Opinião

Vacinação obrigatória, liberdade e pandemia

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9 de dezembro de 2020, 17h12

1) Cenário geral: polarização política, ciência e direitos
Um dos predicados da democracia ocidental se encontra justamente na organização do poder de forma a evitar que a resolução de disputas ocorra de maneira injusta e pulverizada. O Estado democrático de Direito pode ser apontado como o ápice da evolução política em termos de garantia das liberdades individuais e efetividade dos direitos humanos em um ordenamento jurídico constitucionalmente estruturado.

O exercício do poder nos estados democraticamente instituídos ocorre por meio da discussão de ideias e propostas, e se torna vitorioso o grupo que melhor exerce seu poder de convencimento obtendo a maior quantidade de votos em sufrágios legalmente realizados. Ou pelo menos deveria ocorrer dessa forma.

A participação político-democrática envolve, na realidade, muito mais do que o comparecimento regular às urnas e a disputa pelas posições nas instituições públicas, a exemplo dos cargos no Poder Executivo e Legislativo. O diálogo tolerante se mostra essencial para a obtenção de consensos ao redor de questões controvertidas no cenário político. A disputa legitimamente democrática deveria, nesse sentido, se desenrolar com respeito as regras comuns e com o reconhecimento da legitimidade dos adversários em debates igualitários. O excesso de polarização na sociedade, contudo, agrega riscos a este delicado e dinâmico equilíbrio.

A falta de comedimento por parte dos grupos na sociedade, com a concentração em lados antagônicos e centralizados de forma radical, faz com que adversários políticos sejam tratados como inimigos, o que causa desarmonia generalizada com vulgarização do desrespeito às instituições e aos valores legalmente estabelecidos. O diálogo termina por ser substituído pela intransigência, e o desrespeito às regras do jogo se torna aceitável se a meta é a aniquilação do oponente. A celeuma é delicada quando os desafetos são os cidadãos de uma mesma coletividade, destinatários dos mesmos direitos.

Tais riscos de degeneração do regime democrático são perceptíveis de maneira clara no Brasil durante a pandemia da Covid-19, em especial em momentos em que orientações das autoridades médico-sanitárias constantemente têm sido objeto de polêmicas divorciadas de critérios cientificamente comprovados.

As medidas de proteção a disseminação do novo coronavírus envolvem o distanciamento e o isolamento social domiciliar, a higienização constante dos locais e das pessoas, bem como a utilização de máscaras individuais, e algumas dessas medidas têm sido objeto de contestação por significativas parcelas da população.

Em especial a utilização de máscaras de proteção e o distanciamento social são objeto de disputas de narrativas políticas e econômicas em um quadro de falso dilema que se repete a cada descoberta ou notícia técnico cientifica. A utilização de hidroxicloroquina, ivermectina e a perspectiva de vacinação têm sido utilizados pela população e por políticos como símbolos de discórdias por hegemonia, o que se mostra incompatível com a necessidade de preservar vidas, e envolvendo milhões de infectados e de mortos.

As rusgas se tornam ainda mais intensas nas redes sociais em razão da utilização de algoritmos que organizam as informações disponibilizadas aos usuários e amplificam a repercussão dos dissensos. Os critérios utilizados pelos algoritmos consideram a temporalidade, engajamento e relacionamento, fazendo com que as redes busquem priorizar postagens com as quais o usuário mais se engaja por meio de comentários, curtidas, mensagens diretas ou buscas. Tal conjuntura cria bolhas de informações com grande hermetismo, onde ocorre reduzida circulação de ideias e pouca heterogeneidade, o que impede o desenvolvimento de debates democraticamente qualificados.

Vejamos em que medida são reais os alegados conflitos entre valores constitucionalmente relevantes e dignos de tutela, tais como a liberdade individual e a vacinação obrigatória, tendo como pano de fundo as questões jurídicas.

2) Regime jurídico da vacinação no sistema de saúde
Em nosso ordenamento jurídico, a regulamentação sanitária da imunização coletiva é bem antiga. A Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, já trazia disposições abordando a vigilância epidemiológica, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e a notificação compulsória de doenças. Não há uma previsão específica sobre a compulsoriedade específica para a vacinação, mas algumas cunho mandatório, como o registro obrigatório de alguns dados. A possibilidade de planejamento e organização das políticas sanitárias motiva certamente a necessidade de atuação compulsória em termos de imunização.

Já a Portaria nº 597, de 8 de abril de 2004, que instituiu em todo território nacional os calendários de vacinação, regulamentando o PNI com vistas a controlar e erradicar as doenças imunopreveníveis, traz regras expressas sobre vacinação obrigatória, sua gratuidade na rede pública e o conteúdo dos atestados em seu artigo 4.

