O monstro de 1988

Ministério Público tem a força de um gigante e a imperfeição dos humanos

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10 de dezembro de 2020, 10h47

*Reportagem publicada no Anuário do Ministério Público Brasil 2020, que será lançado na próxima segunda-feira (14/12), às 11h, no canal da ConJur no YouTube. O Anuário está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa. 

Primeiro procurador-geral da República depois da ditadura militar, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal e autor intelectual do modelo de Ministério Público que existe hoje no Brasil, José Paulo Sepúlveda Pertence não usa de meias palavras para definir sua obra: "Criei um monstro." Com a sentença curta e lapidar, Pertence resume as virtudes excepcionais e os vícios circunstanciais que se revelaram nos mais de 30 anos de existência do Ministério Público brasileiro gestado pela Constituição de 1988: "O Ministério Público acabou concentrando, com os poderes tradicionais da ação penal e os poderes recém-adquiridos da ação civil pública, essa função do ombudsman, de intervir e reprimir a ação dos poderes políticos muito além do que se conhecia em toda a história brasileira", explicou Pertence em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, em 2016. A frase original foi dita muito antes, quando Pertence era o PGR, José Sarney era o presidente da República e o Ministério Público começava a incomodar os poderosos.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 127, reconheceu no Ministério Público "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". À cabeça do artigo, os constituintes de 1988 acrescentaram-lhe seis parágrafos normativos, dos quais muitos acreditam que o primeiro é capital para determinar sua monstruosidade, para o bem e para o mal. É o que diz: "São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional."

Esse dispositivo constitucional, extrapolado e reinterpretado no tempo, abriu espaço para a autonomia de procuradores que se compuseram como órgãos independentes. Em nome da autonomia, passaram a criar regras não escritas que colocaram a pirâmide funcional do Ministério Público Federal de cabeça para baixo.

Pelo menos para o atual procurador-geral da República, Antônio Augusto Brandão de Aras, este é o grande desafio: manter a atuação plena do Ministério Público, tanto na área civil como na criminal, aí incluído o combate tenaz a toda forma de corrupção, e o controle necessário para que todos os processos ocorram dentro dos limites impostos pela lei e pelo Direito.

"A 'lava jato', com êxitos obtidos e reconhecidos pela sociedade, não é um órgão autônomo e distinto do Ministério Público Federal, mas sim uma frente de investigação que deve obedecer a todos os princípios e normas internos da instituição", afirmou o procurador-geral em nota na qual indicou os lugares que ocupam na vida nacional o Ministério Público, a força-tarefa designada para uma missão específica e os procuradores que a integram.

Colocado em termos mais precisos, nas palavras sempre sábias do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, o fenômeno da unidade e independência combinadas do MP soa assim: "O Ministério Público, que é o guardião independente da integridade da Constituição e das leis, não serve a governos, ou a pessoas, ou a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República, nem deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja ou o instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, quaisquer que estas sejam, sob pena de o Ministério Público mostrar-se infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é a de defender a plenitude do regime democrático."

Antes de 1988 não era assim, e o Ministério Público longe estava de ter o protagonismo, a independência, o poder e a visibilidade que tem hoje. Quando se estabeleceu no Brasil o primeiro órgão judicial, o Tribunal da Relação da Bahia, em 1609, trouxe no mesmo pacote o procurador da Coroa, que seria o encarregado de defender os interesses do rei de Portugal na colônia e que seria também o precursor de todos os promotores e procuradores que o sucederam ao longo da história.

Arquivo Agencia Brasil
Arquivo Agência Brasil

Em 1832, ainda no Império, o Código de Processo Penal iniciou a sistematização das ações do Ministério Público. Com a implantação da República, o Decreto 848, de 1890, que criou a Justiça Federal, dispôs também sobre as atribuições do MP. A Constituição de 1946 faz referência a ele sem vinculação aos outros poderes. 

