Última palavra

Covid faz STF impor série de derrotas a Bolsonaro, diz pesquisadora da FGV

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6 de dezembro de 2020, 7h32

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O Supremo Tribunal Federal agiu rápido e bem durante a crise provocada pelo avanço da Covid-19 no país. E ainda assim ficou aquém do que era necessário naquele momento. O diagnóstico é da advogada Eloísa Machado de Almeida, professora de Direito Constitucional e coordenadora do Supremo em Pauta — grupo de estudos da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas sobre a mais alta corte de Justiça do país

Segundo Eloísa, 2019 foi um ano de muito litígio no STF e, mesmo o tribunal sendo intensamente provocado, a Corte evitou tomar medidas contundentes e rápidas, seja de modo liminar ou em julgamento em Plenário. "Então tivemos um Supremo com capacidade de exercer controle das ações do governo, mas que por vezes preferiu não fazê-lo ou fez de maneira muito pontual." 

"Mas em março deste ano o cenário muda, e o Supremo passa a exercer um controle muito mais contundente da agenda do governo Bolsonaro. Talvez estimulado pela pandemia e a necessidade de responder de maneira clara e rápida os desafios colocados. A Corte muda a chave no relacionamento com o governo e passa a impor uma série de derrotas."

Para a pesquisadora, o STF teve papel fundamental para viabilizar o combate ao novo coronavírus por governadores e prefeitos, ao permitir que esses atores públicos fizessem uma coordenação que o governo federal parecia não estar disposto a fazer. "Também teve um outro papel interessante em barrar medidas que seriam tomadas com a desculpa da pandemia. O caso mais emblemático é o do compartilhamento de dados de telefonia móvel com o IBGE. O STF entendeu que a Covid não era desculpa para flexibilizar todo e qualquer direito fundamental", lembra.

Em entrevista à ConJur, Eloisa também tratou do crescente espaço dedicado às decisões do STF no debate público. "O Supremo se tornou relevante não porque os julgamentos são televisionados, mas por conta do nosso desenho constitucional, que dá à Corte a última palavra. Então, de certa maneira, para entender o que acontece no país, é preciso entender como funciona esse tribunal que tem o poder de dar a última palavra", explica.

Leia a entrevista:

ConJur — Nos últimos anos o Supremo tem ganhado cada vez mais relevância como protagonista na história recente brasileira. Como a senhora avalia essa dinâmica e como avalia a atuação da Corte durante o governo Bolsonaro? O sistema de freios e contrapesos está funcionando?
Eloísa Machado de Almeida —
Não é de hoje que o STF ocupa o centro do debate político decisório brasileiro. A Corte tem se tornado a grande protagonista das grandes disputas da sociedade brasileira e, durante o governo Bolsonaro, isso tomou proporções ainda mais agudas. Isso porque estamos diante de um governo que explicitamente se coloca contrário à grande parte das disposições constitucionais. E durante todo o primeiro ano de mandato adotou um discurso muito refratário aos controles exercidos pelo Supremo.

Tivemos ataques diretos do presidente e a sua participação em manifestações que, no limite, pediam o fechamento do tribunal. Então, se o Supremo já era protagonista na arena político-decisória devido ao desenho da nossa Constituição, com o governo Bolsonaro esse protagonismo tomou uma proporção ainda maior por conta dos ataques à Constituição.

Quando olhamos para os dados para entender como o tribunal reage à essa nova dinâmica, enxergamos que a, partir de 2019, temos um ano de intenso litígio promovido sobretudo pelos partidos de oposição. A PGR perde protagonismo nos controles dos atos do governo e esses partidos ocupam esse espaço e questionam muitas medidas do executivo no Supremo.

Começamos o ano com o debate sobre a medida provisória que reestruturou o governo e mudou a governança sobre a Funai e a demarcação de terras indígenas. E como foram sucessivas mudanças naquela MP isso também gerou, portanto, sucessivas ações constitucionais.

O ano de 2019 foi de litígio muito intenso no STF e, mesmo o tribunal sendo intensamente provocado, a corte evitou tomar medidas contundentes e rápidas, seja de modo liminar ou em julgamento em Plenário. Então tivemos um Supremo com capacidade de exercer controle das ações do governo, mas que por vezes preferiu não fazê-lo ou fez de maneira muito pontual. 

Em março deste ano o cenário muda, e o Supremo passa a exercer um controle muito mais contundente da agenda do governo Bolsonaro. Talvez estimulado pela pandemia de Covid-19 e a necessidade de responder de maneira clara e rápida os desafios colocados. A Corte muda a chave no relacionamento com o governo e passa a impor uma série de derrotas ao Poder Executivo.

