação e processo/ coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 128.

[4] SILVA, Paula Costa. A reforma da acção executiva, 3 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 13.

[5] A publicação Justiça em números de 2019 do CNJ informa que no ano de 2018, além do estoque já existente, surgiram 879.943 novas execuções civis não fiscais extrajudiciais e 3.114.893 novas execuções civis judiciais, o que totaliza 3.994.836 novas execuções civis em apenas um ano. Dados obtidos in https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf, figura 97, fls. 128, Acesso em 18/1/2020.

[7] Rio Branco – 2, Macapá – 2, Manaus – 6, Belém – 3, Porto Velho – 4, Boa Vista – 2 e Palmas – 1.

[8] Maceió – 2, Salvador – 4, Fortaleza – 5, São Luís – 2, João Pessoa – 1, Recife – 4, Teresina – 4, Natal – 2 e Aracaju – 2.

[9] Goiânia – 2, Cuiabá – 1, Campo Grande – 3 e Brasília – 15.

[10] Vitória – 1, Belo Horizonte – 4, São Paulo – 10 e Rio de Janeiro – 4.

[11] Curitiba – 6, Florianópolis – 4, Porto Alegre – 3.

[12] ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Efetividade do Processo de Execução, Revista de Processo, vol. 72, Out-Dez. 1993, p. 16-24.

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