Opinião

Réquiem do contraditório e da participação

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7 de dezembro de 2020, 21h39

"Reminds me of that fella back home who fell off a ten-story building. As he was falling, people on each floor kept hearing him say: 'So far, so good'. Heh, so far, so good" [1]

A fala foi retirada do filme "The Magnificent Seven" [2] e é uma piada, contada por um dos personagens principais, num contexto em que os "mocinhos" estavam em flagrante desvantagem contra os "foras-da-lei", cientes de que haviam ingressado numa batalha da qual dificilmente sairiam vivos.

Transportando o cenário de faroeste para a contemporaneidade e o bang-bang para o processo judicial, temos alguns institutos que vemos serem cada vez mais depredados, caindo de um prédio de dez andares, enquanto o Judiciário permanece repetindo: "So far, so good".

O primeiro deles diz respeito à participação nos processos. Enquanto a doutrina converge no sentido de valorizar o contraditório substancial (não só o direito de falar, mas principalmente o de ter suas manifestações consideradas, a fim de exercer influência) e de estimular as formas de intervenção de sujeitos no processo, mediante ampliação subjetiva e objetiva do contraditório (assim entendido como direito de participação efetiva e de influência), na prática, vemos o caminho inverso.

Nos dias atuais, o contexto de pandemia tem tornado praticamente impossível despachar com muitos magistrados e gerado um efeito perverso sobre os julgamentos colegiados: por exemplo, no TJ-RJ, quase todas as câmaras têm adotado entendimento que impede a inclusão de processos em pauta presencial (ou até mesmo por videoconferência) se não houver previsão de sustentação. O contraditório vai sendo esvaziado cada vez mais… So far, so good.

Recentemente, tem-se visto, inclusive, negativa de vista de relatórios dos processos colocados em pauta, negando-se vigência ao disposto na parte final do artigo 931 do CPC [3]; como se sabe, a vista antecipada do relatório tem como objetivo permitir que as partes analisem se todos os seus argumentos foram percebidos pelo relator, de modo que possam ser devidamente discutidos. Negando-se a vista, o advogado fica impedido de, antes do julgamento, se insurgir contra as omissões do relator.

Como remédio, existem os embargos de declaração, prontos para receberem um carimbo de que "não há omissão, obscuridade ou contradição; os embargos não são a via adequada para buscar a reforma do julgado, devendo ser utilizada a via própria" (maior ou menor e, agora, não mais de tinta, mas em formato eletrônico). Aguarda-se uma pesquisa empírica de quantos embargos de declaração são realmente apreciados pelo Judiciário; so far, so good

A percepção geral é de que a advocacia se tornou um exercício diário de humilhação [4] e o Judiciário tem visto o jurisdicionado como um inimigo a ser abatido, mediante decisões genéricas que satisfaçam apenas as estatísticas do juízo.

As partes não mais litigam apenas entre si; o litígio passa a ser também (e, em alguns casos, principalmente) contra o Judiciário, que fulmina de forma indevida o direito de ver os argumentos devidamente enfrentados, mediante decisões não fundamentadas (artigo 489, §1º, do CPC).

O problema não para aí. Isso porque não só as petições têm sido cada vez menos lidas — não obstante os advogados percam dias em sua elaboração —, como também a intervenção do amicus curiae tem sido cada vez menos admitida (aliás, o artigo 138 do CPC veio no sentido de ampliar essa forma de intervenção, inclusive nos processos individuais). O instituto que veio para ampliar a participação e o debate tem sido cada vez mais massacrado e marginalizado: IRDRs julgados sem sua intervenção [5]; recursos repetitivos ou destinados à composição de divergência interna que são apreciados sem a participação de amicus [6]

Nota-se, portanto, que, nesse cenário de batalha contra o contraditório, o Judiciário segue massacrando, literalmente sem tomar conhecimento do seu oponente.

Curiosamente, os direitos processuais estão previstos na Constituição como garantias fundamentais. Reparem: não há qualquer menção, no artigo 5º da CRFB/88, a franquia, marca, patente, automóvel, tributo ou diversas outras matérias de direito material; há, contudo, expressa indicação de devido processo, contraditório (substancial, mediante participação e influência) [7], ampla defesa e duração razoável do processo (antítese do mito "processo célere").

Em outras palavras, nossos tribunais, que deveriam aplicar e resguardar a Constituição (especialmente os direitos e garantias fundamentais), seguem ignorando suas normas, sob o pretexto de haver muitos processos e metas a serem cumpridas. Caminhamos a passos largos para o fundo do poço de um processo democrático, com a chancela do Judiciário, que deveria justamente ser o guardião do contraditório. A doutrina, coitada, segue entoando folclores de que, hoje, o contraditório é direito de influência, quando, na verdade, nem mesmo a possibilidade (formal apenas) de falar no processo tem sido garantida (quanto mais a consideração, o debate e o enfrentamento dos argumentos).

Quando perguntarem como andam o contraditório e a participação no Brasil, nos resta responder "so far, só good", aguardando a chegada do chão após a queda de dez andares.

 


[1] Tradução livre: "Isso me lembra daquele sujeito na minha cidade que caiu de um prédio de dez andares. Conforme ele ia caindo, as pessoas em cada andar continuavam ouvindo ele dizer: '- Até agora, tudo bem.' Heh, até agora, tudo bem.

[2] Versão original, de 1960; a versão mais recente, de 2016, também conta com a piada, mas em termos ligeiramente diferentes, em tom mais explicativo.

[3] "Art. 931. Distribuídos, os autos serão imediatamente conclusos ao relator, que, em 30 (trinta) dias, depois de elaborar o voto, restituí-los-á, com relatório, à secretaria."

[4] STRECK, Lenio. Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos. Conjur. Publicado em: 28.7.16. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jul-28/senso-incomum-advocacia-virou-exercicio-humilhacao-corrida-obstaculos.

[6] O STJ, no julgamento do REsp 1644077/PR, pela Corte Especial, cujo objetivo é pacificar questão sobre limites — mínimo e máximo — dos honorários advocatícios, indeferiu o ingresso da OAB como amicus curiae…provavelmente, faltam interesse e argumentos à OAB.

[7] Apesar de o dever de fundamentação não estar previsto no artigo 5º, mas apenas no artigo 93, IX, da CRFB/88, a doutrina já defendia — antes mesmo de sua expressa menção na CRFB/88 pela EC 45/2004 — que se trata de garantia inerente e consectária do contraditório substancial: Importante destacar que o direito de ter seus argumentos efetivamente considerados está intimamente ligado ao dever de fundamentação das decisões: "Last but not least, trata-se de garantir o direito que têm as partes de ser ouvidas e de ver examinadas pelo órgão julgador as questões que houverem suscitado. Essa prerrogativa deve entender-se ínsita no direito de ação, que não se restringe, segundo a concepção hoje prevalecente, à mera possibilidade de pôr em movimento o mecanismo judicial, mas inclui a de fazer valer razões em Juízo de modo efetivo, e, por conseguinte, de reclamar do órgão judicial a consideração atenta dos argumentos e provas trazidas aos autos. Ora, é na motivação que se pode averiguar se e em que medida o juiz levou em conta ou negligenciou o material oferecido pelos litigantes; assim, essa parte da decisão constitui 'o mais válido ponto de referência' para controlar-se o efetivo respeito daquela prerrogativa." (MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito, in: Temas de direito processual – segunda série. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 88.).

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