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Controvérsias sobre o ICMS nas operações de comércio eletrônico

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

9 de dezembro de 2020, 11h05

Spacca
Apesar da crescente importância do comércio eletrônico, a incidência do ICMS nas operações interestaduais de mercadorias ainda guarda muitas controvérsias, especialmente quanto à dinâmica de transferências de mercadorias entre estabelecimentos, para atender a clientes cada vez mais exigentes e com demandas de celeridade e pontualidade nunca dantes experimentados.

A pandemia da Covid-19 potencializou aquelas exigências, a promover uma urgente transformação do varejo. Por outro lado, as legislações estaduais permanecem nos seus arcaísmos, sem maiores preocupações de atualizações ou ajustes, a exigir das empresas que estas operem como nos tempos do comércio tradicional.

O comércio eletrônico pode e deve ser estimulado por regras tributárias simplificadoras que promovam seu crescimento, o que certamente tem ampla capacidade para aumento de arrecadação tributária global. Na economia disruptiva, o Fisco tem um amplo espaço para maximizar sua arrecadação, e não o oposto.

Contudo, os estados nunca souberam coordenar um modelo eficiente de tributação do comércio eletrônico. Bastam-se com aplicação das antigas técnicas de arrecadação aos atuais modelos de negócios em plataformas eletrônicas. Uma letargia, porém, que só favorece a informalidade ou estimula a pulverização em milhares de micro e pequenas empresas, com tributação baseada unicamente no Simples nacional. Logo, com notáveis perdas de arrecadação para os estados e para a União, pela repercussão erosiva das bases imponíveis do PIS/COFINS, do IRPJ e da CSLL.

São casos como este que mostram a urgência de reforma do Confaz e sua conversão em órgão de política federativa do ICMS coordenada pelo Senado Federal, que é a casa de representação dos estados, o que tenho defendido há muitos anos. Legisla como se fosse um substituto do legislador complementar, por meio de convênios que extrapolam, de longe, os limites da sua atuação em conformidade com os termos da Lei Complementar nº 24/75.

Nos seus excessos de atuação à margem da Constituição, o Confaz editou o Convênio ICMS 93/2015 para estabelecer toda a regra-matriz do ICMS incidente nas operações interestaduais do e-commerce. Uma teratologia aviltante do texto constitucional, pois dispunha sobre tudo aquilo que o art. 155, § 2º, XII ou o art. 146, III, “d” da CF reservaram para a lei complementar, como sujeito passivo, base de cálculo ou mesmo o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte. Foi um tiro no pé. Como foram os convênios sobre substituição tributária e tantos outros atos de grotescas inconstitucionalidades.

Este Convênio ICMS nº 93/2015, veio a pretexto de regulamentar a Emenda à Constituição nº 87/2015. Contudo, ao impor alíquotas ordinárias do ICMS interestadual às empresas do Simples, ofendia o art. 146, III, “d” da CF, o princípio da não cumulatividade (art. 155, § 2º, I e VII da CF), além de outros dispositivos.

O Supremo Tribunal Federal, ao conhecer da ADI 5.469, com relatoria do Ministro Dias Toffoli, deferiu liminar para suspender a eficácia da cláusula nona do Convênio ICMS nº 93/2015 editado pelo Confaz, até o julgamento final da ação, o que ainda não ocorreu. A saber:

"Cláusula nona – Aplicam-se as disposições deste convênio aos contribuintes optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional, instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em relação ao imposto devido à unidade federada de destino."

Correta decisão do Ministro Dias Toffoli. Nas suas palavras: "A Constituição dispõe caber a lei complementar — e não a convênio interestadual — estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte."

Vale recordar que antes da Emenda Constitucional nº 87/2015, as operações de vendas junto a consumidores finais eram integralmente tributadas por ICMS no Estado de origem, como se fosse uma venda a consumidor final.

Após a edição da Emenda Constitucional nº 87/2015, que modificou o § 2º do artigo 155 da Constituição, e incluiu o artigo 99 no ADCT, que veio para pôr fim à “guerra fiscal do comércio eletrônico”, as empresas varejistas assumiram um regime de aplicação de alíquotas interestaduais de ICMS para consumidores finais localizados em outros Estados. Desse modo, ao Estado de destino, desde 2019, corresponderá a diferença entre a sua alíquota interna de ICMS e a alíquota interestadual que foi cobrada pelo Estado de origem. Logo, se o destinatário das mercadorias for contribuinte, deverá recolher esta diferença; caso não o seja, o recolhimento ficará a cargo do estabelecimento remetente.

Ou seja, tem-se atualmente a exigência de diferencial de alíquotas de ICMS — DIFAL nas operações que destinem bens a consumidor final localizado em outro Estado. Para melhor clareza, serão aplicadas (i) alíquota interestadual de 7% nas vendas provenientes do Sul e do Sudeste, com destinado às Regiões Norte, Nordeste, Centro Oeste e Espírito Santo; e (ii) alíquota interestadual de 12% em todos os demais casos.

Contudo, como a matéria virou matéria da ADI 5.469, nos últimos 4 anos, vimos a transformação de empresas do varejo em verdadeiras prestadoras de serviços, na forma de grandes portais eletrônicos, a atuarem como intermediadoras das vendas ao consumidor por meio de empresas do Simples.

