Direito Civil Atual

Do "Linha Direta Justiça" ao "Praia dos Ossos": o "caso Doca Street"

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7 de dezembro de 2020, 18h32

Em 11 de setembro deste ano, a Rádio Novelo lançou em seu site, em seu canal no YouTube e em tocadores como Spotify e Deezer o podcast "Praia dos Ossos", que, em oito episódios, disseca o assassinato da socialite Ângela Diniz por seu namorado Raul Fernando do Amaral Street (conhecido como Doca) em 30 de dezembro de 1976. Fruto de pesquisas iniciadas em 2018 e dezenas de entrevistas realizadas pelas jornalistas Branca Vianna e Flora Thomson-Deveaux, o podcast tem colhido boa repercussão e críticas unânimes em elogiar o roteiro bem amarrado e repleto de detalhes.

ConJur
Nem parece que os mesmos fatos tenham tido recepção tão diversa há quase 20 anos (mais precisamente, em 5 de junho de 2003), quando o programa "Linha Direta Justiça", da Rede Globo, procurou reconstitui-los em um episódio de 36 minutos (que está disponível no YouTube). A atração, que ocupava o fim das noites de quinta-feira, tinha normalmente um apelo mais imediato, abordando casos recentes e terminando com a divulgação da foto do suspeito foragido, para que telespectadores pudessem contribuir com informações que auxiliassem em sua captura. O sucesso do formato deu uma nova ideia à emissora: por que não falar de crimes ocorridos há muitos anos passados, já resolvidos ou não, mas que tiveram repercussão histórica?

O assassinato de Ângela, fato que sacudiu o país na década de 1970, parecia um natural candidato à pauta. Obviamente não para o assassino confesso, que, anos após ter cumprido a pena à qual fora condenado, se veria novamente às voltas com o caso. Sob o argumento de que a produção do programa teria abalado sensivelmente suas relações pessoais e profissionais, Doca Street ingressou com pedido de tutela inibitória para que o especial não fosse ao ar (autos nº 2003.001.044168-7 / 0043222-11.2003.8.19.0001). Decisão proferida em 11/4/2003 pelo juízo da 19ª Vara Cível do Foro Central do Rio de Janeiro acolheu o pedido e estipulou multa de R$ 1 milhão em caso de descumprimento. Recurso de agravo de instrumento ao Tribunal de Justiça (nº 2003.002.06504 / 0006931-15.2003.8.19.0000) foi acolhido, por maioria, pela 14ª Câmara Cível, para liberar a exibição do programa.

Anos mais tarde, em 4 de agosto de 2005, foi julgada pela mesma 19ª Vara Cível do Rio de Janeiro a ação de indenização por danos morais proposta por Doca contra a Rede Globo (autos nº 2003.001.103757-4 / 0102079-50.2003.8.19.0001). O juiz (hoje desembargador) Pedro Raguenet reconheceu que "o caso em tela, o crime do qual foi o autor acusado e condenado, alcançou, à época, repercussão nacional". Ainda, que não se tratava de violação da intimidade ou da vida privada do autor, mas, sim, de sua exibição como "réu, no sentido penal" e de "atos e fatos decorrentes do processo crime ao que o mesmo respondeu e pelo qual veio a ser condenado".

Porém, a sentença sustentava que "interesse público a justificar a divulgação do caso" existia quando da realização dos julgamentos, mas não décadas depois, quando a condenação imposta ao autor já havia sido cumprida. O julgador se valeu de analogia com o artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor, que limita no tempo a disponibilização de dados pessoais de inadimplentes, para a obrigação de apagamento de registros desabonadores de cunho criminal pelos meios de comunicação. O ponto crucial da sentença foi considerar que o "Linha Direta Justiça" não seria jornalístico por não trazer informação nova e que admitir sua legalidade seria consentir que condenados ficassem ad aeternum à disposição da mídia, "fornecendo material para programas que reviram e revivem o passado". Para reparação do dano, foi estipulado o elevado montante de R$ 250 mil.

Os fundamentos da sentença foram, porém, afastados pela 5ª Câmara Cível do TJ-RJ em sede de apelação. O voto do relator, desembargador Milton Fernandes de Souza, repeliu o raciocínio de que o "Linha Direta Justiça" não poderia ser caracterizado como jornalístico por não trazer informação nova, deslocando a ênfase para a veracidade dos fatos narrados, que não era contestada. No mais, apontou que "o apelado obriga-se a conviver com seu passado".

O voto convergente do então desembargador (e hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça) Antonio Saldanha Palheiro mergulhou mais fundo no cerne do problema, ao afirmar que "a retumbância que tornou o episódio famoso e com indiscutíveis contornos de interesse histórico e social decorreu das próprias circunstâncias que rodearam a perpetração", e que "não se pode cogitar de que perdeu o interesse do conhecimento coletivo porque seu principal personagem já cumpriu a penalidade que lhe foi imposta".

Quando ainda não se falava sobre um "direito ao esquecimento", o voto invocava a "luta da informação contra o esquecimento", pois, do contrário, se assistiria ao "regozijo de todos os criminosos, incluindo aí os tiranos de qualquer matiz, ante a possibilidade de assegurar que seus atos serão varridos do julgamento da história uma vez superado o técnico e acanhado julgamento judicial". Em arremate, o voto pontuou que o cumprimento da pena "não tem, desafortunadamente, o condão de apagar os fatos da memória popular, porque esta pertence apenas ao próprio povo, com todas as vicissitudes que tal circunstância possa acarretar ao respectivo protagonista", e que, se não bastasse, o caso é estudado academicamente e está ricamente documentado, inclusive em livro escrito pelo próprio Doca Street.

