Ambiente Jurídico

A Justiça socioambiental e "laudato si'"

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5 de dezembro de 2020, 8h02

Na última segunda-feira (30/11), participei da abertura do IV Congresso Intercontinental de Juízes e Juízas,, que foi presidida por sua santidade, o papa Francisco. O encontro, logicamente virtual em tempos de Covid-19, contou com a participação de magistrados e magistradas de todos os continentes, e foi organizado pela Academia Scientiarum do Vaticano. Na oportunidade, o papa, com base nas encíclicas "Fratelli Tutti" e "Laudato Si'", pregou, com clareza e erudição, a justiça social e a tutela ambiental. Tive a oportunidade de presidir o painel 4, em que, igualmente, defendi que as referidas encíclicas devem inspirar os operadores do Direto e a academia para uma reflexão profunda e filosófica sobre questões que envolvem o Direito Constitucional, o Direito das mudanças climáticas e o Direito Ambiental.

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Com esse espírito, e nessa era das mudanças climáticas, é fundamental a valorização das referidas e progressistas encíclicas. Vou me ocupar aqui, na coluna Ambiente Jurídico, da encíclica "Laudato Si'", que, ao que tudo indica, cada vez mais servirá como fundamento nos discursos que defendem o meio ambiente e, possivelmente, o clima estável como direitos constitucionais fundamentais. Outrossim, pouco espaço resta para visões utilitárias que não se postam claramente ao lado do meio ambiente de modo holístico, intergeracional e sustentável em tempos de um novo antropoceno e de extinção em massa de espécies. É manifesta a crise ecológica. Os que colocam a economia acima da tutela ambiental, com uma visão imediatista, sofrerão, como o futuro demostrará, graves prejuízos ainda no curto, mas especialmente, e de modo mais nítido, no médio e no longo prazo.

De fato, num planeta disperso, multicultural e cheio de divisões políticas e polarizações, nenhum líder mundial consegue ser ouvido por todos. Todavia, o papa Francisco, com suas encíclicas "Laudato Si'" e "Fratelli Tutti", é o chefe de Estado que mais aproxima-se deste ideal. Não é o fato de liderar a Igreja Católica que o coloca nesta condição, mas, especialmente fora dos recintos religiosos, avulta o seu talento na promoção do diálogo. Essa postura conquistou o respeito e o afeto de multidões de pessoas de outras religiões e dos ateus. Do Vaticano dirige-se aos países ricos, mas, também, com conhecimento de causa e igual ou maior entusiasmo, fala às nações em desenvolvimento, como a sua Argentina. Ele conhece bem as mazelas da miséria e da fome, que, aliás, afetam boa parte do planeta.

Em "Laudato Si'", portanto, toca, com notável sabedoria e tenacidade, em tema evitado pelos líderes globais, ou seja, o rápido aquecimento da terra em virtude do consumo dos combustíveis fósseis. Inegável nesse ponto que a ciência fez um trabalho notável, fortalecendo o discurso do papa, ao demonstrar as causas antrópicas do aquecimento global, o que auxiliou na efetivação do Acordo de Paris em 2015, durante a COP 21 e, igualmente, na consagração do ODS 13, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Onu, que exige uma imediata ação climática.

Passados cinco anos da publicação de "Laudato Si'", ela torna-se cada vez mais atual, e não nos decepciona. O texto insiste no fato de que: a) as alterações climáticas são culpa do homem; b) é necessária a rápida conversão das economias do carvão, do petróleo e do gás em energias renováveis; e c) as primeiras vítimas da crise ambiental são os pobres.

A contribuição do papa para o debate sobre o clima também está embasada nas palavras dos seus predecessores. Nas primeiras linhas do seu texto cita João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Cita também o trabalho de quebra de paradigmas de Bartolomeu, o líder ortodoxo também chamado de patriarca verde. Dalai Lama e o arcebispo anglicano Desmond Tutu, aliás, já haviam abordado a mesma questão, mas sem a mesma profundidade e, igualmente, sem uma maior repercussão. As palavras de Francisco ajudam, e vão auxiliar ainda mais, a consolidar o que foi acordado em Paris em 2015. Refere o Santo Padre que todas as pessoas de boa consciência precisam dar à questão climática a prioridade que ela requer. Uma das consequências dos atos de uma autoridade moral desta envergadura, sem dúvida, é o poder de estabelecer e construir uma agenda positiva, verde, ecológica e holística.

A encíclica, portanto, não é uma contribuição estreita e focalizada apenas no clima, revela-se bem mais abrangente, e é altamente persuasiva sobre o modo como habitamos o planeta. É, para além de uma crítica ecológica, uma análise filosófica, moral, econômica, e social de nossa Casa Comum. De fato, as crises ecológicas que enfrentamos não são, na sua origem, tecnológicas, como refere o papa. Infere-se que a vida e as atividades humanas tem seguido um mal caminho, gerando sério e grave prejuízo para o mundo que nos rodeia. O risco de sucumbirmos ao paradigma tecnocrático, por certo, pode erroneamente nos levar a acreditar que o aumento do poder político ou econômico, é o aumento do próprio progresso. E, de fato, a bondade e a verdade não fluem de modo automático do poder e das influências tecnológicas e econômicas. Partindo desse paradigma fica nítido o conceito de "um sujeito que, utilizando procedimentos lógicos e racionais, se aproxima progressivamente e ganha o controle sobre o objeto externo". Definição de sujeito, aliás, puramente utilitária. Refere o papa, neste contexto, que os homens e mulheres têm, desde o início da criação, sido intervenientes na natureza. Todavia, durante muito tempo isto significou estar em sintonia e respeitar as possibilidades oferecidas pelo meio ambiente. Hoje, contudo, os limites planetários tem sido forçados e, o que é pior, violados implacavelmente pela insustentável ação humana.

