Opinião

Regras do uso da essencialidade de bens na recuperação judicial

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6 de dezembro de 2020, 12h14

As empresas representam peça fundamental para o bom desenvolvimento do cenário econômico do país, na medida em que fomentam o consumo e a criação de empregos; contribuem para os cofres públicos, por meio do pagamento de tributos; e incentivam o empreendedorismo e a inovação no Brasil. Nesse contexto, e também considerando o princípio constitucional da função social da empresa (artigo 170, CF), o sistema jurídico desenvolveu mecanismos para evitar a falência imediata de sociedades que estejam em condições financeiras frágeis, mas que ainda sejam economicamente viáveis. Esses mecanismos estão inseridos na Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), que, em linhas gerais, permitiu que um plano estratégico de soerguimento fosse apresentando e cumprido pela empresa em crise. Entre tais mecanismos, um será abordado no presente artigo, qual seja o conceito da essencialidade do bem à recuperação judicial, tratado no artigo 49, §3º, da Lei 11.101/2005 e, pelo qual, a devedora fica temporariamente a salvo de ser expropriada de bens de terceiros (credores) que estejam ou venham a estar em sua posse, desde que tais ativos sejam considerados "essenciais" ao desenvolvimento de suas atividades e à própria recuperação em si.

Em que pese a literalidade e facilidade de interpretação do conceito, sua aplicação correta, na prática, está longe de ser simples, pois envolve não apenas bens que são da própria empresa, mas, em certos casos, bens de outras empresas do grupo ou de terceiros garantidores que invocam a o argumento da essencialidade dos bens com o objetivo de evitar a excussão patrimonial pessoal nas execuções singulares.

Daí a relevância de se definir o conteúdo da expressão bens essenciais à recuperação, bem como determinar sua real extensão nos casos concretos.

A regra geral do artigo 49, §3º, da Lei 11.101/2005 [1] impossibilita que determinado credor com crédito não sujeito aos efeitos da recuperação judicial exproprie da recuperanda, durante um prazo legal de 180 dias, bens sob sua posse considerados indispensáveis para a manutenção da sua atividade e de sua fonte produtora. Em outras palavras, durante esse prazo legal — já flexibilizado pela jurisprudência —, além de ficarem suspensas as ações e execuções movidas em face do devedor (stay period), os bens considerados de essencialidade à recuperação judicial deverão permanecer com a empresa recuperanda.

O racional para essa proteção temporária, como bem salientou o ministro do Superior Tribunal de Justiça Ricardo Villas Bôas Cueva, é que "essa pausa na perseguição individual dos créditos é fundamental para que se abra um espaço de negociação entre o devedor e seus credores, evitando que, diante da notícia do pedido de recuperação, se estabeleça uma verdadeira corrida entre os credores, cada qual tentando receber o máximo possível de seu crédito, com o consequente perecimento dos ativos operacionais da empresa" (STJ, 2ª Seção, CC 168.000/AL, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/12/2019 e publicado em 16/12/2019).

A justificativa apresentada pelo ministro Cueva, ademais, revela que a proteção legal temporária segue restrita às empresas em recuperação, jamais aos seus sócios. Tanto é assim que o artigo 49, §1º, da lei acabou dispondo que "os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso". Mas não é só. Para determinar se o bem é ou não essencial à empresa em recuperação, o juiz da causa deverá fazer o "teste de subtração", pelo qual se considera a hipótese de subtrair determinado bem em posse ou utilizado pela recuperanda, perguntando-se, em seguida, se a fonte produtora seria significativamente prejudicada por tal ato. Se a resposta for positiva, aplica-se, via de regra, a exceção prevista no artigo 49, §3º, in fine, Lei 11/101/2005.

Como exemplo desse teste e de bens que supostamente seriam essenciais à empresa em crise, os professores Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli, citam "a máquina de brunir e um forno industrial a gás no caso em que a sociedade empresarial agravada tem como atividade principal a fabricação de peças e motores de combustão e transmissões mecânicas" [2]. No exemplo em questão, fica claro que os bens são de fato indispensáveis à manutenção das atividades da empresa, pois, sem eles, a sociedade ficaria impossibilitada de operar, de exercer sua atividade principal. Sem eles, certamente não cumpriria o plano e iria falir.

Há de ressaltar, entretanto, que não basta a simples alegação de que o bem é essencial à empresa, porque este lhe "gera caixa". Isto é, aventar apenas a possibilidade de o bem gerar recursos financeiros à recuperação judicial não pode, por si, defini-lo como essencial à empresa em recuperação, sob pena de banalização do instituto. Até porque é certo que toda "disponibilidade de recursos financeiros é essencial à atividade produtiva, esteja a empresa em recuperação judicial ou não. Nenhum patrimônio é supérfluo, especialmente para empresa em situação de crise" (STJ, 2ª Seção, CC 131.656/PE, rel. min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 8/10/2014).

Nessa medida, para o correto teste de aferição da essencialidade, é imprescindível que se consiga estabelecer o vínculo direto, quase que umbilical, entre o bem e a manutenção das atividades da empresa em recuperação, sendo insuficiente a sua simples capacidade de gerar riqueza.

A conclusão, portanto, a que se chega é a de que será partindo da aplicação desses critérios objetivos acima destacados que poderá o juiz da recuperação decidir com maior segurança jurídica e clareza acerca da essencialidade de determinado bem ao processo de recuperação judicial, mitigando ou até mesmo acabando com determinados abusos cometidos pelos sócios controladores de empresas em crise.

 


[1] O artigo 49, §3º, Lei 11.101/2005 dispõe: "Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial".

[2] AYOUB, Luiz Roberto. CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

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