Recursos especial e extraordinário não prosperaram o primeiro (AREsp 851325/RJ) por se entender que a matéria era exclusivamente constitucional, o segundo (ARE 679343/RJ) porque sua reforma demandaria reexame de fatos e provas.

Apesar do insucesso de Doca Street em obter indenização, seu caso se tornou um degrau importante para o debate sobre direito ao esquecimento no Brasil. No momento, há a respeito duas decisões aparentemente contrapostas proferidas pelo STJ ambas também envolvendo o "Linha Direta Justiça". Um episódio sobre a chacina da Candelária foi considerado ofensivo aos direitos da personalidade de um dos suspeitos absolvidos de envolvimento no crime, e ensejou a condenação da emissora (REsp 1334097/RJ); outro, sobre a morte de Aida Curi, teve sua relevância histórica utilizado como fundamento central para a negativa de indenização à família da vítima (REsp 1335153/RJ). Pela repercussão constitucional da matéria, a questão subiu ao Supremo Tribunal Federal. Houve algum burburinho quando se anunciou a inclusão do RE 1010606/RJ, sob relatoria do ministro Dias Toffoli, que trata do caso Aida Curi, na pauta da sessão de 30 de setembro de 2020. O recurso acabou não sendo julgado naquela ocasião e não há notícias de sua reinclusão na ordem do dia num futuro próximo.

Nesse contexto, em que as discussões sobre direito ao esquecimento no Brasil, embora longe de estarem encerradas, estão mais maduras do que estavam em 2003, pode se perguntar o que motivou a aquiescência de Doca com o lançamento do podcast afinal, o principal argumento utilizado na ação contra o "Linha Direta Justiça" continua de pé: se trata de mais uma produção jornalística que rememora um fato de muitos anos passados, um crime pelo qual seu autor já respondeu penalmente.

É possível supor algumas respostas. A primeira delas, e talvez mais relevante, é que a produção do "Praia dos Ossos" entrou em contato com Doca antes do lançamento, e spoiler do sexto episódio conseguiu inclusive entrevistá-lo (à revelia de sua família, pelo que consta), algo a que ele havia se negado a fazer para o "Linha Direta". A concordância em falar com as jornalistas por duas horas e meia denota um comportamento aparentemente incompatível com a vontade de proibir depois a divulgação da entrevista.

Talvez tenha ingressado no cálculo de consentir com esse novo reavivamento dos fatos a repercussão do podcast, que, embora tenha sido considerável, certamente não se equipara à de um programa exibido no horário nobre da maior emissora do país. Ainda, é evidente que oito episódios com aproximadamente uma hora de duração cada são muito mais eficazes em expor, com todas as dualidades e nuances, quem eram os personagens envolvidos. Tanto Doca como Ângela emergem de "Praia dos Ossos" como figuras complexas e multifacetadas, o que, convenhamos, é muito mais difícil de se fazer em um programa de pouco mais de meia hora, que tem de se socorrer de simplificações, dramatizações e repetições para se fazer entendido pelo público.

O foco também é diverso: enquanto o "Linha Direta Justiça" opera num crescendo, numa estrutura de três atos (antecedentes, crime propriamente dito e julgamentos unidos por uma lógica linear de causa e consequência), o "Praia dos Ossos" trata do crime apenas no primeiro episódio. O podcast se concentra no antes e no depois. Os debates orais do primeiro júri (no qual Ângela recebeu epítetos como "prostituta de alto luxo da Babilônia" e "vênus lasciva") são confrontados na sequência com um retrato da vítima em três partes: sua infância e juventude, seu primeiro casamento e desquite, sua transformação na Pantera de Minas e como começou e terminou sua relação com o homem que a mataria. O sexto episódio é dedicado a um retrato de Doca, ao passo que o sétimo se dedica ao segundo julgamento ao qual ele foi submetido. O oitavo e último faz uma análise do impacto do crime para a sociedade brasileira e para o movimento feminista (o que inclui o célebre slogan "quem ama não mata").

A decupagem do "Praia dos Ossos" é, portanto, muito mais sofisticada, não linear e reminiscente de documentários de moldes clássicos (no sentido de ser calcado em entrevistas e arquivos da época, e não em dramatizações). Isso, contudo, não é suficiente para que opções do "Linha Direta Justiça" como, por exemplo, a utilização de uma paleta de cores tendente ao vermelho (talvez para ilustrar a passionalidade do crime, na visão dos dramaturgos) conduzam ao dever de indenizar. A pluralidade de abordagens possíveis dos fatos pelos meios de comunicação é um valor a ser preservado o julgamento estético fica a cargo do público (como afirmou o STJ no REsp 736015/RJ).

O que as duas produções não deixam dúvidas é que, décadas depois, ainda há muito o que se discutir a respeito da morte de Ângela Diniz. E, havendo ainda o que extrair do caso, parece inviável que seja possível acolher a pretensão da família Street de impedir novas abordagens e rememorações desses fatos, seja por programas de TV, seja por podcasts. Adotando-se o critério proposto por Alexandre Fidalgo em coluna publicada nesta revista eletrônica, Doca e Ângela "não podem ser desassociados da informação de fatos em que foram protagonistas, constituindo elementos inseparáveis desses acontecimentos".

 

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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  • Brave

    é doutor e mestre em direito das relações sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde integra o Núcleo de Direito Privado Comparado. Membro associado da International Society for Humor Studies (ISHS). Advogado.

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