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Opinião: Súmula 618 do STJ e dinamização do ônus da prova

5 de dezembro de 2020, 16h15

Por Luiz Gustavo Escorcio Bezerra, Victor Penitente Trevizan

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A Súmula nº 618 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a qual estabelece que "(a) inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental", completa dois anos de existência e os seus efeitos não são novidade para os advogados que militam no contencioso ambiental. O seu enunciado como posto, por si só, é notadamente simplório e, quando aplicado na prática, nem sempre proporciona soluções mais efetivas às demandas judiciais afetas à reparação de danos ambientais.

Os resultados práticos da súmula demonstram que a sua aplicação pelo Judiciário deve, ou deveria, respeitar determinados requisitos — conforme demonstrado abaixo —, sob pena de supressão de direitos fundamentais e frustração do seu propósito consistente na salvaguarda ambiental. Os resultados, por vezes desproporcionais, decorrentes de sua utilização incondicionada, somados à ausência de um regramento legal específico e claro, fazem-nos refletir acerca de sua validade, inclusive à luz das regras processuais vigentes que, por si só, preveem uma distribuição do ônus da prova mais equilibrada e equânime.

Importante ponderar que a Súmula nº 618, apesar de ter sido criada em 24/10/2018, quando já vigia o novo Código de Processo Civil (CPC/15) — Lei Federal nº 13.105/2015, em vigor desde 18/3/2016 —, restou embasada em precedentes [1] relacionados a decisões que inverteram o ônus probante enquanto vigentes as regras previstas pelo antigo Código de Processo Civil (CPC/73) — Lei Federal nº 5.869/1973 revogada.

Para melhor contextualização, vale tecer breves considerações a respeito da evolução das regras processuais atinentes ao ônus probatório originalmente previstas no CPC/73 — hipóteses mais estáticas — e, como já adiantado, modificadas pelo CPC/15 — hipóteses mais dinâmicas e equilibradas.

Ônus da prova
O conceito de prova, à luz da teoria geral da prova, traduz-se em "um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade quanto aos fatos relevantes para o julgamento" [2]. Logo, uma vez ausente a controvérsia acerca de determinado fato, a existência de prova relacionada, via de regra, acaba sendo dispensável.

O ônus probatório, por seu turno, não representa um dever ou obrigação da parte, tampouco uma faculdade ou direito. Em verdade, o ônus da prova pode ser entendido como um poder da parte em comprovar aquilo que se alega e, assim, proporcionar a prolação de decisão que lhe conceda a almejada tutela jurisdicional.

Dessa forma, a prova visa a embasar a elaboração de decisão a respeito de determinada controvérsia, mesmo que as provas produzidas não sejam absolutamente suficientes para esclarecer todos os aspectos da discussão. Tem o condão, portanto, de viabilizar a decisão final em determinada demanda, com a imposição de consequências por vezes indesejáveis à parte que não a produziu e, assim, não se desincumbiu do ônus probatório.

O CPC/15, em seu artigo 373, incisos I e II, manteve a regra geral "estática" de distribuição do ônus da prova anteriormente prevista no artigo 333 do CPC/73, estabelecendo, portanto, que, ao autor da demanda, incumbe provar os fatos constitutivos do seu direito, e, ao réu, os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

Contudo, as previsões trazidas pelo CPC/15 foram além. Munido de espírito mais cooperativo e equilibrado em comparação com o CPC/73, o CPC/15, lapidado à luz de uma realidade jurídico-processual mais madura e moderna, não limitou a distribuição do ônus da prova às regras previstas nos dois primeiros incisos do aludido artigo 373, trazendo texto inovador em seu §1º, baseado na teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova.

Observemos que a regra estática prevista no CPC/73 — e mantida pelo CPC/15 —, ao mesmo tempo em que pode conferir certo nível de segurança por garantir que cada parte tenha o seu escopo probatório estabelecido, também é capaz de gerar, em determinados casos, certo grau de injustiça e desequilíbrio advindos do nível de capacidade de cada uma das partes no que se refere à comprovação dos fatos alegados, seja por limitação de acesso a informações, questões técnicas específicas ou insuficiência financeira.

Dessa forma, anteriormente ao CPC/15, essa realidade estática imposta pelo CPC/73 passou a sofrer alterações gradativas e mais consistentes a partir da publicação da Lei Federal nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor — CDC), aplicável às relações jurídicas oriundas do fornecimento de produtos ou da prestação de serviços, desde que a pessoa adquirente ou contratante, física ou jurídica, seja a destinatária final.

De acordo com o artigo 6º, inciso VIII, do CDC, deve o juiz inverter o ônus da prova do fato constitutivo do direito do autor, caso evidencie a presença da verossimilhança das alegações e/ou a sua hipossuficiência. Tal regra, embora por vezes mais justa em razão de especificidades do caso concreto, claramente representa "uma via de mão única" porquanto permite o deslocamento do ônus da prova apenas do autor para o réu, e não o contrário.