O recebimento de diversos benefícios sociais, tais como salário-família, matrícula em creches, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e universidades e alistamento militar, depende da apresentação de comprovantes de vacinação. Empresas privadas também possuem a atribuição para exigir tais comprovações de forma a prévia a contratação, na forma da lei.

O artigo 14, §1º, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (o Estatuto da Criança e do Adolescente), ao determinar a vacinação obrigatória de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias, traz também disposições mandatórias em termos de imunização.

O exercício de algumas profissões exige também a vacinação ocupacional compulsória, tais como policiais, militares, bombeiros, comissários de bordo e pilotos. A Norma Regulamentadora nº 32, aprovada pela Portaria n° 485, de 11 de novembro de 2005 do Ministério do Trabalho traz normas específicas sobre vacinação dos trabalhadores.

Na ordem jurídica internacional, comprovantes de vacinação compulsória para algumas doenças, tais como febre amarela, por exemplo, são exigidos para obtenção de vistos de entrada de estrangeiros em países como Austrália, China e Uruguai.

Nosso Direito positivo é composto de normas legais e infralegais voltadas a operacionalização de políticas públicas sanitárias e de saúde que envolvem a imunização coletiva compulsória. Não se trata de novidade, nem tampouco de plataforma política de partidos ou grupos de pressão. Resta agora examinar o falso dilema entre a defesa da liberdade individual e a imunização com base no regime jurídico dos direitos fundamentais e dos interesses coletivos.

3) Como funciona a vacinação
Considerando que a existência de políticas públicas de saúde e de imunização coletiva compulsória não constitui uma novidade em nosso sistema jurídico, altercações públicas sobre vacinação não deveriam existir. Porém, polêmicas envolvendo uma suposta proteção ao poder individual de autodeterminação e de direito de disposição sobre o próprio corpo têm sido difundidas por parcelas significativas da população, na forma de desinformação premeditada.

Pelas suas características biológicas, a transmissão da Covid-19 se dá pelo contágio direto do coronavírus com as vias respiratórias e com os olhos, e a prevenção pede a higienização constante das mãos e dos objetos de uso pessoal, além do distanciamento entre as pessoas. A superação dessa grave crise sanitária passa necessariamente pela descoberta de tratamentos e curas efetivas, ou pela imunização coletiva por meio da administração de vacinas.

Em uma abordagem bastante simples, as vacinas são preparadas com microorganismos enfraquecidos ou mortos da própria doença que pretende prevenir. As defesas imunológicas são estimuladas a produzir anticorpos, preparando o corpo para enfrentar a enfermidade e tornando o organismo imune ao agente infecioso e às doenças por ele provocadas, sem as desenvolver. Toda vacina passa por um processo de avaliação e testes acompanhado pelas autoridades sanitárias antes de sua liberação, o que garante sua segurança.

A vacinação coletiva diminui a incidência da moléstia, e a medida que toda a população é inoculada os índices de transmissão se reduzem até que nenhum caso seja registrado e todos estejam protegidos. O vírus é eliminado e a disseminação da doença cessa. É o que costuma se denominar imunização de rebanho, um efeito de proteção que se desenvolve em uma massa de indivíduos quando um percentual elevado de seus componentes é inoculado e imunizado: o agente patogênico não circula mais, a doença desaparece, e mesmo quem não recebeu a vacina está protegido.

Com base nessas informações é possível deduzir que quanto maior a quantidade de pessoas não vacinadas, menor a possibilidade de imunização coletiva e mais reduzidas ainda as possibilidades de erradicação da doença. Caso não sejam obtidas altas quantidades de pessoas vacinadas por meio das políticas públicas de imunização coletiva, os agentes patogênicos continuaram circulando na comunidade, e não será atingida a proteção coletiva.

Diversas doenças, como a varíola, foram erradicadas mundialmente e outras, como o sarampo, a poliomielite e a rubéola, foram eliminadas regionalmente graças a campanhas de vacinação em massa por anos e anos a fio.

4. Falso dilema: liberdade x vacinação
Tendo em vista as características cientificas e técnicas do processo de imunização coletiva, temos que a decisão individual de recusa a vacinação obsta a proteção coletiva e o efeito rebanho, impedindo a redução da transmissão do vírus. O número de hospitalizações não diminuirá e o gasto com medicamentos continuará elevado, assim como o número de infectados ou mortos, com consequências deletérias sob o aspecto orçamentário, social e público.

Tais circunstâncias certamente devem ser consideradas em face do interesse difuso de toda população à erradicação das doenças infecciosas, tais como a Covid-19, mas o direito a liberdade e individual e a disposição sobre o próprio corpo não pode ser desprezado. É justamente nessa delicada intercessão entre princípios de grande prestígio que reside a enganosa celeuma.