É inaceitável adotar a ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que se revela tão atrativa para economistas, para o mercado financeiro e para os especialistas em tecnologia. É falso e equivocado pensarmos que existe uma oferta infinita de bens naturais na Terra, pois isso, em face dos fatos que temos observado, leva precisamente a conclusão de que o planeta está sendo forçado além dos seus limites.

A deterioração do ambiente, diz o papa, é um sinal deste "reducionismo que afeta todos os aspectos da vida humana e social". E, embora a ideia de promover um paradigma cultural diferente seja hoje praticamente inconcebível, o papa, de modo revolucionário, está determinado a tentar exatamente isso, indo além de respostas urgentes e parciais aos problemas imediatos da poluição e evoluindo para um mundo onde a tecnologia seja libertada para servir aos pobres, ao resto da criação, e mesmo a toda humanidade que paga o preço deste descaso para com a tutela do meio ambiente. Não são poucas as externalidades ambientais negativas que podem ser observadas. Para o papa Francisco, tudo isso que testemunhamos neste verdadeiro colapso ecológico "é um pequeno sinal da crise ética, cultural e espiritual da modernidade" que é "perigosa para a dignidade de todos nós".

A encíclica avança na abordagem de outros temas atuais. Ou seja, no problema da automação versus trabalho, por exemplo. Como ele observa, "a orientação da economia favoreceu uma espécie de processo tecnológico em que os custos de produção são reduzidos através da demissão de trabalhadores e da sua substituição por máquinas", o que é uma tristeza, uma vez que "o trabalho é uma necessidade, parte do sentido da vida na terra, e um caminho para o crescimento". A modificação genética das culturas é uma forma, igualmente, de automatizar e racionalizar a agricultura. Reconhece que não há provas conclusivas de que os OGM possam ser prejudiciais para o nosso organismo; mas, no entanto, refere-se as provas extensivas de que "após a introdução destas culturas, as terras produtivas estão concentradas nas mãos de alguns poucos proprietários" que podem pagar pelas novas tecnologias levando a um aumento da desigualdade social.

A cultura consumista e das práticas insustentáveis são criticadas na encíclica, pois elas colocam em risco as culturas tradicionais. O desaparecimento de uma cultura, de fato, pode ser tão ou mais grave do que o desaparecimento de uma espécie de planta ou animal. E a imposição de um estilo de vida dominante pode ser tão prejudicial como a alteração dos ecossistemas.

Ainda mais marcante, a esse respeito, é a defesa que faz o papa das "comunidades indígenas e das suas tradições culturais". Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem ser os principais parceiros de diálogo, especialmente quando são propostos grandes projetos que afetam as suas terras, porque para eles a terra "é um espaço sagrado com o qual precisam interagir se quiserem manter a sua identidade e valores".

Defende o papa na encíclica a tutela do desenvolvimento daquelas áreas comuns, marcos visuais e paisagens urbanas que aumentam o nosso sentimento de pertencimento, de enraizamento, de sentir-se em casa "dentro de uma cidade que nos inclui e nos une". Defende, assim, conceitualmente as cidades sustentáveis, verdes e solidárias do futuro. Insiste, outrossim, em dar prioridade aos transportes públicos em detrimento dos carros particulares.

O papa é rigoroso quando insiste que devemos preferir o bem comum ao progresso individual, portanto, há uma crítica posta e clara ao neoliberalismo, em especial, consolidado na era Reagan e Thatcher, que ainda lamentavelmente é defendido por muitos, apesar de suas nefastas e conhecidas consequências. O sumo pontífice insiste que "a solidariedade intergeracional não é opcional, mas sim uma questão básica de justiça, uma vez que o mundo que recebemos também pertence àqueles que nos irão seguir". Por isso, devemos ter em mente não apenas "os pobres do futuro, mas também os pobres de hoje, cuja vida nesta terra é breve e que não podem continuar à espera" de uma existência com dignidade.

Desde Buda, vários líderes espirituais têm oferecido uma crítica razoavelmente coerente e notavelmente semelhante sobre quem somos e como vivemos. O maior desses críticos foi por certo Jesus Cristo, mas a linha continua com o grande homônimo do papa Francisco, Thoreau, Gandhi, e muitos outros que poderiam ser citados.

Essa crítica, de modo específico, em boa hora, trata da questão da água. O papa enfatiza que "o acesso à água potável segura é um direito humano básico e universal, uma vez que é essencial para a sobrevivência humana". Todos sabemos, por sinal, que esta não deve ser desperdiçada, e mesmo assim nossa civilização continua a desperdiçá-la e com uma tendência de transformá-la numa commodity.

Cabe a juízes, juízas, operadores do Direito e academia brasileira abraçarem, com elevado entusiasmo e responsabilidade, a mensagem de sua santidade contida em "Laudato Si'", que expõe, de modo magistral, uma visão moderna e ousada de uma ecologia integral capaz de consagrar, ao mesmo tempo, a tutela do meio ambiente e o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.

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  • Brave

    é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg — Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht e diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde.

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