Interessante observar que, mesmo sob a vigência do CPC/73, o STJ já havia chancelado a possibilidade de se instituir a dinamização do ônus da prova a depender das particularidades do caso concreto, influenciando o legislador a ajustar dispositivos constantes na legislação atual: "A teoria de distribuição dinâmica do encargo probatório propicia a flexibilização do sistema, e permite ao juiz que, diante da insuficiência da regra geral prevista no artigo 333 do CPC, possa modificar o ônus da prova, atribuindo-o à parte que tenha melhor condições de produzi-la.." [3].

Diante da ausência de dispositivo legal prevendo a adequação do ônus da prova conforme as possibilidades da parte, bem como considerando os percalços ocasionados tanto a partir da aplicação da teoria da carga estática do ônus da prova prevista no CPC/73, quanto da inversão da carga probatória fundada no CDC, criadora, por vezes, de desequilíbrio entre as partes — por não permitir o deslocamento mútuo do ônus probatório —, foi que o legislador positivou a referida distribuição dinâmica do ônus da prova no CPC/15 (cf. §1º, artigo 373).

Distribuição dinâmica do ônus da prova
Conforme já exposto, as disposições que tratam do ônus da prova no CPC/15 remetem tanto ao texto já instituído por meio do CPC/73 — por conta da manutenção do que dispunham os incisos I e II do antigo artigo 333 —, quanto ao CDC justamente pela influência sofrida a partir da previsão legal que implementou a inversão do onus probandi — refletida, guardadas as devidas proporções, no contexto do referido §1º do artigo 373 do CPC/15.

A regra prevista no §1º, portanto, flexibiliza a distribuição do ônus da prova caso o juiz identifique dificuldade excessiva para determinada parte comprovar o que alega e, em contrapartida, perceba maior facilidade da parte adversa em fazê-lo.

Tal flexibilização permite a aplicação de tutela mais adequada aos direitos das partes, sobretudo aos direitos fundamentais processuais, cuja necessidade vem sendo percebida há tempos pelo legislador e pelo próprio Judiciário. Em que pese a positivação da teoria da dinamização, não há como se olvidar que a regra geral permanece sendo a distribuição estática a fim de proporcionar às partes ingressarem na demanda com ciência acerca de quais fatos deverão provar.

É exceção, portanto, a dinamização do ônus da prova, condicionada à aferição de condições desiguais ou desproporcionais entre as partes. A sua aplicação, vale dizer, não tem o condão de criar uma "via de mão única" como ocorre com a inversão do ônus da prova prevista no CDC, mas, sim, uma via de mão dupla, entre autor e réu, a fim de viabilizar a prolação de decisões melhor fundamentadas e adequadas ao caso concreto.

Ao proferir decisão conferindo a dinamização da prova entre as partes, o magistrado deverá se valer preferencialmente da decisão saneadora (artigo 357, III, do CPC/15), oportunizando à parte se desincumbir do ônus recebido (artigo 373, §2º, do CPC/15). Nesse sentido, não é aceitável que a flexibilização do ônus da prova imponha "prova diabólica" para a parte em relação a qual se acreditava que teria mais possibilidade de provar o fato.

Observa-se que, na prática, a distribuição dinâmica do encargo probatório alcança maior aplicação quando há notória discrepância entre uma parte e outra em relação a conhecimentos técnicos, informações específicas a respeito de fatos ou dados, maior acesso a elementos relevantes ao deslinde do feito (documentos, produtos etc.), e, portanto, excessiva dificuldade de produção probatória por uma das partes.

A Súmula nº 618 e a inversão do ônus da prova
A inversão do ônus da prova, como visto, foi positivada em 1990 com a edição do CDC e, desde então, exerce influência em discussões judiciais afetas a outros temas, especialmente em matéria ambiental. A regra trazida pelo CDC, pelo fato de que, a depender do caso concreto, pode conferir mais assertividade às decisões, acabou exercendo influência na elaboração do referido §1º do artigo 373 do CPC.

A distribuição dinâmica do ônus da prova em demandas ambientais, principalmente a inversão do ônus probatório mesmo à época do CPC/73, já vinha ocorrendo por influência de inadequada aplicação do princípio da precaução. Contudo, não se pode deixar de destacar que a inversão do ônus probatório em matéria ambiental carece de previsão legal expressa, embasando-se, na prática, na interpretação conjunta da Lei Federal nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública — LACP) e do CDC.

De acordo com o artigo 21 da LACP, "(a)plicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor". Entretanto, referido título do CDC não abarca a inversão do ônus probatório, regra de cunho notadamente processual prevista no já mencionado artigo 6º do CDC, o qual se encontra fora do título III e trata expressamente de direitos básicos dos consumidores.