ConJur — Considerando que o próprio STF pode apreciar a constitucionalidade de emendas, a senhora acredita que possa haver futuramente um embate entre uma maioria parlamentar populista e a Corte em casos relacionados a direitos fundamentais?
Eloísa Machado de Almeida —
Há um debate constitucional teórico muito interessante sobre quem detém a última palavra em relação à interpretação da Constituição. No modelo brasileiro tem-se entendido que é o Supremo que tem a última palavra. Mas temos acompanhado alguns casos em que após uma decisão da Corte sobre determinada inconstitucionalidade, há uma reação do Congresso alterando o texto da própria Constituição. E essa emenda que contraria o entendimento do Supremo acaba voltando ao tribunal por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade.

Um exemplo disso é o caso da vaquejada. O Supremo decide sobre a inconstitucionalidade dessa prática e, na sequência, de modo muito célere, o Congresso responde dizendo que a prática é preservada pelos seus aspectos culturais independentemente do sofrimento animal. Uma nova ação judicial chega ao tribunal que agora tem novos parâmetros porque a Constituição foi alterada.

Um debate muito provável que se pode dar nesse embate entre Supremo e o Congresso diz respeito ao foro por prerrogativa de função. O STF decidiu por uma restrição da aplicação do foro em relação ao critério temporal e exercício da função enquanto o Congresso discute até mesmo uma extinção do foro. Então há um diálogo entre as decisões da Corte e eventuais mudanças na Constituição, seja para corroborar o seu posicionamento, ou seja, para contrariá-lo.

Tudo fica mais complicado quando se trata de emendas constitucionais que alteram direitos fundamentais. A Constituição é bastante clara e não permite que se restrinja direitos.

Esse embate já existe e a tendência é que ele se acirre caso o Supremo mantenha um grau de controle grande sobre as medidas do legislativo.

ConJur — Na mesma esteira, o STF se tornou tema de debate popular. As decisões da corte passam por um escrutínio que por vezes esbarra em um discurso que beira a ruptura institucional? A que se deve essa popularização? É um reflexo da TV Justiça?
Eloísa Machado de Almeida —
O Supremo se tornou relevante não porque os julgamentos são televisionados, mas por conta do nosso desenho constitucional que dá à Corte a última palavra. Então, de certa maneira, para entender o que acontece no país, é preciso entender como funciona esse tribunal que tem o poder de dar a última palavra. E foram muitos julgamentos relevantes para a sociedade nos últimos anos.

Tivemos o debate relacionado a ações afirmativas para população negra, sobre demarcação de terras indígenas, sobre células troncos embrionárias e a própria união entre pessoas do mesmo sexo. Então tivemos julgamentos bastante emblemáticos que se referem a uma agenda de impacto direto na sociedade.

Outro motivo que ajudou na popularização do Supremo foi o julgamento do mensalão, que ocupou a agenda nacional durante uns bons anos e era noticiado diariamente pela mídia. Então o julgamento deixou o STF cada vez mais próximo. Reflexo disso foi o Carnaval, que ficou marcado pelo uso de máscaras do então ministro Joaquim Barbosa.

Televisionar os julgamentos do Supremo tem sido objeto de estudo. De qual o impacto de se fazer isso. E as pesquisas têm mostrado até agora que talvez isso contribua para uma atuação mais performática dos ministros e a produção de votos mais longos. 

A minha perspectiva da TV Justiça é positiva, sobretudo nos aspectos relacionados a transparência.

ConJur — Muitas pessoas têm questionado o processo de escolha dos ministros e pregado a criação de um mandato de 10 ou 15 anos. Isso é reflexo do papel contramajoritário do Supremo?
Eloísa Machado de Almeida —
Eu não sei se a crítica a à indicação de ministros é algo que deriva apenas do papel contramajoritário do Supremo. Se olharmos, por exemplo, a pauta carcerária e criminal, a Corte é muito mais alinhada com a opinião pública majoritária do que com o posicionamento de defensores de Direitos Humanos.

Agora o processo de indicação para cortes constitucionais também é objeto de estudo uma vez que falamos de uma instituição cuja legitimidade não deriva do voto, mas da sua consistência. Da sua qualidade em interpretar o Direito. Então quem vai interpretar o Direito é um aspecto muito importante. Quase como um papel indissociável da própria legitimidade do tribunal.

