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Violação de prerrogativas da advocacia: instrumentos para uma firme resposta

Autores

  • Zênia Cernov

    é advogada nas áreas trabalhista e administrativa. Autora dos livros "Estatuto da OAB Regulamento Geral e Código de Ética interpretados artigo por artigo" (LTr 1ª Ed./2016 e 2ªEd./2021) "Honorários Advocatícios" (LTr/2019) "Greve de Servidores Públicos" (LTr/2011) e "Marketing Jurídico e a nova publicidade na Advocacia: Comentários ao Provimento n° 205/2021" (Temática/2021). Membro da Academia Rondoniense de Letras Ciências e Artes. Coordenadora da Revista da Advocacia de Rondônia.

  • Paulo Alexandre Silva

    é especialista em Direito e Processo pela Universidade Cândido Mendes e em Business Intelligence presidente da Subseção do Paranoá e Itapoã mestrando no Instituto de Direito Público de Brasília (IDP) e membro da Academia Brasileira de Ciências Artes História e Literatura.

  • Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues

    é advogado mestre em Direito Constitucional pelo IDP e sócio-fundador do escritório Pisco & Rodrigues Advogados.

4 de dezembro de 2020, 13h55

O Estatuto da OAB estabelece em favor da advocacia uma série de prerrogativas que, embora pareçam, numa primeira leitura, serem direitos voltados ao profissional, em verdade, constituem instrumentos de proteção da própria cidadania. Não são, tecnicamente, destinadas à advocacia, mas, sim, aos clientes que representam, pois é através de sua atuação — efetiva — que será concretizado seu fundamental direito de defesa. Em sua obra "A Inviolabilidade do Direito de Defesa", Cezar Britto ressalta:

"A história afirmou o fundamento de que a busca da inviolabilidade profissional apenas possui razão de ser — e objetiva assegurar — a defesa do cidadão, que deve ser altiva, sem peias, é dizer, livre. No sistema jurídico contemporâneo, pautado pela proteção dos fundamentais direitos da pessoa humana, o direito de defesa é base e fundamento do Estado democrático de Direito, fruto de uma longa, lenta e penosa construção humana, de cujos benefícios, testados e atestados em séculos de história, não se pode abrir mão" (Del Rey. 2011, p. 11).

As prerrogativas da advocacia estão elencadas nos artigos 6º, 7º e 7º-A do Estatuto da OAB. O artigo 6º estabelece o princípio basilar de igualdade de forças entre a magistratura, os membros do Ministério Público e a advocacia, deixando inequívoco que não há hierarquia entre estes. O artigo 7º estabelece uma série de direitos tendentes a garantir a efetividade do direito de defesa e a liberdade de atuação do profissional. Entre os principais pontos, podemos enaltecer: a inviolabilidade do escritório, instrumentos de trabalho e correspondência (inciso II); comunicar-se com seus clientes pessoalmente e reservadamente (inciso III); ter a presença de um representante da OAB quando for preso em flagrante (inciso IV); ser recolhido em sala de Estado maior, quando preso (inciso V); dirigir-se diretamente aos magistrados independentemente de horário marcado (inciso VIII); examinar autos de inquérito ou qualquer investigação, mesmo sem procuração (inciso XIV); e assistir aos seus clientes investigados durante a apuração de infrações (inciso XXI).

Por sua vez, o artigo 7º A inseriu prerrogativas específicas da mulher advogada, exemplificando-se como principais pontos o direito da gestante a não ser submetida a detectores de metais; a utilização de vaga de garagem nos fóruns; ter a preferência na ordem das sustentações orais e audiências; assim como o direito, à advogada que se tornar mãe, de ter seus prazos processuais suspensos por 30 dias, se for a única patrona constituída nos autos.

A um grupo específico de prerrogativas, o nosso legislador conferiu uma importância maior, capitulando a sua violação como crime de abuso de autoridade. A atualização da lei de abuso de autoridade sobreveio dentro de um contexto histórico no qual os direitos fundamentais de defesa vinham sendo violados reiteradamente e com exposição midiática circense. Enfim, constituem abuso de autoridade, numa interpretação conjunta entre o Estatuto da OAB e a Lei nº 13.869/2019: a) violar o escritório ou local de trabalho do advogado, seus instrumentos de trabalho, sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica ou telemática relativas ao exercício da advocacia; b) impedir que o advogado comunique-se pessoal e reservadamente com seus clientes, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis; ou ainda impedir que o advogado comunique-se com o seu cliente pessoal e reservadamente antes da audiência judicial, ou sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência; c) lavrar auto de prisão em flagrante do advogado, por motivo ligado ao exercício da advocacia, sem a presença de representante da OAB; d) deixar de instalar o advogado em sala de Estado maior, quando recolhido preso antes de sentença transitada em julgado; e) negar ao advogado acesso aos autos de investigação preliminar ou termo circunstanciado, inquérito ou qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias; f) prosseguir com o interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono.