De todo modo, em que pese ainda persista intenso debate acerca das possibilidades de aplicação das regras do CDC às demandas coletivas ambientais, por vezes combinando-as com a aplicação do princípio da precaução, foi instituída a referida Súmula nº 618 para buscar a pacificação do assunto.

Todavia, a prática mostra que o assunto não foi pacificado, tanto que o STJ, em fevereiro de 2020, relatou a existência de diversos recursos discutindo a respeito da "possibilidade ou não de inversão do ônus da prova em ações de degradação ambiental" e, sob a análise dos critérios de relevância, repetição, uniformidade ou divergência jurisprudencial, afetou os Recursos Especiais nº 1.847.562/RO e nº 1.852.436/PR como representativos da controvérsia [4], para que fossem julgados como recursos repetitivos.

Iniciava-se, enfim, oportunidade de reanálise da Súmula nº 618. Contudo, em que pese a iniciativa adotada pela corte superior em fevereiro, recentemente o Recurso Especial nº 1.847.562/RO — originado de ação que discutia a reparação de danos individuais derivados de danos ambientais — perdeu o seu objeto por conta do julgamento da causa principal, e o Recurso Especial nº 1.852.436/PR — originado de ação civil pública visando à reparação de danos ambientais — acabou por não ser conhecido em virtude da conclusão pela ausência de requisitos necessários para a apreciação do mérito.

Por mais que não se tenha efetivado nova apreciação do assunto por parte do STJ, as razões para uma aplicação criteriosa — ou mesmo para uma efetiva revisão — da Súmula nº 618 são contundentes e, cedo ou tarde, deverão ser reinseridas à agenda da corte.

Conclusão
Tendo em vista que: 1) a aplicação indiscriminada da Súmula nº 618 por vezes fere princípios e garantias fundamentais (segurança jurídica, isonomia, ampla defesa); 2) tal súmula foi criada com base em precedentes originados de discussões travadas enquanto vigia o CPC/73 — ou seja, que não levaram em consideração a moderna distribuição dinâmica do ônus probatório — e sem embasamento legal próprio; 3) nem todos os precedentes que a embasaram trataram da inversão do ônus da prova per se (há, por exemplo, demandas envolvendo a inversão do ônus financeiro da prova, a produção probatória em ações tratando de multa administrativa — e não a reparação do dano ambiental —, a possibilidade de adiantamento de honorários periciais em ação civil pública), já existe entendimento jurisprudencial no sentido de que a inversão do ônus da prova depende da presença dos requisitos verossimilhança das alegações e impossibilidade de produção de prova por parte do autor [5].

Faz-se clara, portanto, a necessidade de aplicação criteriosa da Súmula nº 618 para que, na prática, a inversão do ônus da prova — ou mesmo a distribuição dinâmica do ônus da prova na moderna concepção do CPC/15 — ocorra de forma equilibrada e equânime, preservando-se direitos e garantias fundamentais e, até, tornando mais eficiente e precisa a instrução probatória em demandas judiciais ambientais.


[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: Volume III. 7ª ed., ver. e atual. — São Paulo: Malheiros, 2017.

[3] AgRg no AREsp 216315/RJ.

[4] Controvérsia nº 155.

[5] "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE. ÔNUS DA PROVA. INVERSÃO. IMPOSSIBILIDADE NO CASO EM CONCRETO. AUSÊNCIA DE VULNERABILIDADE E HIPOSSUFICIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. (…) 2. Os princípios da precaução e da prevenção são voltados, em suma, para a atuação do poder público, no âmbito das políticas públicas, exigindo cautela, de modo a antecipar e evitar danos ambientais. Tais preceitos não autorizam, por si só, a inversão, especialmente quando ausente a hipossuficiência. 3. Para o deferimento da inversão do ônus da prova ope judicis é imprescindível a demonstração da verossimilhança da alegação ou de sua hipossuficiência. A hipossuficiência, por sua vez, está ligada à situação de vulnerabilidade, que pode ser técnica, econômica, jurídica. 4. In casu, não há como considerar que o Ministério Público se trate de parte hipossuficiente ou vulnerável. De acordo com os documentos carreados nos autos, é possível inferir que o agravante possui corpo técnico composto de profissionais de alta capacitação, com conhecimento técnico e jurídico da matéria em debate. 5. Ademais, a inversão, no caso em concreto, acabaria por impor à parte ré a realização de prova diabólica, já que teria que comprovar fato negativo, porquanto toda a sua defesa foi realizada no sentido de negar a degradação ambiental. 6. Ausente a vulnerabilidade, inviável a inversão o ônus da prova" (TJ-RS. Agravo de Instrumento 70082320425, 22ª Câmara Cível. Rel. Des. Luiz Felipe Silveira Difini, J.: 31/10/2019).