Um posicionamento radical que defenda o direito ao próprio corpo como impedimento a administração da imunização não possui enquadramento no direito, uma vez que são diversificados os conceitos de liberdade. Suas numerosas abordagens podem variar do individual ao coletivo, ganhando contornos e intepretações que impedem que se caminhe em um sentido único, já que aplicados a distintos sistemas jurídicos, políticos e inclusive considerando interesses econômicos.

Uma questão dessa magnitude, em que princípios e valores de índole constitucional descritos por meio de conceitos com elevado nível de indeterminação, tais como "liberdade", "bem-estar" e "saúde", certamente pode ser qualificada como hard case, conforme denominado por Ronald Dworkin. São questões intrincadas que não encontram sua solução por meio do exame das regras jurídicas ordinárias, mas sim com a utilização de princípios. Com a adoção desse mecanismo, as questões mais sensíveis são decididas com os fundamentos constitucionais, e não com regras infralegais e administrativas, por exemplo. Essas questões naturalmente terminam sendo objeto de exame pelas cortes superiores em sede de jurisdição constitucional.

Tendo em vista que a possibilidade de recusa individual à imunização com base em quaisquer preceitos ou estatutos constitui falácia sem embasamento técnico, podemos apontar dois argumentos que sepultam confortavelmente o alegado conflito.

Primeiramente, é preciso lembrar que no fim das contas, e admitindo-se como paradigmas a dignidade da pessoa humana, o bem-estar, a redução dos riscos de doenças, bem como acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, não é difícil perceber que o vetor de interpretação dos assuntos ligados a saúde é o interesse público.

O interesse público é a resultante do somatório dos interesses privados de todos os indivíduos considerados pessoalmente e enquanto membros da sociedade, simplesmente por terem esta qualidade. Trata-se do interesse individual qualificado no âmbito coletivo, diluído em sua singularidade com cerne no coletivo. Uma pertinente análise sobre este conceito foi feita por Juan Carlos Cassagne: "À resposta a pergunta sobre o que vem a ser interesse público, costuma-se responder afirmando que é a soma da maioria dos interesses concretos individuais coincidentes, como se essa fosse uma questão de suma e subtração que se possa desligar do bem comum, que constitui o verdadeiro interesse público, o interesse de todos (usuários atuais e futuros) e não o interesse de um grupo, por mais majoritário que este possa ser".

A concretização do interesse geral em uma situação de risco, assim, é uma prioridade a ser perseguida pelo fato de representar a dimensão pública do interesse de cada um.

Tais diretrizes, por óbvio, presumem vacinas cuja segurança e eficácia tenham sido devidamente aprovadas pelas autoridades sanitárias, dotadas de adequados níveis de imunização e de redução da disseminação dos males que pretendem prevenir.

Um segundo argumento tem relação com a fundamentalidade do direito individual alegado pelas pessoas que se opõem a imunização, o que não pode ser refutado. De fato, a incolumidade corporal é uma garantia fundamental imprescindível e inalienável, uma vez que direitos fundamentais são as posições jurídicas ativas das pessoas, individual ou institucionalmente consideradas conforme o regime de proteção definido na Constituição Federal e em tratados internacionais.

A despeito de sua essencialidade, todavia, os direitos e garantias fundamentais não são absolutos em sua integralidade, pelo contrário: são relativos. Como os direitos fundamentais guardam uma relação direta e necessária com a comunidade político-jurídico e o Estado, as soluções de eventuais hard cases passam pela ponderação entre princípios e valores.

Portanto a oponibilidade absoluta à imunização coletiva por parte de seus defensores, com o suposto fundamento de proteção do próprio corpo, não se coaduna com o regime de direitos fundamentais de preservação da saúde individual e coletiva, bem com o princípio da erradicação de doenças infecciosas, a exemplo da Covid-19.

5) Conclusão
O sistema jurídico não pode ser interpretado de maneira apartada da realidade que o circunda, nem tampouco ser utilizado como instrumento de manipulação de dados sob a forma de argumentação parcial com vistas a legitimar a desinformação, fake news ou disputas políticas inoportunas e prejudiciais à coletividade. Trata-se de uma falsa dicotomia que pode ser superada por meio da aplicação de regras simples de interpretação jurídica.

Subestimar uma doença que não possui cura, ignorando técnicas científicas de eficácia e segurança largamente comprovadas sob a alegação de proteção a suposto direito individual, é algo que não se adequa ao direito brasileiro. A preservação da vida e a erradicação de doenças é uma das metas de uma sociedade baseada na solidariedade e na redução das desigualdades, conforme estabelecido em nossa Constituição Federal.

Não obstante estarmos diante de autêntico hard case com implicações na esfera pessoal de toda a população, o direito difuso à saúde coletiva é sem dúvida representativo da supremacia do interesse público sobre privado, justificando intrusões excepcionais no poder de autodeterminação individual.

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