Disso resulta que hoje a advocacia contém um grupo de prerrogativas cuja violação enseja o enquadramento da autoridade violadora no crime de abuso de autoridade e um grupo de prerrogativas cuja violação, mesmo não se enquadrando como crime, enseja outras medidas. Genericamente, a violação a qualquer uma das prerrogativas enseja três consequências diretas: 1) o direito ao desagravo público (artigo 7º, inciso XVII, do Estatuto da OAB); 2) a representação funcional contra a autoridade responsável pela violação; 3) a inclusão da autoridade no Registro Nacional de Violação das Prerrogativas. Em se tratando da hipótese na qual a violação também constitua crime de abuso de autoridade, advirá uma quarta consequência que é a representação criminal contra a autoridade.

Todas essas providências constituem obrigação da Ordem dos Advogados do Brasil, prevista no Provimento nº 48, artigo 2º: "Comprovada a violação de direitos ou de prerrogativas da profissão, a seção, ou a subseção, deverá representar a quem de direito contra o violador, para promover a responsabilidade administrativa, civil e penal, nos termos da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965" (a Lei nº 4.898/95 a que se refere o dispositivo é a antiga lei de abuso de autoridade, revogada pela atual Lei nº 13.869/2019).

A nova lei de abuso de autoridade foi conquistada em uma importante campanha promovida por diversos atores da sociedade civil, notadamente a Ordem dos Advogados do Brasil, que teve importante papel ao incluir crimes específicos que são cometidos contra a advocacia e o sagrado direito de defesa.

No entanto, a mencionada legislação, que conta com pouco mais de um ano, parece não ter contido arroubos de agentes públicos mal-intencionados contra as pessoas e órgãos. Mais especificamente, percebe-se o aumento de violações, diretas e indiretas, aos direitos e prerrogativas da advocacia. Alguns exemplos icônicos merecem ser citados como o episódio ocorrido em João Pessoa, durante o qual um grupo de agentes e delegados da Polícia Civil do Estado da Paraíba prendeu, ameaçou e agrediu advogados, dentro da delegacia.

No Distrito Federal, embora conte com a melhor polícia judiciária do país, tanto em técnica quanto em serviço de inteligência, nas fronteiras territoriais da região administrativa de Planaltina noticiou-se grave irregularidade de agentes públicos que algemaram as mãos e os pés de um advogado no exercício da função, ato remontado à época da utilização dos "tamancos do suplício", comuns no século XVIII, que tinham como pretexto impedir a fuga dos escravos, sendo gravemente abusivo o duplo agrilhoamento do profissional da advocacia. É oportuno lembrar que o Supremo Tribunal Federal sumulou enunciado acerca da questão da utilização das algemas. O advogado, no exercício de sua profissão, só pode ser detido ou preso na presença de um membro da OAB. No triste episódio, os servidores públicos se recusaram até mesmo a receber ou dialogar com os gestores da subseção da OAB local, postura lastimável e incompatível com o denodo do cargo e a confiança constitucional dada pelo legislador originário às autoridades policiais.

É necessário que seja dada efetividade à lei de abuso de autoridade. Cabe aos aplicadores da lei, em especial a advocacia e o Poder Judiciário, apontarem as graves consequências de um Estado formalmente democrático e de Direito, mas que vem, a cada dia, potencializando um senso equivocado de justiça nos agentes públicos, que se sentem como justiceiros, fora do alcance da lei, o que favorece que sujeitos mal-intencionados ajam como achacadores das conquistas civilizatórias.

A OAB possui seus instrumentos destinados a dar efetividade às suas prerrogativas e à lei de abuso de autoridade, que são o desagravo e as representações funcional/penal. Trata-se de uma resposta que deve sempre ser firme e rápida.

Para dar mais celeridade à figura do desagravo, o Conselho Federal da OAB atualizou seu regulamento geral, através da Resolução nº 1/2018/COP, para admitir a concessão liminar do desagravo e, ainda, fixar prazo para que esse seja processado e julgado.