No processo de escolha brasileiro, o presidente indica e o candidato é sabatinado pelo Senado, mas nós não temos o detalhamento desse processo. Então nem o presidente é obrigado a divulgar os nomes que estão sendo considerados e promover debates entre os indicados como o Senado também não tem um procedimento que permita ao povo conhecer melhor esse indicado. 

As principais propostas que tramitam de certa maneira diminuem a possibilidade de escolha do presidente da República. A maior parte das PECs defendem uma lista por pessoas indicadas pelo próprio Judiciário, Ministério Público e OAB. Então não são propostas que necessariamente vão aumentar a transparência e que correm o risco de deixar tudo mais endógeno ainda, uma vez que Judiciário tende a reforçar seus próprios entendimentos e suas próprias regras.

Existe muito espaço para aperfeiçoamento da forma de indicação como também para estipular mandatos para ministros do STF. O problema é quando essa discussão acontece em um Congresso muito interessado pelo que acontece no tribunal por interesses não republicanos.

ConJur — Nas redes sociais, muitos descontentes pregam que os ministros sejam escolhidos apenas entre juízes de carreira. Esse tipo de formação do colegiado dos ministros seria benéfico para a democracia? O STF necessariamente deve refletir as diversas carreiras jurídicas?
Eloísa Machado de Almeida —
Esse debate é muito interessante e diz respeito a democratização e abertura do Poder Judiciário. Quando se defende que uma vaga no Supremo seja mais um degrau a ser galgado na carreira dos juízes, estamos eliminando a possibilidade de um pensamento que não seja endógeno no Judiciário. E é importante que tenhamos pensamentos diferentes para formação de um colegiado. E sabemos que as escolhas para as posições de cúpula do Judiciário são muito influenciadas por critérios familiares e estruturas consideravelmente racistas e machistas.

Não vejo nenhum grande benefício em se ter indicados ao STF apenas da magistratura.

Existem nomes de todas as carreiras jurídicas que podem contribuir para a formação de um colegiado com visões diferentes do que é Justiça. Talvez ter regras melhores para aferir a reputação ilibada, levar mais a sério o critério do notório saber jurídico que, certamente não se traduz em pós-graduações, mas certamente também não se traduz em pós-graduações que não foram feitas, poderia ajudar a não ter um Judiciário ensimesmado que só reproduz a mesma lógica. Uma corte constitucional precisa ter pensamento diverso para que essa interpretação da Constituição avance.

ConJur — O Brasil e o mundo têm na pandemia um desafio inédito na história moderna. A situação se torna ainda mais grave quando o debate público e agentes do governo adotam um discurso anticiência. Como a senhora avalia a atuação do STF nesse cenário? A questão da vacina será um debate problemático na Corte?
Eloísa Machado de Almeida —
O Supremo reagiu de maneira muito célere no começo da resposta à pandemia no Brasil no sentido de viabilizar ações do poder público. Na época, o presidente da República adotou uma postura bastante idiossincrática. O Ministério da Saúde dava uma informação, a Anvisa dava outra e o presidente falava uma terceira coisa.

Então, nesse contexto, o STF corroborar os termos constitucionais sobre a responsabilidade de prefeitos e governadores de adotar medidas e fazer uma coordenação que o governo federal não quis fazer foi muito importante.

A Corte também teve um outro papel interessante em barrar medidas que seriam tomadas com a desculpa da pandemia. O caso mais emblemático é o do compartilhamento de dados de telefonia móvel com o IBGE. O STF entendeu que a Covid-19 não era uma desculpa para flexibilizar todo e qualquer direito fundamental. Porém, muitas perguntas também acabaram ficando sem respostas. Um exemplo disso é a ADPF sobre as medidas de saúde para povos indígenas, em que, apesar de haver uma decisão liminar com a chancela do Plenário, temos ali uma resposta frágil do Supremo, que mostra de certa maneira uma incapacidade de fazer o governo cumprir a sua decisão.

A minha avaliação é que o Supremo agiu rapidamente e bem. Só que diante dos ataques massivos do governo a qualquer possibilidade de política pública na pandemia, a atuação da Corte acabou ficando aquém do necessário. A vacina é um pouco do exemplo disso que eu estou dizendo. A MP que passou pelo Congresso e foi transformada em lei foi elaborada pelo próprio governo e previa a vacinação compulsória.

Estamos falando de uma política pública completamente consolidada no Brasil em que acesso a serviços públicos demandam vacinação como contrapartida desse benefício. De repente, o próprio presidente promoveu esse debate contrariando uma lei que o seu próprio governo elaborou.

