Opinião

É preciso eliminar o racismo no Brasil urgentemente, para ontem

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8 de dezembro de 2020, 6h05

A atitude inicial para combater o racismo no Brasil é admitir a sua existência. Se a população e as autoridades ignoram o racismo, não há como combatê-lo. É evidente o desconhecimento do cidadão brasileiro sobre direitos humanos, aspectos históricos e dados estatísticos que envolvem essa opressão social. A ausência de conhecimento contribui para o sufocamento do negro.

O professor e antropólogo Kabengele Munanga, homenageado por ocasião da comemoração dos 50 anos da assinatura pelo Brasil da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em 2019, disse: "O silêncio e o não dito sobre o racismo brasileiro marca o preconceito da educação e da formação da cidadania em toda as direções" [1]. Acreditamos que o estudo, a investigação e a elaboração de políticas públicas com objetivo de combater a desigualdade social são medidas urgentes. Mais do que isso, refletir sobre o racismo e ser antirracista são atos de cidadania.

A Agenda da ONU 2030 traça como objetivos a erradicação da pobreza em todas as suas dimensões, a redução das desigualdades socioeconômicas e o combate às discriminações de todos os tipos [2].

A discriminação por cor se confunde ao próprio desenvolvimento da sociedade brasileira. Na época do descobrimento, o preto foi sequestrado da sua terra natal, tratado como "coisa" e utilizado como a principal força de trabalho do colonizador em terras brasileiras. No ensino básico, transmite-se a fábula de que a autonomia do Brasil foi concretizada pela vontade do povo miscigenado, sendo essa conquista fruto da convivência harmônica entre os europeus, indígenas e negros que desenhavam o quadro social e que conduziram à proclamação da independência pacífica. O clássico da literatura "Casa-Grande e Senzala" ajuda a difundir essa ideia de que a mestiçagem, o hibridismo, a plasticidade cultural da convivência entre os diferentes povos é, além de uma característica, uma vantagem do Brasil [3].

É certo também que os livros de História atribuem relativa importância aos movimentos autônomos pró-independência (Revolução do Portos, Independência Baiana e Inconfidência Mineira, por exemplo), contudo, a maioria dos escritos traz a lição principal de que o grande herói da independência do Brasil é o imperador Dom Pedro I, que, no dia 7 de setembro de 1822, proferiu às margens do Rio Ipiranga o famoso grito.

Apesar da importância social e jurídica do ato praticado pelo monarca português, pensamos que os verdadeiros heróis da independência do Brasil são outros. A elite dominante, a cultura branca e os costumes fizeram com que as lutas e conquistas de diversos líderes populares fossem colocadas em segundo plano e, especialmente, contribuíram para o esquecimento das batalhas travadas por brasileiros natos, conduzidas em sua grande maioria por pessoas pretas.

Com escopo de esclarecimento, destacamos que são pessoas de feitos notáveis, legítimos heróis e heroínas, da independência do Brasil, as seguintes figuras: Maria Felipa [4] — mulher negra, que nasceu escrava e liderou um grupo de 40 mulheres e homens no recôncavo baiano na luta contra a dominação portuguesa que culminou na proclamação de independência da Bahia no dia 2 de julho de 1823; e Zumbi dos Palmares [5] — homem negro que em 1680 já comandava no nordeste brasileiro movimentos autônomos de resistência às tropas portuguesas (quilombos), é considerado um dos grandes líderes da história pátria, um símbolo da resistência e luta contra a escravidão, lutou pela liberdade de culto, religião e prática da cultura africana no Brasil Colonial.

A nosso sentir, há muitos personagens de maior relevância que o imperador para a conquista da independência do Brasil, a exemplo de Maria Quitéria, Joana Angélica, Ana Nery, Tiradentes, Esperança Garcia, Luiz Gama, entre outros. Todavia, a verdadeira história permanece escondida, em virtude do apagamento sistemático de produções e saberes produzidos pelo grupo étnico oprimido (epistemicídio).

Todos concordam que o racismo brasileiro teve origem no período colonial e que a escravidão foi legalmente extinta no Brasil no dia 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Alguns especialistas afirmam que esses atos coloniais de opressão tomaram outra roupagem e continuam sendo praticados [6].