Nos anos da ditadura militar implantada pelo golpe de 1964, o Ministério Público fez parte primeiro do Poder Judiciário (Constituição de 1967) e depois do Poder Executivo (Constituição de 1969). "Era a repartição mais desimportante do Ministério da Justiça", relembrou o ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel (2009-2013) para o documentário Constituição Cidadã – Um novo MPF, que conta a história do Ministério Público por meio dos depoimentos dos PGRs que passaram pelo seu comando nos últimos 30 anos.

Além da atuação modesta, desenvolvia uma atividade conflituosa, já que tinha atribuições simultâneas de advocacia pública e de fiscal da lei e defensor dos interesses da população. "O Ministério Público tinha um calcanhar de Aquiles. Era MP, mas era também a Advocacia da União. Os procuradores da República viviam então um dramático dilema institucional", diz Pertence.

O novo MP, tal qual o conhecemos hoje, começou a nascer em 1985, com a sanção pelo presidente José Sarney da Lei 7.347, a Lei da Ação Civil Pública. "A primeira grande batalha foi convencer o presidente de então a sancionar o projeto de lei que criava a ação civil pública, para a defesa dos então misteriosos direitos difusos relativos a patrimônio histórico, cultural, ao meio ambiente e ao consumidor", diz Pertence.

Começou a surgir aquilo que Roberto Gurgel chama de um novo mundo. "O Ministério Público deixa de ter aquela atuação acanhada, restrita à matéria penal, e começa a pensar aqueles grandes temas que já movimentavam a sociedade, sobretudo a questão ambiental."

Mas é em 1988 que surge o Ministério Público independente dos Poderes Executivo e Judiciário, com autonomia e independência para se constituir em um quase quarto Poder da República. Ou um poder que existe para controlar e fiscalizar as ações de todos eles. A mesma Constituição Federal que deu a ele uma estrutura e prerrogativas que nunca teve antes concedeu-lhe também uma pauta de atribuições que ampliou imensamente seu leque de atuação.

A Constituição de 1988 também teve o papel de ampliar o rol de legitimados a ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, em seu artigo 103. Até então cabia somente ao procurador-geral da República fazer o controle de constitucionalidade em abstrato. Longe de ter tirado seu poder, a mudança trouxe mais oxigênio para a democracia brasileira e permitiu que partidos políticos, sindicatos, associações e a Ordem dos Advogados, ao lado do MP, pudessem questionar leis e omissões legislativas.

É bom que se diga que, assim como a "lava jato" não inventou a corrupção ou o combate à corrupção, não há dúvida de que na gênese do novo Ministério Público está um episódio de corrupção. Muito antes do petrolão e da "lava jato", houve o Escândalo da Mandioca em que atuou o procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva.

O Escândalo da Mandioca aconteceu entre 1979 e 1982 e consistiu num esquema de fraude de crédito e seguro agrícolas na cidade de Floresta, em Pernambuco. Em valores de 2020, a tramoia, em plena ditadura e com a participação da elite econômica e social do estado, desviou R$ 1,5 bilhão. Pedro Jorge, o procurador da República designado para investigar o caso, enfrentou praticamente sozinho a tarefa e ao final apresentou denúncia contra 24 acusados. Quatro meses depois, foi assassinado.

A tragédia causou comoção. Para os colegas do MP, tanto quanto a coragem de João Pedro, chamou a atenção sua solidão e a falta de respaldo para enfrentar forças poderosas. "A ideia de autonomia administrativa, financeira e funcional, que não existia até então, surge em função desse contexto e da mobilização que ela gerou", afirma Álvaro Augusto Ribeiro, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República à época dos fatos. 

Em tempo: o major José Ferreira dos Anjos e outros cinco acusados foram condenados à época pelo assassinato do procurador. Em 1999, 22 dos 24 acusados por corrupção também foram condenados. O último recurso do processo só foi julgado em 2019. E o legado de Pedro Jorge permanece, como reconhece a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge. "O enfrentamento da corrupção é um caminho estabelecido sem volta. É um combate difícil, porque a corrupção se entranhou no Estado brasileiro. Mas não tem volta porque a população entendeu que era possível viver numa sociedade mais honesta."

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