O Supremo já foi provocado a tratar essa questão e o que se espera é que a corte tenha um entendimento coerente com a construção das políticas de saúde pública no Brasil.  

ConJur — Recentemente, uma decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Mello acabou cassada pelo presidente da Corte, Luiz Fux, e levantou o debate sobre a colegialidade do Supremo. Reforçar as decisões colegiadas irá aumentar a segurança jurídica?
Eloísa Machado de Almeida —
Estamos falando de o Supremo cumprir a lei que já prevê que as medidas liminares têm que ser levadas o mais rápido possível a Plenário. O que temos visto nos últimos anos era a possibilidade de um "sequestro" do tema pelo relator ao conceder uma liminar e, por vezes, interditar um tema que deveria ser discutido pelo colegiado.

É importante constatar como essa intenção do ministro Fux irá ser colocada em prática. Isso vai aumentar a segurança jurídica e a transparência, mas também a força decisória já que aí poderemos chamar essas decisões realmente de "decisões do Supremo Tribunal Federal" e não de um ministro individualmente.

ConJur — Alterações recentes no regimento interno do STF ampliaram o rol de casos que podem ser apreciados no Plenário virtual, que, em tese, tomará decisões colegiadas de maneira mais célere, mas sem uma verdadeira interação entre os ministros. Que outras medidas podem ser adotadas?
Eloísa Machado de Almeida —
Isso realmente aumenta a celeridade da corte, mas ela tem um custo no aspecto da transparência e da participação das partes. Quando você está em um julgamento e escuta uma sustentação oral contrária um pouco antes da sua, você pode readequar o seu entendimento. Pode perceber alguma dúvida em relação a algum ministro e pode influenciá-lo nesse sentido. Então isso se perde.

Também fica enfraquecida a relação e a troca de entendimentos entre os ministros.

As mudanças para aumentar a celeridade do STF estão sendo feitas, mas temos um cenário em que os tribunais inferiores desobedecem tanto às súmulas vinculantes que acabam também sendo responsáveis pelo grande número de litigiosidade no Supremo. 

ConJur — Quais os reflexos do lavajatismo no STF? A Corte demorou para conter os excessos de juízes e promotores? O colegiado atualmente pode ser considerado punitivista?
Eloísa Machado de Almeida —
Sim. O STF demorou demais para impor limites e promover o respeito as regras constitucionais e processuais pela "lava jato". Pode se dizer que o Supremo se deixou levar por essa onda do lavajatismo.

Tivemos decisões bastante extravagantes vindas da corte no âmbito da operação como a prisão em flagrante do senador Delcídio Amaral por liminar corroborada em Plenário.

Tivemos outra interpretação extravagante sobre a possibilidade de afastamento de parlamentares do cargo como pedidas alternativas a privação de liberdade.

Me parece uma decisão bastante estranha a constitucionalidade e a lógica de preservação de mandatos, ainda que eu não tenha simpatia nenhuma por esses parlamentares. Tanto que o Supremo teve que se corrigir.

Uma regra foi aplicada ao ex-deputado Eduardo Cunha. Depois com o Aécio Neves foi aplicada outra. Enfim, o STF se deixou contaminar pela agenda da "lava jato" e adotou posicionamentos muito extravagantes no que se refere a uma ideia de moralização da política.

E a "lava jato" ruiu por problemas das pessoas que a estavam conduzindo. Não podemos atribuir a tribunais superiores os problemas decorrentes da atuação dos membros da operação, que decidiram correr riscos que não poderiam correr.

Posso usar como exemplo desde a ordem das alegações finais até a forma de condução dos termos de delação premiada. Tudo isso enfraqueceu a "lava jato" e agora esses erros estão sendo revistos. A "lava jato" teve um impacto enorme no governo de Dilma Roussef.

A atuação do STF ajudou no enfraquecimento daquele mandato presidencial e teve influência no impeachment dela.

Sobre o Plenário ser punitivista, vale ressaltar que temos um perfil muito distinto. Nesse sentido, gostaria de destacar o papel dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que são sensíveis a questão prisional. 

Quando estiveram à frente do CNJ, compreenderam a gravidade da situação do sistema carcerário brasileiro e adotaram uma visão mais garantista do processo persecutório.

Me parece que alguns ministros ainda não se deram conta da responsabilidade do Judiciário e do Supremo com o sistema carcerário.

Não é apenas questão de ser um Plenário punitivista ou não, mas do fato de ter um colegiado sensível as violações sistemáticas de direitos nas cadeias brasileiros.

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