Opinião

Kurzarbeit: a suspensão contratual alemã no contexto da Covid-19

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4 de dezembro de 2020, 6h04

1) Introdução
O Kurzarbeit [1] é um regime de suspensão contratual que visa a diminuir o número de demissões em períodos de baixa demanda a partir da redução total ou parcial da jornada de trabalho. Durante o período de adesão, o empregador mantém o pagamento integral do salário pelas horas trabalhadas, enquanto o governo alemão paga indiretamente ao empregado uma porcentagem de sua remuneração normal pelas horas não trabalhadas.

O regime é previsto no Sozialgesetzbuch (SGB) Drittes Buch (III) — Arbeitsförderung (SGB III) [2] e resulta na suspensão temporário do dever do empregador de remuneração a seus funcionários.

As primeiras alterações sobre o Kurzarbeit na pandemia da Covid-19 foram apresentadas no Gesetz zur befristeten krisenbedingten Verbesserung der Regelungen für das Kurzarbeitergeld [3], em 13 de março, que facilitou a adesão de empresas ao programa. Para atenuar as consequências sociais e econômicas causadas pela pandemia da Covid-19, foram aprovados também o Sozialschutz  Paket 1 [4], em 27 de março, e o Sozialschutz Paket II [5], em 28 de maio, pacotes de proteção social que previam abrandamento na concessão e manutenção de benefícios sociais e de normas trabalhistas.

Especificamente sobre o Kurzarbeit durante a pandemia, foram aprovados a Verordnung über die Bezugsdauer für das Kurzarbeitergeld (KugBeV) [6], que permite a prolongação dos programas em andamento, em 16 de abril, e o Beschäftigungssicherungsgesetz (BeschSiG) [7], em 20 de novembro, que versa sobre alterações para o Kurzarbeit durante o ano de 2021.

Este artigo visa a apresentar, de forma enxuta e didática, o funcionamento do regime Kurzarbeit e as alterações decorrentes das medidas para a manutenção do emprego durante a pandemia até o momento de sua publicação.

2) Duração
O Kurzarbeit tem, em condições normais, sua duração limitada a 12 meses [8]. Contudo, devido à pandemia, houve alterações no tempo máximo de adesão ao programa. Em 20 de abril, os programas iniciados em 2019 tiveram sua duração estendida para até 21 meses, sendo que o último mês deve ser o atual [9].

Constatada a necessidade de extensão dos períodos sob o regime devido à persistência da pandemia, foi aprovada em 20 de novembro, a extensão do período para até 24 meses às empresas que tenham requisitado adesão ao regime até 31/12/2020. De acordo com essa nova legislação, as empresas participantes poderão seguir em Kurzarbeitaté 31 de dezembro de 2021.

2.1) Adesão
Aderir ao regime Kurzarbeit é um direito do empregado, e não do empregador [10]. Entretanto, a requisição para participar desse programa de seguridade social é realizada pela empresa à Arbeitsagentur [11] local. Deve existir ausência de trabalho e de remuneração (Arbeits  und Entgeltausfall[12], além de requisitos específicos para empregado e empregador.

2.1.1) Condições para empresas
A adesão ao programa permite à empresa a manutenção de seus funcionários, de forma a diminuir custos com demissão, recrutamento, admissão e treinamento de pessoal. Deve-se observar, entretanto, que ondulações de demanda são inerentes ao risco do negócio e não isentam o empregador das obrigações de oferecer trabalho e de pagar salário de forma integral a seus funcionários [13].

Para que seja possível a adesão de seus trabalhadores, de forma parcial ou total, o empregador deve preencher os seguintes requisitos [14]:

— Possuir ao menos um empregado;

— Ao menos um terço dos empregados ser atingido com uma perda de ao menos 10% de seus rendimentos mensais brutos; e

— A diminuição na demanda ser devido à situação econômica ruim ou a um evento específico imprevisíveis.

Até o momento, a única alteração prevista devido à pandemia da Covid-19 é a diminuição da parcela afetada: a porcentagem mínima de funcionários afetados passa a 10%, mantida a obrigatoriedade de perda de ao menos 10% dos rendimentos mensais brutos [15].

2.1.2) Concordância dos funcionários
A adesão ao regime é de escolha do funcionário, de forma que cabe destacar que o empregador não pode impor o Kurzarbeit aos funcionários pelo seu simples poder de mando [16]. Dessa forma, é imprescindível o consentimento de todos os funcionários beneficiários.

A adesão ao regime pode se dar por meio de contrato individual de trabalho, de acordo coletivo [17] por aviso prévio. A não observância deste último, contudo, não pode resultar na demissão do empregado [18]. Os requisitos pessoais para a adesão de empregados ao benefício não foram alterados.