Sem dúvida, a herança da escravidão deixou consequências nefastas para a população preta, inclusive, demonstradas em pesquisas recentes do IBGE, mercado de trabalho, distribuição de renda, condições de moradia, educação (taxa de analfabetismo), violência (taxa de homicídios) e representação política são os principais dos fatores pesquisados [7]. A pesquisa revela que as pessoas de cor, raça preta ou parda estão em posição de desvantagem em todos os prognósticos das condições sociais no Brasil.

A taxa de homicídio é utilizada para aferição da forma mais extrema de violência no mundo. O estudo demonstra que a taxa de homicídio de pessoas brancas permaneceu estável nos anos de 2012 até 2017, enquanto que o percentual de negros vítimas de homicídio aumentou significativamente. Em todos os grupos etários, o índice de homicídios contra os negros é superior, constatamos que para os jovens entre 15 e 29 anos de idade o percentual é de 98,5 de jovens negros ou pardos, por cem mil habitantes, enquanto a taxa para brancos é de 34,0. A morte de jovens negros na periferia não pode ser naturalizada. É um sintoma do racismo estrutural não se espantar com essa realidade. Estudiosos defendem que esse cenário brasileiro representa um genocídio da raça negra [8]. E, felizmente, há vozes defendendo a mudança: "Tem de mudar a mentalidade de que preto parado é suspeito e correndo é culpado. Isso tem que mudar" [9].


 

 

 

É muito complexo adotar comportamentos voltados a fazer com que as pessoas mudem de posição, visão e opinião, principalmente nos dias atuais, marcados pela elevada polarização de posições ideológicas e ampla disponibilidade de informações. Não obstante, concordamos com a lição da autora Djamila Ribeiro, no sentido de que todos devem adotar as seguintes posturas: informar-se sobre o racismo; enxergar a negritude; reconhecer os privilégios da branquitude; perceber o racismo internalizado; apoiar politicas e ações afirmativas; transformar o ambiente de trabalho; ler autores negros; questionar a cultura que consome; combater a violência racial e ser antirracista [10].

 

O festejado autor Sílvio Almeida, comentando o "racismo estrutural", assegura que o racismo é normal, todos nós, brasileiros, somos racistas, porque crescemos e convivemos em uma sociedade marcada pela opressão, institucionalizada, que se espraia por todo o contexto social, sobretudo, na família, no trabalho, no mundo do crime, nas condições de humanidade (moradia, fome e pobreza) [11].

O professor Adilson Moreira defende que o processo de descolonização de práticas racistas naturalizadas provocou o surgimento do "racismo recreativo" que consiste em "uma política cultural que utiliza o humor para expressar hostilidade em relação a minorias raciais. O humor racista opera como um mecanismo cultural que propaga o racismo, mas que ao mesmo tempo permite que pessoas brancas possam manter uma imagem positiva de si mesmas (…) o humor racista é um tipo de discurso de ódio, é um tipo de mensagem que comunica desprezo, que comunica condescendência por minorias raciais…[12].

A sociedade brasileira também é marcada pelo mito da democracia racial, compartilhamos das ideias do professor Munanga, a saber: "A sociedade brasileira não é uma sociedade com a democracia racial porque nós convivemos com vários tipos de preconceito e discriminação, o que desemboca numa ideologia chamada racismo. O racismo brasileiro tem suas peculiaridades e um dos problemas é a negação de sua existência" [13].

Não raro, atos racistas praticados no Brasil ficam impunes ou são tratados com condescendência pelas autoridades policiais e judiciais. Não é demais lembrar que racismo é crime. Há apenas uma distinção entre tipos penais. O crime de racismo está tipificado na Lei nº 7.716/1989, que estabelece condutas típicas, trata-se de um tipo penal amplo e de ação penal pública incondicionada, que tem por objeto jurídico a proteção de uma coletividade indeterminada de indivíduos, eis o ofensor discrimina a integralidade da raça. A punição pelo crime de injúria racial depende de ação penal privada, admitindo-se inclusive acordo e suspensão da ação. O caso do goleiro Aranha, chamado de "macaco" por torcedores do Grêmio, de Porto Alegre, é emblemático dessa ocorrência [14]. Importa ressaltar que só o crime de racismo é inafiançável e imprescritível (artigo 5º, XLII, CF). Sucede que, na prática, conforme pesquisadores, é muito comum, no bojo de processos criminais, a denúncia pelo crime de racismo ser rejeitada e ser reconhecida apenas a prática da injúria racial, o que implica em consequências penais mais brandas ao ofensor e revela o aspecto de impunidade que decorre do racismo institucionalizado.

