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Acordo de não persecução penal em audiência de custódia

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9 de dezembro de 2020, 6h32

No último dia 24 de novembro, o CNJ aprovou o Ato Normativo nº 0009672-61.2020, que autorizou a realização das audiências de custódia por videoconferência neste momento pandêmico que estamos vivenciando.

Não bastasse o "bolo" (audiências de custódia por videoconferência) — assunto sobre o qual já nos manifestamos aqui [1] —, a regulamentação do CNJ ainda trouxe uma "cereja", qual seja: a autorização para realização de acordo de não persecução penal (ANPP) na audiência de custódia e, inclusive, online, e é justamente sobre essa temática que nos debruçaremos no presente artigo.

Em que pese se entenda possível a realização de um acordo de não continuidade da persecução penal após o oferecimento da denúncia com relação aos processos que já se encontravam em andamento antes do advento da Lei 13.964/2019, reconhece-se que o locus do ANPP é a fase de investigação.

É de se questionar, todavia, a realização de um ANPP em uma fase tão incipiente da investigação, mormente quando será exigido do preso, como umas das condições obrigatórias, a confissão formal e circunstanciada do delito que lhe é imputado. Destarte, em espaço consensual, deve ser assegurado às partes condições efetivas de negar as propostas que entender injustas ou desvantajosas.

Primeiramente, questionamos a voluntariedade do ato de confissão quando o preso sabe que a realização do acordo implicará o restabelecimento da sua liberdade. Em segundo lugar, ponderamos até mesmo a situação de vulnerabilidade emocional em que se encontra o autuado em um prazo de até 24 horas após sua prisão: será que sua manifestação de vontade não estaria maculada por algum vício de consentimento?

Ademais, também entendemos que é pouco provável que o representante do Ministério Público tenha tido tempo suficiente para estudar se o caso concreto não poderia, porventura, ensejar um arquivamento.

Sustentamos ainda que a realização de uma investigação defensiva é fundamental para termos paridade de armas entre acusação e defesa na seara do processo penal negocial [2] e, por óbvio, em sede de audiência de custódia, a defesa fica tolhida dessa possibilidade. Isso reverbera uma discrepância de dados argumentativos, o que conduz, na prática, que o autuado assine um verdadeiro "acordo de adesão" com o Ministério Público. Afinal, para que o investigado tenha chances de participar efetivamente do direcionamento dos termos do ANPP, faz-se necessário que se apresente ao representante do parquet elementos informativos defensivos.

É bem verdade que a audiência de custódia é precedida pela lavratura de um auto de prisão em flagrante. Destarte, em que pese a defesa possa, consoante determinação do artigo 14 do CPP, requerer diligências à autoridade policial, que somente poderá denegá-las mediante motivação adequada, sob pena de cerceamento de defesa (STJ, HC 69.045), muitas vezes sequer haverá tempo hábil para eventuais requerimentos no intervalo temporal entre a lavratura de um auto de prisão em flagrante — no qual não é obrigatória a presença da defesa técnica — e a realização da audiência de custódia. Ressalta-se ainda que a investigação oficial realizada pela polícia tem por objetivo buscar indícios de autoria e materialidade, escamoteando-se, muitas vezes, os interesses defensivos [3].

A investigação defensiva está disciplinada no Brasil por intermédio do Provimento n°188/2018 do Conselho Federal da OAB. A efetivação do inquérito defensivo se coaduna com critérios políticos criminais de inegável viés democrático e de resguardo da paridade de armas, mormente quando o plenário do STF, nos autos do RE 593.727/MG, de relatoria do ministro Cezar Peluso, reconheceu como legítimo o poder de investigação direta do Ministério Público. Impende destacar que a investigação defensiva não traz nenhum prejuízo ou obstáculo à investigação oficial.

Outrossim, o investigação defensiva tem, no processo penal negocial, papel fundamental, pois sua ausência implica que a defesa ingresse nas tratativas do acordo em patamar dissonante do parquet: a acusação abastecida de elementos informativos colhidos no auto de prisão em flagrante e a defesa apenas brandando a presumida inocência do autuado.

É cediço que o princípio da presunção de inocência assegura juridicamente ao autuado a faculdade de adotar uma postura passiva quanto à demonstração de sua inocência. Pragmaticamente, no entanto, angaria-se uma posição negocial mais vantajosa, se a defesa trouxer aos autos elementos probatórios que possam contribuir para que seja realizado um acordo mais benéfico para o imputado ou até mesmo para convencer o representante do Ministério Público que o caso concreto deve ser arquivado.

Afinal, ao acusado é reconhecida a qualidade de sujeito processual e, como leciona Costa Andrade:

"Só pode falar-se de um sujeito processual, com legitimidade para intervir com eficácia conformadora sobre o processo, quando o arguido persiste, por força de sua liberdade e responsabilidade, senhor de suas declarações, decidindo à margem de toda a coerção sobre se e como quer pronunciar-se [4]".

A existência de defesa meramente formal na Justiça negociada custará ao investigado acordos que lhes são desfavoráveis ou até mesmo a instauração de ações penais sem "justa causa". Desta feita, rechaçamos a realização do ANPP em sede de audiência de custódia presencial, quiçá na modalidade virtual.

A ausência física do autuado nas custódias compromete sua comunicação direta com o defensor técnico, que nem sempre poderá se dirigir para o local onde se encontra o preso. Em que pese lhe seja assegurado o direito a uma entrevista reservada, não se tem garantia alguma do sigilo dessa conversa. Como o autuado pode consentir seguramente sobre um acordo nestes termos?!

Em conclusão, acreditamos que a realização de ANPP em audiência de custódia por videoconferência é uma afronta ao processo penal democrático. Destarte, é preciso ponderar que uma persecução penal justa e equilibrada é benéfica a toda a coletividade. Tão importante quanto a existência do processo penal, é a forma como ele é desenvolvido, levando-se em consideração que — se entre as suas finalidades vigora a busca da verdade e a celeridade processual — objetiva, outrossim, a salvaguarda dos direitos fundamentais.

Levando-se em consideração, todavia, que a possibilidade de ANPP está regulamentada pelo CNJ, sugerimos, ao menos, que as tratativas do ANPP sejam subsequentes à decisão judicial sobre liberdade provisória/prisão preventiva do autuado, como forma de minimizar sua situação de vulnerabilidade. E vamos além: a questão não pode ser tratada de forma preclusiva, ou seja, a não realização do ANPP naquele momento não inviabiliza que, até o oferecimento da denúncia, acusação e defesa transacionem um acordo.

Referências bibliográficas
ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2013.

NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves: ROCHA, Jorge Bheron. Pau que dá em juiz de garantias não dá em custódia virtual? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/opiniao-juiz-garantias-custodia-virtual

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020

ROSA, Alexandre Morais da; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. A investigação defensiva no acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/07/22/a-investigacao-defensiva-no-acordo-de-nao-persecucao-penal/.


[1] NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves: ROCHA, Jorge Bheron. Pau que dá em juiz de garantias não dá em custódia virtual? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-02/opiniao-juiz-garantias-custodia-virtual

[2] ROSA, Alexandre Morais da; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. A investigação defensiva no acordo de não persecução penal. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/07/22/a-investigacao-defensiva-no-acordo-de-nao-persecucao-penal/, acesso em: 25/11/2020

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020, p. 361

[4] Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 122.

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