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O STF, os concursos e as crenças religiosas: a história de um equívoco

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3 de dezembro de 2020, 8h00

Spacca
1. O julgamento que produz "desisonomia"
O Supremo Tribunal Federal decidiu no último dia 26 de novembro a possibilidade de alteração de etapas de concurso público em razão de crença religiosa. O julgamento em conjunto foi pautado por dois recursos: no primeiro (RE 611.874) um candidato adventista que demandou a alteração de prova de aptidão física do sábado para o domingo e no segundo (ARE 1.099.099) uma professora da rede pública de São Paulo, exonerada após 90 dias de faltas consideradas injustificadas, uma vez que cumpria estágio probatório e como membro da igreja adventista cumpria a orientação de não trabalhar entre o pôr-do-sol da sexta feira e o pôr-do-sol do sábado.

Vencidos os ministros Toffoli, Nunes Marques e Gilmar. Fachin teve o entendimento seguido por Alexandre de Moraes, Barroso, Rosa, Cármen e Fux. A tese que teve aderência da maioria dos ministros foi a proposta pelo ministro Alexandre. O ministro Marco Aurélio acompanhou a maioria no RE 611.874 e ficou vencido no ARE 1.099.099.

Prevaleceu que "nos termos do artigo 5º, VIII, da Constituição Federal é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital, por candidato que invoca escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração e a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à administração pública que deverá decidir de maneira fundamentada".

Observação: Tal tese representa um alarmante distanciamento do STF em relação ao entendimento anterior quanto ao tema 335 com repercussão geral (remarcação de teste de aptidão física em concurso público), que anteriormente era pela inexistência do direito de candidatos à prova de segunda chamada nos testes de aptidão física em razão de circunstâncias pessoais, ainda que em razão de problema temporário de saúde ou outro motivo de caráter fisiológico ou de força maior (salvo se o edital dispuser em contrário), mediante o que o próprio STF decidiu no julgamento do Recurso Extraordinário 630733, leading case da matéria. A questão que se coloca, portanto, é: quando o STF irá respeitar a sua própria cadeia de precedentes, já que entende que existe precedentes no Brasil? Ou será que o STF adotou o entendimento do STJ no Recurso Especial 1.698.774 de dividir os precedentes em persuasivos e vinculantes?

Na verdade, o STF fez uma extensa "lei" sobre a matéria. O Ministro Nunes Marques disse (bem) na sua sabatina: o Judiciário cuida do passado; o Legislativo, do futuro. Todavia, não foi o que a maioria fez. Até pelo placar — e pelo respeito de sempre que professo pela Corte Suprema da República — o assunto merece uma análise mais aprofundada. É preciso verificar as várias camadas do fenômeno, revolvendo o chão linguístico sob o qual se assenta essa tese. Para organizar o debate, destacarei alguns pontos problemáticos:

  1. Se a legislação não define — e não define, mesmo — um direito adquirido à realização da etapa do concurso público em horário alternativo, esse direito só pode derivar do edital, que é o ato que regula o certame. Se não foi encontrado lastro normativo que fundamentasse o direito à realização da prova em horário alternativo, isso se deve tão somente à carência de exigibilidade do direito em tela. Parece simples, mas há momentos em que o óbvio precisa ser repetido.

  2. Verificada a inexigibilidade do direito, a consequência lógica é que o seu deferimento representa a criação judicial do direito, o que por si só caracteriza a decisão como ativista. Ainda assim, cabem aplicar as três perguntas fundamentais para que se evidencie a ocorrência do ativismo judicial (submissão do direito à vontade do intérprete) e não da judicialização da política (concretização de direito por via judicial por motivo de contingência).

  3. A primeira pergunta, que indaga pela exigibilidade do direito, já evidencia a ocorrência do ativismo: como visto, o aparato normativo não confere direito exigível à alteração, motivo pelo qual o Judiciário foi instado a atuar. Poderia parar por aqui e demarcar a crítica ao ativismo judicial na decisão em tela, mas prossigo com a análise para demonstrar o mérito das três perguntas fundamentais que construí na Crítica Hermenêutica do Direito.

  4. A segunda pergunta diz respeito à possibilidade de universalização da demanda, ou seja, é possível aplicar o mesmo provimento a todas as pessoas que se encontrem nessa mesma situação? É aí que o problema encontra nuance mais grave, pois sabemos que muitas podem ser as convicções religiosas que podem interferir na realização das etapas do concurso público. É impensável que a administração pública consiga manejar interesses tão diversos e plurais. Atender a todos pode significar a impossibilidade de realização da prova.

