opinião

Ausência regulatória, silêncio estatal, descaso empresarial

Autores

  • José Carlos Higa de Freitas

    é advogado na Advocacia Ruy de Mello Miller e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015) com experiência na área contratual consultiva e de contencioso estratégico nos setores de infraestrutura transportes e comércio exterior.

  • Ana Beatriz Junot Longhin

    é advogada na Advocacia Ruy de Mello Miller e pós-graduanda em Direito Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD).

9 de dezembro de 2020, 6h06

A morte em um supermercado chamou atenção para um problema que existe há muito tempo e que segundo o nosso ilustre presidente [1] não passa de uma "tentativa de importar para o nosso território tensões alheias à nossa história".

Não vamos falar de racismo e da história de um país que conviveu com a escravidão durante 400 anos. A abordagem aqui é mais simplória, pois não nos julgamos competentes para realizar uma análise adequada sobre o assunto.

Por outro lado, existe um ponto que parece passar despercebido da grande mídia, mas que para os operadores do Direito e profissionais dedicados à gestão de riscos dentro das empresas se torna importante, que são os riscos envolvidos na terceirização da segurança privada e a lacuna regulatória existente sobre essa matéria.

Talvez por sua história o Estado brasileiro não expressa uma preocupação muito forte em relação à regulação da segurança privada no Brasil, seja porque prevalece uma visão patrimonialista, seja porque é conveniente aos responsáveis pela segurança pública do país manter o quadro que se apresenta [2].

No Brasil, a segurança privada encontra a sua principal referência na Lei nº 7.102, de 20 de junho de 1983, sendo regulada por portarias da Polícia Federal. Um exemplo é a Portaria nº 3.233 de 2012 — DG/DPF. Normas gerais dos agentes de segurança pública possuem aplicação subsidiária, merecendo destaque o princípio de que o agente de segurança deve usar a força de maneira proporcional à ameaça enfrentada.

A grande questão é que existem respostas para desvios de conduta — como o do evento do supermercado — nas esferas penal e cível do nosso ordenamento jurídico, mas não se verifica maiores penalidades na esfera regulatória para empresas complacentes com esse tipo de atitude.

Dentro desse contexto, se observa uma presença muito forte de agentes da segurança pública nesse ramo, o que por si só implica em um ilícito administrativo. A carreira policial militar é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades precípuas das Polícias Militares, denominada "atividade policial militar" [3]. Assim, a própria Justiça Militar reconhece que o exercício de atividade econômica, denominada "bico", é expressamente vedado, como se pode verificar na ementa destacada abaixo:

"TJM-SP Apelação Cível Nº 002940/2012 (Feito nº 004384/2011 2A Auditoria — Cível ) Ementa: Policial militar — Mandado de segurança impetrado para a anulação de ato administrativo que impôs a sanção de repreensão — denegação da segurança em primeira instância — Improcedência da alegação recursal de vício no procedimento disciplinar decorrente de violação ao devido processo legal e de julgamento contrário às provas dos autos — O impetrante admitiu o exercício de atividade extracorporação, a qual restou comprovada — Inteligência do artigo 130, do Código de Processo Civil, do artigo 8º, § 1º, da Lei Complementar estadual nº 893/01 e da Lei Estadual nº 10.291/68 — O exercício de atividade econômica paralela, denominado 'bico', é expressamente vedado — Improvimento do recurso — Votação unânime. Decisão: 'A 1ª Câmara do TJME, à unanimidade de votos, negou provimento ao apelo, de conformidade com o relatório e voto do relator, que ficam fazendo parte do acórdão'".

Em geral, os estatutos permitem somente a participação dos agentes públicos em empresas de segurança privada na qualidade de acionistas ou cotistas, mas não admitem a atividade paralela, pois, como bem observou o STJ, isto resultaria na maior probabilidade de haver a quebra de hierarquia militar e a falta de disciplina, e por efeito, o comprometimento da ordem pública necessária à sociedade, a saber:

"REsp 1456184. Relator (a): Ministro Humberto Martins. Data da Publicação: 05/11/2015. Decisão […] Processo administrativo disciplinar. Militar. Expulsão. artigo 1º, II, DA LEI N. 8.906/94. […]. Independência entre esfera penal e administrativa. Ilícito administrativo reconhecido. […] Tese prejudicada. Recurso especial não conhecido. […] Ademais, a atividade laboral paralela desencadeia efeitos, sendo um deles o ilícito administrativo. Certo é que o 'bico' afronta os ditames castrenses vigentes, além do risco de tal atividade, por ser de caráter particular, exigir dedicação, a ponto de haver uma inversão de valoração de emprego, onde a atividade policial militar possa vir a ser relegada a segundo plano, em detrimento da sociedade. O que ocorre quando o policial militar, em suas horas de folga, busca atividade paralela, conhecida como 'bico', é a maior probabilidade de haver a quebra da hierarquia militar e a falta de disciplina, e, por efeito, o comprometimento da ordem pública necessária à sociedade […]".