Outro aspecto é que a diferença de cor e o racismo estrutural influenciam negativamente a infância. As crianças pretas não se identificam com os personagens da história e dos desenhos animados, já aquelas de pele branca têm maior afeição com os heróis da televisão. No particular, transcrevemos o trecho de uma entrevista do astro de cinema, protagonista do filme "Pantera Negra", Chadwick Boseman: "A ideia de um rei negro que vira um vigilante, dividido entre seu povo e o mundo, reposiciona todas as formas de representação do povo africano na indústria do entretenimento, ao colocá-la num lugar antes vetado a nós, de pele escura" [15].

É preciso não generalizar o sentir, é necessário entender que cada um sente à sua maneira. Os direitos humanos são "aqueles direitos essenciais para que o ser humano seja tratado com a dignidade que lhe é inerente e aos quais fazem jus todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie" [16]. Sem dúvida, uma postura antirracista é uma expressão do direito humano fundamental à igualdade. Os direitos humanos podem e devem ser exercidos na forma horizontal (entre particulares). É muito adequado e pertinente que pessoas de direito privado adotem ações afirmativas (discriminação positiva). Não se pode manter a "miopia" social e negar o racismo.

Na década de 60 do século passado, Martin Luter King lutava pelos direitos civis, de modo que se considerarmos que a tão pouco tempo era legalmente permitido ser racista no país que possui a maior economia do planeta, não é difícil perceber como o ideal de igualdade racial é recente na história mundial e que o sonho de ter uma sociedade igualitária, onde brancos e negros dividem a mesma mesa é ainda distante.

odemos afirmar que todos nós somos racistas ou que todos, em algum momento da vida, praticaram ou vão praticar um ato dessa natureza e sequer vão perceber a crueldade. É crucial que os intelectuais e cientistas, que têm o condão de influenciar toda a sociedade, provoquem mudanças na opinião pública e reconheçam o privilégio da população branca, muitos já o fazem. Além de que, em razão do processo histórico de diminuição das pessoas pretas, faz-se imprescindível que todo brasileiro seja um defensor da política de cotas, como forma atenuar a falta de representação do preto nos espaços de poder.

A democracia racial no Brasil deve deixar de ser um mito. No estágio atual, as mudanças sociais que decorrem da revolução digital (4.0), com instalação de novas formas de interação entre o homem e a máquina (inteligência artificial e hiperconectividade), não podem ser efetivadas, sem uma reflexão sobre a população negra no racismo estrutural, notadamente, no que tange à criminalização do negro e a sua representação no mercado de trabalho. O cenário traçado pelo IBGE evidencia a necessidade de isonomia social e os dados coletados confirmam que essas desigualdades têm origens históricas e são persistentes. Não se pode permitir que as mazelas que assolam o povo negro sejam perenes.


 

 

 

É nesse contexto que devemos aumentar o volume das vozes e dar notoriedade aos autores que falam sobre essa opressão social e lutar pela extinção do racismo. Quebrar o ciclo da pobreza é uma obrigação atual e um direito das futuras gerações. Cada cidadão deve assumir a posição de transformador social, sendo indispensáveis para tanto o conhecimento dos fatos sociais, e, ao invés de apenas tentar mudar a opinião alheia, todos devem ter atitude anti-discriminação e antirracista. Vamos eliminar o racismo, há esperança contra a opressão. Concluímos com as palavras do poeta Renato Russo: "A humanidade é desumana, mas ainda temos chance".

 

 

 

[2] http://www.agenda2030.org.br/ods/10/, acesso em 01/12/2020.

[3] FREYRE, Gilberto, 1900-1987. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª Ed. rev. – São Paulo: Global, 2006.

[10] RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. Companhia das Letras. São Paulo: 2020;

[16] PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 10ª Ed. rev., atual e ampl. – Salvador: JusPOIVM, 2018. Pág. 907.

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