Assim, embora tenha em seu célere procedimento a formalidade de colher previamente as informações da autoridade violadora, excepcionalmente admite a figura do desagravo liminar nos casos de urgência e notoriedade, como nos exemplos citados acima.

Mais ainda, a celeridade ao desagravo foi efetivada através da previsão de um prazo máximo de 60 dias (artigo 18, §5º, do regulamento geral), o que solucionará os casos, uma vez que, anteriormente, o desagravo demorava tanto a ser decidido que quando acontecia já tinha perdido sua efetividade, que seria a de dar uma pronta resposta à violação e, mais do que isso, a de implantar uma cultura de inabalável respeito ao exercício da profissão advocatícia.

Outro instrumento que visa a dar maior efetividade a essas garantias é a inclusão do nome da(s) autoridade(s) violadora(s) no Registro Nacional de Violações de Prerrogativas, regulado pelo Provimento nº 179/2018. A inserção do nome nesse registro traz uma série de consequências: 1) quando a autoridade ou agente se desincompatibiliza para o exercício da advocacia, como por exemplo, em caso de  aposentadoria ou exoneração, o seu pedido de inscrição pode ser indeferido pela OAB com fundamento na inidoneidade moral (artigo 2º do Provimento 178/2018); 2) por ocasião da análise de um pedido de desagravo, aquele que já consta no registro será considerado reincidente, o que pesa tanto na análise dos requisitos para o desagravo quanto na análise de eventual concessão liminar deste; e 3) por ocasião de uma representação funcional/penal, por violação de prerrogativas, a representação já será acrescida do histórico de violações anteriores.

No entanto, nos parece que algumas seccionais ainda não enxergaram, efetivamente, o valor de tal registro para prevenir violações. De fato, poucas seccionais estão alimentando esse registro. Em dados fornecidos pelo Conselho Federal da OAB desde a sua criação, em 27 de outubro de 2020, apenas 98 registros foram efetivados:

Conselho Federal da OAB 5
Seccional Bahia    1
Seccional Ceará 1
Seccional Goiás 76
Seccional Paraná  3
Seccional Santa Catarina 1
Seccional São Paulo 11
Total Geral 98

Esses dados são muito tímidos, dada a importância do registro; fica aqui o nosso apelo às seccionais para que alimentem esse cadastro.

Subsiste ainda uma proposta da subseção Paranoá e Itapoá (DF) para que seja inserida mais uma declaração junto às pré-inscrições e inscrições na comissão de seleção relativamente ao ingresso de novos advogados nos quadros da OAB. Segundo a proposta, na hipótese em que o postulante adveio do exercício de função pública, este deverá assinar uma declaração afirmando já ter sido, ou não, incluído como parte passiva em desagravos públicos concedidos a favor da advocacia, em especial, por abuso de autoridade; porquanto, munida dessa informação, a comissão de seleção poderá analisar o caso concreto acerca da idoneidade do postulante a advogado e caso a informação não seja dada, que a análise seja criteriosa também a respeito da conduta omissa do postulante. Desse modo, sugere-se, ainda, um edital para que seja possível até mesmo subsidiar as impugnações de inidoneidade moral daqueles que porventura desejem ingressar na heroica função da advocacia, cujo compromisso é com a liberdade do direito de defesa.

Todos esses instrumentos, assim como a força que a celeridade pode acrescentar, constituem objetivos a serem perseguidos de modo a criar no contexto jurídico em geral a certeza de que a violação a essas prerrogativas não ficará impune, culminando com a valorização do exercício da advocacia em sua essência.

Autores

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    é advogada nas áreas Trabalhista e Administrativa, autora dos livros "Greve de Servidores públicos" (LTr, 2011), "Estatuto da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética interpretados artigo por artigo" (LTr, 2016) e "Honorários Advocatícios" (LTr, 2019), membro da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes e coordenadora da "Revista da Advocacia de Rondônia".

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    é especialista em Direito e Processo pela Universidade Cândido Mendes e em Business Intelligence, presidente da Subseção do Paranoá e Itapoã, mestrando no Instituto de Direito Público de Brasília (IDP) e membro da Academia Brasileira de Ciências, Artes História e Literatura.

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    é advogado em Brasília, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), presidente da Comissão Permanente de Defesa das Prerrogativas da OAB, Subseção do Paranoá e Itapoã (DF) e ex-conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

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