O resultado de tudo isso é que são notórios os abusos cometidos por seguranças particulares. Episódios de agressões físicas, tortura e mortes parecem se repetir sem consequências maiores para aqueles que contratam o serviço de segurança privada [4], mas isto não deve ser sempre assim.

Existem riscos relacionados a terceiros na atividade econômica de toda empresa. Por exemplo, empresas que atuam com importação e exportação de bens precisam dedicar atenção aos prestadores de serviço relacionados ao desembaraço aduaneiro, organizações de varejo de roupas e acessórios devem se preocupar com toda a sua cadeia de produção, etc.

Por sua vez, empresas que contratam os serviços de segurança privada precisam reconhecer a alta exposição aos riscos dos episódios relatados acima, traçando diretrizes internas para identificação, avaliação e gestão dos terceiros contratados, independentemente das lacunas regulatórias apontadas, dentro do princípio da DOJ e SEC do risk based approach.

Diz este princípio [5] que "DOJ and SEC will give meaningful credit to a company that implements in good faith a comprehensive, risk-based compliance program, even if that program does not prevent an infraction in a low risk area because greater attention and resources had been devoted to higher risk area".

Assim, caberia às empresas altamente expostas aos eventos relatados acima focar diretamente na prevenção dos riscos e mitigação dos danos relacionados a este tipo de questão para adaptar corretamente os seus programas de integridade.

De fato, o não compliance pode trazer riscos importantes [6], dentre eles:

— Prejuízos reputacionais;

— Queda do valor de mercado da empresa;

— Desconfiança do mercado com perda de oportunidades negociais;

— Diminuição das receitas, em razão da resistência de parte dos consumidores;

— Ruptura de contratos;

— Gastos com advogados e taxas processuais.

Tudo isso significa que as empresas devem atuar para diminuir os riscos daquilo que não pode ser considerado uma simples fatalidade. Deve ser verificado sempre a regularidade da empresa de segurança privada a ser contratada. Verifica-se, por exemplo, que grande maioria das empresas que atuam nesse segmento não se encontram regularmente inscritas na Polícia Federal [7]. Este é um primeiro corte.

O segundo ponto é de que a contratação de agentes de segurança pública precisa ser devidamente ponderada, seja porque a atuação destes indivíduos resulta necessariamente em uma infração administrativa, seja porque pode resultar na confusão indevida do interesse público e do privado.

Por derradeiro, cabe lembrar que o treinamento exigido dos vigilantes pode não atender ao padrão valorativo e comportamental da empresa, motivo pelo qual é preciso reforçar iniciativas para que sejam atendidos os objetivos de prevenção de eventos danosos, segurança dos cidadãos e dignidade da pessoa humana.

O silêncio do Estado não é motivo para a omissão dos agentes particulares, que integram uma sociedade pretensamente justa, democrática e igualitária. Por conta disso, não bastam medidas tomadas no calor dos holofotes [8], mas uma reflexão aguda sobre a regulação e respostas a este tipo de conduta. A inclusão das empresas infratoras no Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) seria um começo tímido, mas seria um começo.


[2] História e legislação da segurança privada no Brasil. Disponível em: http://gestaoemseguranca.com.br/historia-e-legislacao-da-seguranca-privada-no-brasil.html. Acesso em 02/12/2020

[3] Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (R-200), artigo 16 — A carreira policial-militar é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades precípuas das Polícias Militares, denominada "atividade policial militar."

[5] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Criminal Division of the U. S. Department of Justice and the Enforcement Division of the U.S. Securities and Exchange Comission. A Resource Guide to the FCPA U.S Foreign Corrupt Practices Act. Disponível em: https://justice.gov/criminal-fraud/fcpa-guidance Acesso em 02/12/2020

[6] NOBREGA, Marcos e ARAÚJO, Leonardo Barros C. Custo do não compliance. In: CARVALHO, André Castro (Coord.). Manual de Compliance. Rio de Janeiro: Forense, 2019. Pág. 289.

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