Opinião

Estado democrático (in)constitucional?

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4 de dezembro de 2020, 9h10

Não há o que se questionar sobre a previsão do §4º do artigo 57 da Carta Magna.

Trata-se de matéria cuja interpretação é estritamente constitucional, oportunamente ratificada pelo voto do ex-ministro Nelson Jobim no MS 24.041, de sua relatoria, em 2003, independentemente dos regimentos internos de cada Casa Legislativa, além de constituir uma norma de eficácia plena, conforme classificação do conceituado jurista especializado em Direito Constitucional José Afonso da Silva.

Por ser uma norma constitucional de eficácia plena, a sua redação é clara e precisa e de aplicação imediata, eficaz, dispensando qualquer intervenção posterior do Poder Legislativo, a menos que se edite emenda constitucional modificando o dito dispositivo.

A despeito das óbvias constatações, os artigos 5º e 59, respectivamente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, seguem na mesma direção.

A tentativa de atropelar o artigo 57 da Constituição Federal de 1988, seja por meio de um acordo "circunstancial" entre membros do Congresso Nacional ou sob o pseudoargumento de que o chefe do Poder Executivo pode ser reeleito e, portanto, o Poder Legislativo, enquanto poder igualmente político, poderia ter a mesma prerrogativa, esbarra inevitavelmente no texto constitucional, além de contrariar o Estado democrático de Direito, em que o poder deve ser alternado, visando justamente às mudanças de ordem institucional e macropolítica que promovam a ascendência de valores e princípios divergentes e que remetam a um consenso nacional próprios de uma democracia.

Ademais, o sistema brasileiro é presidencialista por excelência, pelo menos até que se resolva por meio da vontade popular a sua mudança para um sistema parlamentarista, em que o primeiro-ministro exerce a função de chefe de governo, diferentemente do sistema presidencialista (em que o presidente da República exerce uma dupla função: chefe de Estado e chefe de governo), e o presidente do Senado Federal exerce a função de presidente do Poder Legislativo e só ascenderia à presidência da República em casos previstos na Carta Magna.

Na hipótese ora remota de mudança para um sistema parlamentarista, aí, sim, se poderia cogitar de reeleger o primeiro-ministro, baseado no fato de ele ser reconhecidamente um eficiente e eficaz chefe de governo, capaz de cooptar e agradar a maiorias e minorias, por meio da implementação de políticas públicas.

No entanto, esse não é o caso brasileiro, a menos que se resolva por meio de referendo, conforme sugeriu Hans Kelsen (como uma alternativa para aperfeiçoar a democracia), criar maiores oportunidades para atender às minorias, sem que estas precisem judicializar as suas demandas, uma vez que, a rigor, as duas casas legislativas em um sistema presidencialista representam a "vontade da maioria" que elegeu os seus respectivos membros (Câmara dos Deputados e Senado Federal).

Diante da atual instabilidade político-institucional e da judicialização do presente tema junto ao Supremo Tribunal Federal — a mais alta instância do Poder Judiciário e "guardião da Constituição" — , esse tribunal deveria, sim, impor o devido respeito à norma constitucional e exigir o seu cumprimento, independentemente dessa questão ser reconhecida como interna corporis do Poder Legislativo.

Paradoxalmente, o STF tem decidido em tempos recentes inúmeras questões que deveriam ser devolvidas ao Poder Legislativo ou mesmo ao Poder Executivo, por se tratar de temas a serem resolvidos internamente em cada um daqueles poderes políticos, e não o fez.

Tendo em vista a relevância da atual questão de âmbito exclusivamente constitucional, o STF deve inquestionavelmente enfrentar o tema e decidir sobre o óbvio: o respeito incondicional ao texto constitucional, sob pena de perder mais uma vez a sua credibilidade, sem mencionar o fato de que estaria se omitindo para se livrar de uma responsabilidade que lhe é inerente, além de concorrer para o desvirtuamento da dita norma, que muito provavelmente será modificada oportunamente pelo Poder Legislativo para atender a objetivos e finalidades diversas do interesse público e, por consequência, da Constituição brasileira e do Estado democrático de Direito.

A possibilidade de se editar uma emenda constitucional destinada a atender àqueles "objetivos e finalidades" extraoficiais constitui, acima de tudo, um atestado de incompetência do Poder Legislativo ao permitir que o poder se alterne, a despeito de quem venha a assumi-lo, e enfrentar com serenidade, equilíbrio e sobretudo consenso, diante de opiniões e interesses de grupos divergentes, cuja existência é natural em uma democracia madura e responsável.

Existem outros mecanismos legais que têm o papel de evitar desmandos e "desvios de finalidade" que poderão ser acionados, ao invés de se tentar afrontar a Carta Magna sob o pretexto de acomodar interesses da maioria.

Em síntese: do ponto de vista jurídico-constitucional, o artigo 57 não permite modificações em sua interpretação, a menos que se edite uma emenda constitucional, cujo objetivo seria crucial para a banalização do artigo 60 da Carta Magna, além de sujeitá-la a uma mera "folha de papel", sem força normativa, utilizando a tese de Ferdinand Lassalle.

Do ponto de vista político-institucional, uma mudança de tal natureza constituiria uma ameaça ao arcabouço democrático brasileiro.

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