3Remuneração
Durante o período de adesão de uma empresa ao Kurzarbeit, o salário de seus funcionários é pago (de forma indireta) parcial ou totalmente pelo governo, de forma a proteger a remuneração do empregado e seu poder de compra. A remuneração sobre o tempo não trabalhado é compensada na forma de subsídios recebidos pelo empregador e repassados aos funcionários [19].

As horas trabalhadas são pagas de forma integral pelo empregador e aquelas previstas no contrato de trabalho mas não trabalhadas devido à redução temporária da jornada são pagas na porcentagem de 60% [20] da remuneração líquida pelo governo alemão. Caso o empregado tenha crianças registradas em seu domicílio, aumenta-se para 67% [21]. Dessa forma, se a jornada for diminuída em 50%, por exemplo, a remuneração é reduzida em apenas 20%.

3.1) Aumento da porcentagem da remuneração paga pelo governo aos trabalhadores

3.1.1) Entre 30 de março e 31 de dezembro de 2020
O Sozialschutz
Paket II estabeleceu um aumento gradual na porcentagem paga pelo governo alemão para os empregados cuja jornada foi reduzida em mais de 50%. A partir do quarto mês (tendo como referência abril como o primeiro mês possível) de recebimento do benefício, esses funcionários terão a referida porcentagem aumentada na seguinte proporção:

— A partir do 4º mês: 70% ou 77% para domiciliados com crianças;

— A partir do 7º mês: 80% ou 87% para domiciliados com crianças.

3.1.2) Entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2021
urante o ano de 2021 não haverá mais redução mínima da jornada de trabalho para o aumento gradual do pagamento [22]. A proporção segue imutada.

3.2) Complementação de renda (Sozialschutz Paket 1)
O empregados beneficiários do Kurzarbeit, em geral, não tem permissão para auferir rendimentos adicionais após o início da participação no programa. A partir da aprovação do Sozialschutz Paket 1, entretanto, é permitido desde maio de 2020 o ganho de renda adicional pelos beneficiários, inclusive por meio de Nebenjobs [23]. A permissão foi estendida para até o dia 31/12/2021 pelo Beschäftigungssicherungsgesetz (BeschSiG). Deve-se observar, contudo, que os rendimentos totais não podem ultrapassar a remuneração original recebida antes do benefício.

4) Conclusões
O modelo do Kurzarbeit, à primeira vista, pode parecer ideal para frear o desemprego em qualquer crise financeira. Os gastos do governo com o pagamento de salários são menores do que os com o pagamento do seguro desemprego e, durante a participação no programa, contribuições previdenciárias são mantidas. Ainda, os empregadores economizam em demissões, seleções e treinamentos e pode manter funcionários que já conhecem o trabalho a ser realizado e a cultura da empresa.

Entretanto, o regime Kurzarbeit não é capaz sozinho de impedir uma crise de desemprego e não é adequado a todas as economias. É importante ressaltar que o programa pode favorecer a manutenção artificial de empresas não competitivas no mercado e atrasar a realocação de profissionais "presos" nessas empresas [24].

No Brasil, onde em torno de 40% da população ocupada é de trabalhadores informais [25], o programa provavelmente não geraria resultados sequer próximos aos alemães. Ainda, deve-se considerar que a economia alemã é altamente especializada e que no Brasil a recontratação e treinamento de pessoal seriam muito mais baratos. Dessa forma, ainda que funcione muito bem no contexto alemão, o regime parece não ser viável frente à realidade brasileira.

 


Referências bibliográficas
— ALEMANHA. Beschäftigungssicherungsgesetz (BeschSiG), de 20 de novembro de 2020. Versa sobre alterações para o Kurzarbeit durante o ano de 2021. Disponível em https://www.bundesrat.de/bv.html?id=0701-20. Acesso em 27 nov. 2020.

— ALEMANHA. Gesetz zur befristeten krisenbedingten Verbesserung der Regelungen für das Kurzarbeitergeld, de 13 de março de 2020. Dispõe sobre afrouxamento de requisitos e condições do regime Kurzarbeit. Disponível em: https://www.bmas.de/DE/Service/Gesetze/erleichtertes-kurzarbeitergeld.html. Acesso em 27 nov. 2020.
— ALEMANHA. Sozialgesetzbuch (SGB) Drittes Buch (III) – Arbeitsförderung (SGB III), de 1º de janeiro de 1998. Dispõe sobre normas de seguridade social de incentivo ao emprego. Disponível em: https://www.sozialgesetzbuch-sgb.de/sgbiii/1.html. Acesso em 27 nov. 2020.

— ALEMANHA. Sozialschutz – Paket 1, de 27 de março de 2020. Pacote legislativo de proteção social com normas relacionadas à seguridade social durante a pandemia Coronavírus. Disponível em https://www.bmas.de/DE/Service/Gesetze/sozialschutz-paket.html. Acesso em 27 nov. 2020.

