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A inconstitucionalidade da multa por compensação não homologada

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10 de dezembro de 2020, 16h22

Está na pauta do Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.905, que questiona a constitucionalidade da multa por compensação de tributos federais feita pelos contribuintes, iniciada em 50% e que pode chegar até a 150%, no caso, esta última, de ser considerada não declarada.

É uma multa punitiva, que se acumula com a outra multa moratória de 20%, devida na situação em que o contribuinte atrasa o pagamento no dia do seu vencimento.

O caso atraiu a atenção da comunidade jurídica e os argumentos lançados contra a compatibilidade dessa multa dizem respeito ao direito de petição, ao devido processo legal, à vedação de imposição de multas tributárias com efeitos confiscatórios, à razoabilidade e à proporcionalidade, além da violação à moralidade, à violação aos princípios da boa-fé e da isonomia, à proibição do bis in idem.

A par de todos esses argumentos, absolutamente consistentes, essa multa, punitiva que é, quando impõe uma responsabilidade objetiva, sem a obrigatoriedade de se apurar os elementos subjetivos subjacentes, viola um dos principais postulados do direito sancionador, ou seja, a individualização da pena.

Apenas para ilustrar, contribuintes que possuem decisão transitada em julgado no sentido de determinar a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins vem habilitando seu crédito perante a Receita Federal, que vem negando os pedidos porque não concorda com a orientação fixada na decisão definitiva, aduzindo que ainda pendem de decisão os seus embargos de declaração no Supremo Tribunal Federal. Aplicam, então, a pena pecuniária.

Do ponto de vista da teoria constitucional, essa orientação decorre do brocardo nulla poena sine culpa, segundo o qual consiste na base da dignidade humana, segundo já decidido pelo tribunal constitucional português.

E assim o é porque a aplicação de qualquer pena depende da apuração do animus fraudandi do agente, impondo, portanto, o ônus à autoridade punitiva de perscrutar o grau de culpa do autor da falta.

O Tribunal de Justiça da União Europeia, em recente julgamento de 2017, apreciando caso originário da legislação da Hungria, julgou desproporcional e cancelou a multa de 50% sobre dedução incorreta de Value Added-Tax (VAT). A razão, naquele julgamento, é a de que o contribuinte apenas cometeu equívoco na aplicação de mecanismo de apuração do tributo, não havendo intenção de fraude, mas apenas mera infração administrativa que não gerou perdas aos cofres públicos [1].

Nessa linha, nas clássicas lições do professor Ruy Barbosa Nogueira em seu livro "Curso de Direito Tributário", "de tudo isto decorre o princípio fundamental e universal, segundo o qual se não houver dolo nem culpa, não existe infração da legislação tributária. Em outras palavras, não existe, em nosso sistema, a arqueológica 'responsabilidade objetiva' ou infração sem culpa". O Tribunal Constitucional Espanhol decidiu, na Sentença 76/1990, sobre o assunto: na ocasião, se analisava uma determinada lei que impunha uma sanção tributária pecuniária, sem que o texto dispusesse expressamente sobre a obrigatoriedade do apontamento dos elementos dolosos ou culposos do contribuinte. Ficou, assim, a dúvida sobre a imprescindibilidade da presença desses elementos. A corte entendeu que, para a imposição de penalidades tributárias, é obrigatória a identificação dos elementos de dolo ou de culpa.

Do mesmo modo, na Itália, o Decreto Legislativo nº 472, de 18/12/1997, dispõe sobre essa obrigatoriedade. Na Alemanha, por seu turno, o §10 da Lei das Infrações Administrativas também exige o elemento subjetivo, afirmando que somente pode ser punido como infração administrativa um feito doloso, a menos que uma lei expressamente preveja uma multa para um feito culposo. Ainda, conforme pesquisa de Henrique Machado de Azevedo, no sistema norte-americano, igualmente, uma sanção pode ser afastada, inclusive, quando restarem demonstradas reasonable causes a justificar o descumprimento da norma.

Na mesma toada, em ferrenha crítica à responsabilidade objetiva, Barbosa Nogueira assinala que "punir alguém com base em 'infração objetiva' ou sem culpa é impossível no Estado de Direito, porque isso foi prática só adotada ao tempo da barbárie. Acentua Blumenstein, citando a doutrina, a legislação e acórdãos da Suprema Corte da Suíça, 'que o cometimento de uma infração de imposto que pressupõe a culpa do autor é incontroverso na moderna literatura do Direito Tributário. A qualificação da infração tributária como infração objetiva como era antes (BGE 36.1 S. 340) já foi abandonada (vgl. BGE 39.1 S. 401 ff). No mínimo é garantido ao acusado o direito de provar a exclusão de culpa".

No Brasil, no entanto, a nossa tradição, já propagada por Rubens Gomes de Souza, defende expressamente a responsabilidade objetiva no que tange as infrações de natureza tributária: "No caso de contravenções, com efeito, e portanto também no caso das infrações a ela equiparadas, não se exige dolo ou culpa, bastando que o ato seja voluntário".

Apesar da sapiência do emérito Rubens Gomes, esse ranço autoritário precisa ser extirpado do ordenamento jurídico, porque contrasta com os pilares democráticos de Direito do Estado brasileiro, encartados nos diversos dispositivos constitucionais mencionados.

Nessa linha, duas decisões lavradas pelas desembargadoras federais Consuelo Yoshida e Luciane Munch já denunciam a inconstitucionalidade da multa imposta ao contribuinte que não obtém sucesso no pedido de ressarcimento ou de compensação: "A Constituição da República, no rol dos direitos e garantias fundamentais, expressamente assegura o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, sendo que os pedidos de ressarcimento e de compensação apresentados à Receita Federal indubitavelmente se amoldam ao presente caso".

Além disso, os números arrecadados com multas nos últimos cinco anos somam mais de R$ 80 bilhões, apenas no âmbito federal, o que demonstra que as penalidades tributárias parecem ser subversivas e representarem verdadeira fonte arrecadatória, imoral, todavia, porque é inconstitucional.

 


[1] Caso Tibor Farkas vs. Nemzeti Adó- és Vámhivatal Dél-alfödiRegionális Adó Főigazgatósága, Corte Europeia de Justiça, 4ª Câmara, Caso C-564/15, de 26 de abril de 2017. Para o Tribunal, o princípio da proporcionalidade impõe às jurisdições que examinem "circunstâncias que mereçam ser consideradas excecionais, que permitam concluir que, nomeadamente, o sujeito passivo responsável pela dívida tributária atuou com a diligência que se podia esperar dele naquela situação. Esta disposição estabelece igualmente que a redução da coima é determinada tendo em conta todas as circunstâncias do caso, nomeadamente a importância da dívida fiscal, as circunstâncias do seu surgimento, a gravidade e a frequência do comportamento ilícito do sujeito passivo".

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