  5. A terceira pergunta indaga: há alocação de recursos que fira a igualdade/isonomia? Nesse caso, essa pergunta escancara uma questão ainda mais séria: o custo gerado para o Estado ao alterar o andamento programado do concurso público para atender demandas individuais. Mesmo que esse custo não esteja aparente num caso específico (exemplo em que o candidato arque com a realização da prova em outra cidade em data já programada na agenda do concurso, por exemplo), esse custo pode estar relacionado com a pergunta anterior. E se uma expressiva maioria de candidatos resolver alterar as condições de realização da prova? Interferir nessa agenda significa invadir um espaço decisório, medida que só se justifica diante de um aparato normativo.

  6. Essa sucessão de equívocos desaguou numa “tese” fixada pela Corte que nada mais faz do que apostar em conceitos como razoabilidade e proporcionalidade como requisitos que justifiquem a alteração das condições de realização do concurso público. Na esteira do que venho repetindo há anos, as ideias de proporcionalidade e razoabilidade acabam funcionando muito mais como espaços para a instrumentalização do direito e sua submissão ao subjetivismo do que como critérios em si.

  7. Por fim, não posso deixar de mencionar que tal discussão passa por uma atualização de sentido do que significa a atuação contramajoritária da Corte Constitucional. Tal atuação serve à ideia de supremacia constitucional, que fundamenta a legitimidade do Supremo Tribunal Federal enquanto corte constitucional. Explico: é a adesão à normatividade que legitima a atuação do STF, inclusive no que envolve demandas protetivas de minorias.

2. As três perguntas fundamentais que definem a diferença entre ativismo e judicialização
As três perguntas fundamentais trabalhadas no Dicionário de Hermenêutica e que também estão no voto do Min. Gilmar no RE 888.815/RS (caso hommeschooling) resolve(ria)m o problema. Aliás, o STF não seguiu seu próprio precedente. Na verdade, dois. Precedente existe quando há uma holding, um princípio que se retira de um julgamento.

Explico: Qual é a diferença entre (i) o direito pretendido no caso de homeschooling, (ii) a inexistência do direito de candidatos à prova de segunda chamada nos testes de aptidão física em razão de circunstâncias pessoais (problema de saúde no dia do exame de aptidão física) e (iii) o direito pretendido no caso de concursos públicos? Permito-me responder: Não há direito fundamental nem para não mandar o filho para a escola, de alegar circunstâncias pessoais para não realizar a prova de aptidão física em concurso público e nem tampouco para exigir do Estado uma alteração de datas de concursos.

Diz a Constituição: "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei".

Parece clara a correlação entre o caso homeschooling, o caso de realização da prova de aptidão física por problemas de saúde e o "caso dos concursos". E o STF decidiu, no homeschooling, por 9×1. Não fosse isso, ainda assim há outro precedente. Sim, quando não se tem um "sistema de precedentes", corre-se o risco de construir vários sobre o mesmo ponto e, ainda assim, ignorá-los. Com efeito, tem-se o Tema 335 de Repercussão Geral que assentou a inexistência de direito constitucional à remarcação de provas em razão de circunstâncias pessoais dos candidatos de concurso público. Aqui, caberia bem a adesão à tese da colegialidade, sempre invocada pela Ministra Rosa Weber. Parece que, aqui, ficou bem exposto o problema "da colegialidade". O que é um "precedente", afinal?

Mais ainda, fosse correta a decisão do STF e a iniciativa privada também teria que estar vinculada ao "precedente" (na Espanha e na Corte CEDH isso está bem claro!). É como o caso de conceder licença paternidade em dobro para pai de gêmeos (sim, há decisões nesse sentido). Só dá no setor publico? O Bradesco não concede? E não dá para obrigar o Bradesco? Pois é. Logo… a medida não pode ser universalizada e gera transferência anti-isonômica de recursos para a satisfação pessoal de alguns.

3. Por que minhas crenças não podem acarretar prejuízo a outros direitos?
Tenho tentado mostrar que existe um (elevado) grau de autonomia do Direito. Ele não pode ser corrigido por subjetivismos, seja com que roupagem for, se éticas ou morais ou moralizantes. Nessa linha, tenho utilizado algumas ilustrações. Confesso, ilustrações duras e até antipáticas. Mas bastante didáticas e isto ninguém pode negar! Por exemplo, um aluno de medicina ou biologia alega objeção de consciência para não frequentar a cadeira de anatomia, onde são feitos exercícios com animais (dissecação). Entra em juízo e pede que a Universidade lhe proporcione um curriculum alternativo. O judiciário concede a ordem. Qual é o problema dessa decisão? Sem dúvida, a decisão é equivocada. Sem discutir o direito dos animais (essa é outra questão — se o ensino de medicina encontrar meio alternativo, isso teria ou terá que ser para todos os alunos), não parece constitucional que o restante da sociedade transfira recursos para proporcionar o bem-estar da consciência moral do nosso pretendente a esculápio. O juiz terá que responder a algumas perguntas, como: há um direito fundamental a cursar medicina? Se não há, o pleito não vinga. Segundo: a conduta é universalizável? Parece antipática a tese, porém, há que se responder. E não de forma voluntarista-ativista.

