Trabalho Contemporâneo

Justiça, tentação, liberdade econômica e Direito do Trabalho

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8 de dezembro de 2020, 8h02

Oito de dezembro. Nesta terça-feira se comemora o Dia da Justiça, criado pelo Decreto-Lei 8.292 de 1945, em referência à Imaculada Conceição, cujo dogma foi fixado pela Bula Infeffabilis Deus, escrita pelo papa Pio IX em 1854.

Esse pequeno resgate histórico faz refletir sobre as diversas influências que os intérpretes do Direito sofrem quando se dedicam à difícil tarefa de extrair de um texto normativo o seu sentido e alcance, mormente quando há certo pensamento dominante em determinada área que conduz a algumas conclusões de acordo com esse conjunto de ideias preconcebidas.

Como magistrado trabalhista há 23 anos, posso afirmar que a área em que atuo padece deste vício, o que me fez refletir sobre o valor da Justiça e suas virtudes, a ponto de se escolher o dia em que consagrado o dogma da Imaculada Conceição para sua comemoração pela sociedade.

Apesar de não estudar Teologia, a breve pesquisa que fiz indica que a correlação se deu porque "a Imaculada Conceição de Maria significa que a Virgem Maria foi preservada do pecado original desde o primeiro instante de sua existência", sendo ela "totalmente possuída por Deus" e, portanto, "não há, em sua vida e coração, lugar para o pecado". A Justiça, classicamente representada pela deusa grega Têmis, com sua espada, venda e balança, constitui um conjunto de valores encarnados pelo Poder Judiciário, que deve atuar para garantir a igualdade entre todos, de forma imparcial e usando da sua força para que, em última análise, a cada um seja garantido o que lhe é devido.

Foi justamente a notícia de um pronunciamento do papa Francisco encorajando os juízes da América e da África a fazermos de nossas decisões poesias, tal qual os movimentos sociais o fazem, para construir uma nova justiça social, que despertou a reflexão a que me dedico hoje, já que possuo formação cristã, seja pelos ensinamentos de minha família, seja pela formação escolar, pois frequentei o Colégio Marista São José.

O que seria na prática essa atuação poética para a construção de uma nova justiça social? Cabe aos juízes este papel? Qual o limite de atuação de um juiz para a construção desta nova ordem? Devem os juízes ser atores da uma revolução social conforme sua própria poesia? Qual a ordem de valores que nós, poeticamente, devemos implementar pela força que nos foi concedida pelo ordenamento jurídico após regular ingresso na magistratura? Devemos ser ativistas dessa nova justiça social?

Fico imaginando a consequência óbvia se cada magistrado trabalhista, somos cerca de 3,5 mil em atividade em todo o Brasil, resolver se utilizar do poder que lhe foi imbuído para fazer justiça social pela sua própria ótica: caos. Conseguiríamos realizar o oposto de toda a finalidade da construção do Direito, que quer harmonia e paz social.

Sem aprofundar na questão do ativismo judicial, que abordarei em outras oportunidades, e ainda impactado pelas influências externas que os juízes sofrem em seu mister, percebei que há um tema onde o magistrado do trabalho sofre eterna tentação. Talvez de todos os temas polêmicos do Direito e do Processo do Trabalho, este seja um capaz de identificar se conseguimos ou não resistir à tentação de fazer justiça poética. Trata-se da responsabilização dos sócios de uma empresa e a desconsideração da personalidade jurídica.

Infelizmente, é comum, na execução trabalhista, nos depararmos com a situação de impossibilidade de satisfação do credor, pois a pessoa jurídica onde trabalhou o exequente já não possui condições patrimoniais para o adimplemento de sua obrigação. Para se ter uma ideia, em 2019, do acerco total de 3.530.836 execuções, somente foram encerradas 924.907 (26,2%) na Justiça do Trabalho, conforme relatório analítico publicado pelo TST.

Constatada tal situação, há normalmente a solução de se desconsiderar a personalidade jurídica do empregador para se buscar a responsabilidade direta do sócio quanto às obrigações trabalhistas. E justamente aí vem a tentação, imbuída de um sentimento de reparação social, algo como: se o sócio enriqueceu às custas do trabalhador, que, agora, quebrada a empresa, o sócio devolva sua riqueza em prol de quem gastou a energia de trabalho. Em outras palavras, o que o sócio acumulou de patrimônio deve agora ser revertido em favor dos trabalhadores, já que a empresa não possui condições de realizar o adimplemento.

Justa a ideia? Sim. Em quais condições e limites? Pois bem, nesse ponto é que a reflexão fica interessante. A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto já positivado, possuindo, portanto, requisitos e limites fixados em nosso ordenamento jurídico. Na área trabalhista, costuma-se indicar dois diplomas legislativos para justificar a sua aplicação: o artigo 50 do Código Civil e o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.

O CDC, em sua principiologia de defender o consumidor, diante de sua vulnerabilidade, alarga o conceito da desconsideração e autoriza sua utilização quando houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade por má administração e, ainda, sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores (artigo 28 e parágrafo quinto do CDC).

Nesse ponto, comumente se observa a argumentação na área trabalhista que parte de uma teoria "menor" da desconsideração, realizando o diálogo das fontes do Direito e trazendo para nossa seara a ideia de que o simples fato da pessoa jurídica não possuir patrimônio viabiliza a responsabilidade do sócio, ainda que de forma subsidiária. O obstáculo ao ressarcimento do trabalhador seria, portanto, o fato da pessoa jurídica não possuir patrimônio, independentemente da conduta dos sócios, mesmo sem nenhuma prática abusiva ou ilícita. Repito: se a empresa não possuir mais patrimônio, que o sócio então arque com sua dívida trabalhista em todo e qualquer caso! Se antes enriqueceu, agora deve empobrecer.

Ocorre que esse diálogo das fontes do Direito não parece mais ser possível, desde a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19), que remodelou o instituto da desconsideração no Código Civil, modificando seu artigo 50 para fixar que somente em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio da finalidade ou pela confusão patrimonial pode haver a desconsideração. Não é possível, pelo Código Civil, portanto, a aplicação da teoria "menor" sob a premissa do enriquecimento/empobrecimento.

E por qual motivo cheguei a tal conclusão? Porque a própria Lei de Liberdade Econômica é expressa em determinar sua observância "na aplicação e na interpretação" do Direito do Trabalho (artigo 1º, §1º). Por mais que possa soar poética a justiça social de se vincular diretamente o sócio de uma empresa ao pagamento da execução trabalhista, retirando-lhe o patrimônio que acumulou licitamente pelo exercício da empresa, não parece ter sido essa a conclusão a que chegou o Poder Legislativo, não sendo tal escolha, portanto, possível livremente a cada juiz, já que a separação patrimonial entre empresa e sócios é a regra, estabelecendo o legislador as exceções cabíveis.

Logo, para que se possa hoje responsabilizar o sócio de uma empresa na execução trabalhista pelo simples fato da pessoa jurídica não possuir patrimônio, não tendo havido prática de abuso da personalidade, somente se o magistrado "pular" o Direito positivo, ou sublimá-lo em versos poéticos para ignorar a lei.

Parafraseando o famoso poeta, "no meio do caminho tinha uma lei, tinha uma lei no meio do caminho". Pena que os juízes não possuem a vocação e o talento de Carlos Drummond de Andrade, nem a santidade do papa Francisco. Limitemo-nos, portanto, ao nosso papel constitucional, seres humanos falíveis e vaidosos que somos. Graças a Deus!

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