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Dante e Dostoiévski: a literatura como análise do sistema prisional brasileiro

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3 de dezembro de 2020, 19h20

Atravessando o inferno, Dante, guiado por Virgílio, entra na quarta vala do oitavo círculo do inferno, onde se castigavam os mágicos, adivinhos e farsantes. Ao chegar ao local onde se promoviam os castigos infernais, Dante não resiste e, perturbado pela violência, encosta em um rochedo e cai em prantos.

Logo é advertido por seu guia, Virgílio: "Como todos aqui, és louco? Aqui, é virtuoso o que piedade não sente — pois quem pode ser tão perverso quanto o que se apieda do mau castigado pela justiça divina?", questiona Virgílio.

Esse trecho da obra "A Divina Comédia" diz muito sobre muita coisa. Será que hoje, no cenário infernal do nosso sistema prisional, ainda há espaço para comoção? Será que ainda podemos nos comover frente aos castigos imaculados das autoridades do divino Judiciário brasileiro?

Com esse questionamento abro este texto: será que somos perversos pelo fato de nos comovemos com o mau castigado pelo sistema prisional imposto pelo Judiciário? Será justo o castigo aplicado pelos juízes, assim como o castigo aplicado por Deus?

Fato é que o sistema prisional brasileiro, diferente do inferno descrito por Dante, pune todos os pecadores da mesma forma. No inferno existe rigor na individualização das penas; cada pecado possui uma punição, do mais "brando" até o mais rigoroso, de modo que existe certa hierarquia entre as punições, dando, de certo modo, o tratamento justo e adequado conforme a vontade divina.

O sistema prisional brasileiro, diferente do inferno, pune todos da mesma forma: do sujeito que praticou um furto até o que praticou um brutal assassinato, todos recebem tratamento igual, na mesma intensidade e rigor. Todos são tratados da mesma forma. Não importa o seu pecado, sua punição será aplicada conforme a "justiça".

Essa visão me parece problemática, pois, diferentemente do inferno de Dante, quem nos julga é um homem — por mais que o julgador se considere um deus —, que está sujeito à falibilidade humana. Esse fato põe em cheque toda a legitimidade da pena: poderia um pecador ser julgado por outro com base na mera legalidade? A mesma legalidade que, do mesmo modo, fora produzida por pecadores como ele? Eis o problema de se tentar reproduzir a justiça divina: na tentativa de agir como Deus, nos abrimos ao mais humano dos erros.

Não me entenda mal, leitor, este texto não é uma ode à abolição dos sistema prisional. Não! Este texto é, acima de tudo, um questionamento: Ainda há espaço para nos comovermos frente a Justiça? 

Penso que, para melhor responder a esse questionamento, devemos recorrer àquele que melhor entendeu o homem moderno: Fiódor Dostoiévski.

A obra "Memórias do Subsolo" foi o esforço hercúleo de uma das mentes mais brilhantes que já se puseram a pensar sobre os problemas da humanidade. Dostoiévski foi, sem sombras de dúvidas, um dos mais notáveis literatos da história.

Nesse livro, Dostoiévski descreve a experiência de um homem doente. A obra, embora curta, é densa. O livro parte da perspectiva do pensamento de um narrador que não tem nome, e que está certo de que ninguém deveria lê-lo.

O homem do subsolo dialoga a todo momento com o leitor. Somos convidados a destilar da sua catarse através da linguagem presente ao longo do texto, na qual somos imersos, em declive, ao subsolo, que é a representação da sua própria mente.

O desabafo do homem do subsolo está presente na primeira parte do livro, onde fica subentendido que o "subsolo", aqui representado figurativamente, representa, na verdade, a sua consciência. A consciência de si.

Este texto não se propõe a explicar uma crise do ponto de vista de um autor que morreu há 200 anos. Este texto é uma denúncia, no qual se delata a profundidade do subsolo presente em todos nós que lidamos diariamente com o sistema prisional brasileiro.

O homem do subsolo se apresenta como um homem desagradável, que narra a todo tempo as suas mais prazerosas frustrações, numa tentativa de explicar como convive consigo diante de crises e problemas existenciais.

O homem do subsolo é, acima de tudo, um homem consciente de si. E como o próprio coloca: "Consciência demais pode se tornar uma doença". Ora, se consciência demais pode se tornar uma doença, a completa falta de consciência torna-se o quê?

Como podemos nos preocupar com teses metafísicas, elaborar teorias idiossincráticas, pesquisar sobre a opinião do doutrinador alemão da vez, enquanto neste exato momento existem milhares de homens e mulheres que sofrem um rigoroso castigo e que, não raras vezes, sequer tiveram a culpa decretada por uma sentença transitada em julgado? Teríamos nós, assim como o homem do subsolo, perdido a capacidade de nos comover?

Ao fim, penso que a máxima dantesca é, no nosso caso, profeticamente inversa: como todos aqui, somos loucos? Aqui é virtuoso o que piedade sente — pois quem pode ser tão perverso quanto o que não se apieda do mau castigado pela justiça humana?

Questionar o sistema prisional brasileiro é mais do que um exercício de cidadania, é um dever civilizatório. Agora mesmo, enquanto estás lendo este texto, homens e mulheres, pais, mães, avós, estão trancafiados numa cela superlotada, sofrendo toda sorte de violência e com pneumonia. Como podemos simplesmente seguir ignorando essa triste realidade e agir como se nada estivesse acontecendo?

Se o sistema prisional brasileiro é um estado de coisas inconstitucional, que seja reformado para ontem! Não podemos seguir tolerantes enquanto homens e mulheres seguem padecendo pelo ius puniendi do Estado. Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso. Devemos uns aos outros uma terrível lealdade.

 

Referências bibliográficas
ALIGHIERI, Dante — A Divina Comédia.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor — Memórias do Subsolo.

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