Assim, todas estas empresas do Simples passaram a competir com as grandes e médias empresas do comércio varejista, que ficaram sujeitas a um modelo completamente arcaico, lerdo e gravoso que tem levado todas as empresas a urgentes adaptações, ante o risco de devastação geral do segmento e condenação do varejo brasileiro a uma nano economia, de precárias garantias ao consumidor. A diferença expressiva de carga tributária estará na base desta distorção. E a culpa desta tragédia de perdas notáveis de arrecadação para estados e para a União, logicamente, é do Confaz, no seu afã de ampliar a arrecadação com inconstitucionalidades a qualquer custo.

Após a Emenda Constitucional nº 87/2015, advieram mudanças relevantes que impactaram fortemente as relações do ICMS com as empresas do varejo.

A primeira, com a Lei Complementar nº 160/2017, que autorizou os Estados a perdoarem os créditos tributários decorrentes de benefícios fiscais relativos ao ICMS e homologou os incentivos em vigor nos Estados envolvidos. A LC nº 160/17 trouxe um quórum deliberativo para convalidação e reinstituição dos benefícios no âmbito do Confaz, com aprovação e ratificação de Convênio pelos Estados. Para tanto, o art. 2º da lei complementar previu um quórum de dois terços dos Estados, para aprovação do mencionado Convênio no Confaz, e, cumulativamente, a aprovação de um terço das unidades federadas, integrantes das cinco regiões do país.

A segunda, com as decisões recentes do STF, de agosto de 2020, sobre direito a glosa dos créditos nas operações com incentivos de outros estados concedidos em contrariedade às regras do art. 8º da LCP nº 24/75 (ADI 3.692)1, e afastamento de incidência do ICMS sobre vendas a estabelecimentos da mesma pessoa jurídica (ARE 1.255.885, com repercussão geral – Tema 1099).2 A “saída” deve, pois, coincidir com a transferência jurídica da mercadoria, de uma dada entidade patrimonial a outra, segundo o conceito constitucional de “circulação”. Meras transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte ou com depósitos, ainda que situados em Estados diversos, não geram efeitos jurídicos externos perante terceiros, porquanto não possuam intuito mercantil; e não configuram “operações de circulação”.

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.692, reputou-se constitucional normas do Estado de São Paulo que autorizam a glosa de créditos de ICMS registrados por estabelecimentos situados em seu território. Assim, o STF autorizou a glosa de créditos de ICMS, diante de benefícios fiscais aproveitados pelo fornecedor, e não pelos adquirentes. A restrição, no entanto, restou circunscrita a regimes especiais de tributação concedidos sem autorização do Confaz ou que não tenham sido posteriormente convalidados pela Lei Complementar nº 160/2017, nos limites das relações com o Estado de São Paulo.

E temos os efeitos da decisão do STF que julgou inconstitucional a antecipação do ICMS interestadual que vinha sendo praticada pelo Estado de São Paulo, inclusive na substituição tributária, ao julgar, com repercussão geral (Tema 456), o Recurso Extraordinário nº 598.677, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli. Por meio deste, reputou-se inconstitucional a prática de exigência de ICMS quando um comerciante adquire mercadorias em outros Estados, com a retenção antecipada do ICMS, quando queda-se obrigado a recolher o ICMS das operações subsequentes na entrada no território do Estado de destino.

Estas decisões do STF, à evidência, reescrevem capítulos fundamentais do ICMS nas operações interestaduais e obrigam os estados a uma profunda revisão legislativa, para acomodar suas leis e regulamentos às repercussões gerais destes novos temas. Esta tem sido a grande reforma tributária silenciosa que o STF tem promovido no sistema tributário, ao largo da omissão do poder legislativo, cujos reflexos se fazem sentir nas operações de varejo,

Nos tempos atuais de intensificação do comércio eletrônico, complexas demandas de operações logística reclamam o ritmo de rápida resposta na entrega de mercadorias, com destino a qualquer ponto do território nacional, como forma de aproximar fisicamente a empresa dos mercados e dos seus consumidores, com melhores ganhos de escala e competitividade. Nisto, crescem em importância os grandes centros de distribuição, a exigência de celeridade na remessa ou devolução de mercadorias, a capacidade de alocação imediata de vendas de mercadorias entre indústria e varejo.

Em conclusão, diante das recentes decisões do STF, justifica-se, por parte das empresas, uma revisão ampla dos modelos de negócio e das práticas de mercado do comércio eletrônico, pela ampliação da segurança jurídica e superação de riscos que dantes pesavam nestas operações. Ao mesmo tempo, seria de extrema importância que o Congresso Nacional, no âmbito da reforma tributária, buscasse otimizar a redução de externalidades no comércio eletrônico, com simplificação das suas obrigações principais e acessórias do ICMS e demais tributos incidentes. Impõe-se afirmar a proteção constitucional de solução que prestigie a liberdade de iniciativa econômica e autonomia da vontade dos contribuintes de ICMS (art. 5º, XXII, e art. 170, ambos da CF).

Que 2021 traga dias melhores para nosso sistema tributário, com uma ampla reforma infraconstitucional que ponha fim a todas estas dificuldades e impasses gerados pela complexidade excessiva, mediante simplificação dos procedimentos e justiça fiscal para todos. Este é o melhor caminho para a sustentabilidade fiscal, com aumento de arrecadação e redução de litígios tributários infindáveis. Boas festas a todos.


15. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida com relação ao Comunicado CAT n. 36/2004 e ao caput do art. 36 da Lei n. 6.374/1989 do Estado de São Paulo e julgada improcedente quanto ao § 3º do art. 36 da Lei n. 6.374/1989 do Estado de São Paulo”.

2Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

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    é advogado, professor titular de Direito Financeiro e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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