— ALEMANHA. Sozialschutz – Paket II, de 28 de maio de 2020. Pacote legislativo de proteção social com normas relacionadas à seguridade social durante a pandemia Coronavírus. Disponível em https://www.bmas.de/DE/Service/Gesetze/sozialschutz-paket2.html. Acesso em 27 nov. 2020.

— ALEMANHA. Verordnung über die Bezugsdauer für das Kurzarbeitergeld (KugBeV), de 16 de abril de 2020. Permite a prolongação dos programas Kurzarbeit em andamento. Disponível em https://www.arbeitsagentur.de/datei/weisung-202011007_ba146723.pdf. Acesso em 27 nov. 2020.

— SAGAN, Adam, BROCKFELD, Marius, "Arbeitsrecht in Zeiten der Corona-Pandemi", NJW 2020, p. 1112.

— ZIEGLMEIER, Christian, RITTWEGER, Stephan, "Corona-Kurzarbeitergeld: Aktuelle Hindernisse und typische Kontrollfelder nach der Krise", NZA 2020, p. 685.

[1] Trabalho com jornada reduzida.

[2] ALEMANHA. Sozialgesetzbuch (SGB) Drittes Buch (III) – Arbeitsförderung (SGB III), de 1º de janeiro de 1998. Dispõe sobre normas de seguridade social de incentivo ao emprego. Disponível em: https://www.sozialgesetzbuch-sgb.de/sgbiii/1.html. Acesso em 27 nov. 2020.

[3] ALEMANHA. Gesetz zur befristeten krisenbedingten Verbesserung der Regelungen für das Kurzarbeitergeld, de 13 de março de 2020.Dispõe sobre afrouxamento de requisitos e condições do regime Kurzarbeit. Disponível em: https://www.bmas.de/DE/Service/Gesetze/erleichtertes-kurzarbeitergeld.html. Acesso em 27 nov. 2020.

[4] ALEMANHA. Sozialschutz – Paket 1, de 27 de março de 2020. Pacote legislativo de proteção social com normas relacionadas à seguridade social durante a pandemia Coronavírus. Disponível em https://www.bmas.de/DE/Service/Gesetze/sozialschutz-paket.html. Acesso em 27 nov. 2020.

[5] ALEMANHA. Sozialschutz – Paket II, de 28 de maio de 2020. Pacote legislativo de proteção social com normas relacionadas à seguridade social durante a pandemia Coronavírus. Disponível em https://www.bmas.de/DE/Service/Gesetze/sozialschutz-paket2.html. Acesso em 27 nov. 2020.

[6] ALEMANHA. Verordnung über die Bezugsdauer für das Kurzarbeitergeld (KugBeV), de 16 de abril de 2020. Permite a prolongação dos programas Kurzarbeit em andamento. Disponível em https://www.arbeitsagentur.de/datei/weisung-202011007_ba146723.pdf. Acesso em 27 nov. 2020.

[7] ALEMANHA. Beschäftigungssicherungsgesetz (BeschSiG), de 20 de novembro de 2020. Versa sobre alterações para o Kurzarbeit durante o ano de 2021. Disponível em https://www.bundesrat.de/bv.html?id=0701-20. Acesso em 27 nov. 2020.

[8] §104 [1] SGB III.

[9] § 1 Verordnung über die Bezugsdauer für das Kurzarbeitergeld (Kurzarbeitergeldbezugsdauerverordnung – KugBeV) do 16 de abril de 2020, BGBl. 2020, I, n° 18, 20 de abril de 2020.

[10] ZIEGLMEIER, Christian, RITTWEGER, Stephan, "Corona-Kurzarbeitergeld: Aktuelle Hindernisse und typische Kontrollfelder nach der Krise", NZA 2020, p. 685.

[11] Órgão semelhante ao Ministério do Trabalho brasileiro.

[12] SAGAN, Adam, BROCKFELD, Marius, "Arbeitsrecht in Zeiten der Corona-Pandemie", NJW 2020, p. 1112.

[13] De acordo com a Betriebsrisikolehre (doutrina do risco empresarial, em tradução livre).

[14] § 96 SGB III.

[15] §1 Gesetz zur befristeten krisenbedingten Verbesserung der Regelungen für das Kurzarbeitergeld.

[16] § 106 GewO.

[17] Em negociação com o Betriebsrat (conselho da empresa).

[18] § 612a BGB.

[19] §§ 95 e seg. SGB III.

[20] §105 [2] SGB III.

[21] §105 [1] SGB III.

[22] BeschSiG.

[23] Trabalhos de meio período.

[24] Dados apontados pelo Institut für Arbeitsmarkt- und Berufsforschung (IAB), Instituto de Pesquisa Trabalhista.

[25] Dados sobre o primeiro semestre de 2020, publicados em 30/4/2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Autores

  • é juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS, doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-doutora pela Universidade de Edimburgo e líder do Grupo de Estudos Direito e Fraternidade da UFRGS.

  • é aluna da graduação na faculdade de Direito da UFRGS.

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