Opinião

Os novos desafios de Clio — a profissão de historiador no Brasil

Autor

  • Yussef Daibert Salomão de Campos

    é professor da Universidade Federal de Goiás autor do livro "Palanque e Patíbulo: o patrimônio cultural na Assembleia Nacional Constituinte" e articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

3 de dezembro de 2020, 13h10

Na mitologia grega, Zeus une-se à Mnemósine para celebrar a sua vitória contra Cronos. Dessa união, nove Musas nascem, entre elas Clio. A Titânide Mnemósine é, a partir da teogonia grega, a feição da memória; Zeus, da autoridade, do poder; enquanto Cronos, do tempo. Será que podemos afirmar, então, ainda que sem uma leitura detida, que a memória aliada ao poder é capaz de derrotar o tempo? Talvez seja apressado afirmar. Mas importa aqui dizer que dessa união surge Clio ou a feição alegórica da História.

Recorro a essa breve digressão para remeter à Lei 14038, de 17 de agosto deste ano, por inovar o ordenamento jurídico. Essa lei atendeu a uma demanda antiga, a de regulamentar a profissão do(a) historiador(a).

Há uma aparente ironia nesse instrumento jurídico: foi assinado pelo atual presidente da República, que, em suas estapafúrdicas declarações, afirma serem esses profissionais praticantes de balbúrdias, toxicômanos e cultivadores de substâncias proibidas em lei, desnecessários à ciência brasileira (o que significa, na prática, o corte abrupto e radical de repasse de recursos às faculdades e institutos de História do Brasil, presentes em universidades federais), entre outros absurdos. Contudo, cumpre destacar que o senhor presidente vetou totalmente o projeto de lei, tendo sido o veto derrubado pelo Congresso Nacional.

A lei elenca como historiadores e historiadoras (artigo 3º) aqueles e aquelas portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição regular de ensino; portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação; portadores de diploma de mestrado ou doutorado em História, expedido por instituição regular de ensino ou por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação; portadores de diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que tenha linha de pesquisa dedicada à História; profissionais diplomados em outras áreas que tenham exercido, comprovadamente, há mais de cinco anos, a profissão de historiador, a contar da data da promulgação desta lei.

Ou seja, é amplo o espectro de profissionais que podem atuar na área. Não creio se tratar de reserva de mercado, nem de preciosismo epistemológico. Trata-se de possibilitar aos profissionais segurança jurídica e profissional para exercer o magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio; organizar informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História; planejar, organizar, implantar e dirigir serviços de pesquisa histórica; assessorar, organizar, implantar e dirigir serviços de documentação e informação histórica; assessorar ações voltadas à avaliação e seleção de documentos para fins de preservação; elaborar pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos, conforme dita o artigo 4º.

Contudo, creio que o desafio maior será, e já o tem sido, o de atender às exigências dos artigos 5º ao 7º, pois tratam do registro profissional e da habilitação legal para o exercício da profissão. A ANPUH (Associação Nacional de História) é uma instituição voltada para o apoio ao ensino e à pesquisa na área de História desde a década de 1960, assim como à defesa do livre exercício das atividades dos profissionais de História. Estabelecer-se como entidade de classe a partir de uma legislação que, à primeira vista, avoca a necessidade de uma organização aos moldes da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Federal de Medicina (CFM), mutatis mutandis, é o grande obstáculo posto.

Surgir da destituição de uma autoridade titânica, resistir às perseguições durante a ditadura civil-militar, vencer o obscurantismo e o negacionismo e deixar de joelhos o atual presidente ante a derrubada do veto, nós já o fizemos e continuamos em luta. Agora é apararmos as arestas internas e promovermos nosso ofício à altura de sua conspícua relevância.

Autores

  • é professor da Universidade Federal de Goiás, autor do livro "Palanque e Patíbulo: o patrimônio cultural na Assembleia Nacional Constituinte" e articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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