Mais: um estudante de Direito pode alegar problemas morais e não cursar direito penal, por exemplo, porque seu pai foi preso injustamente e, por isso, é traumatizado? Ora, não parece existir um direito fundamental a que alguém curse Direito. E na engenharia, pode o estudante exigir um currículo próprio? E a isonomia, a igualdade, a república, etc…onde ficam? E os recursos públicos, que são de todos, podem ser desviados em favor de um ou de alguns?

Posso determinar que uma rua seja fechada aos sábados para dar tranquilidade a algumas pessoas que descansam nesse dia? E os demais moradores? Há um direito fundamental a que pessoas não sejam perturbados por ruídos aos sábados ou outro dia, a depender da crença? Já escrevi aqui na ConJur também sobre o caso de pais que professam religião que proíbe transfusão de sangue levam seu filho ao hospital (ver aqui). A solução é a mesma.

4. Voltando ao caso dos concursos e a recente decisão do STF
Mutatis mutandis, isso se aplica aos casos de pessoas que exigem, judicialmente, que um concurso público seja feito em outro dia que não aquele em que a religião do utente permita trabalhar ou exercer atividades. Ora, não parece que exista um direito fundamental a que o utente faça aquele concurso específico. Por exemplo, dizendo de outro modo, ninguém tem o direito fundamental a ser juiz. Ou a cursar medicina. Por que os demais concidadãos devem transferir recursos para proporcionar o bem-estar de consciência de um indivíduo, isoladamente?

Eu e você temos o direito de crer (ou não) no que quisermos: posso acreditar que se engolir três pescoços de galos-índio por dia vou purificar minha alma e assegurar meu lugar aos céus (por exemplo, digamos que eu pertença a uma religião desse jaez). Mas isso não me dá o direito, caso não tenha eu condições financeiras, de pleitear judicialmente ao Estado que me forneça um caminhão de pescoços sempre que necessitar (leiam o Post Scriptum).

Exageros (de novo) à parte, fazer escolhas religiosas implica ônus. Muitos. Mesmo que a Constituição garanta a liberdade de credo, isto não quer dizer que tal direito se converta em direito subjetivo a obter aquilo que acredito para todas as hipóteses.

De todo modo, o ponto é: a impossibilidade de transplantar a filosofia moral, sem mediação, para o Direito — coisa que acontece com quem trabalha com o paradigma das tais "escolhas trágicas", por exemplo. No âmbito judicial. o juiz (ou o Tribunal) não é um agente moral que age guiado por suas convicções pessoais; diante da responsabilidade política que possui, a resposta jurídica decorre de uma decisão fundamentada no direito. Por isso, venho insistindo que, no direito, temos decisões e não escolhas.

Post scriptum: Sempre a relação direito e moral! De novo, a moral corrige o direito! Quem vai corrigir a moral?
Esta foi uma coluna conceitual. Discuti uma decisão do STF e tentei demonstrar porque foi equivocada. Trata-se de uma discussão sofisticada sobre a relação entre direito e moral. Espero que os comentaristas da ConJur não se digladiem em torno dos exemplos que citei. São apenas exemplos para discutir o tema. Já aviso que não gosto de engolir pescoços de galos-índio. Quem não tiver condições de discutir o cerne do problema aqui trazido, não leia até o final e poupe os demais leitores de observações periféricas, ideológicas ou de cariz idiossincrático (algo como “não entendo e não gosto” ou “não gosto do foi escrito porque não gosto do articulista”).

E, atenção: não estou comparando a crença sobre proibição de transfusão sangue, ou o direito de querer não fazer concurso em determinado dia, com qualquer crença ou crendice. Levemos a sério a laicidade.

Cada crença tem o direito constitucional de ser respeitada… desde que não acarrete invasão no direito de outras pessoas colocadas no mesmo patamar de interesses.

E, mais: direitos não podem advir de construções judiciais se a Lei Maior aponta em outra direção.

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