Opinião

Os desafios da jurisprudência de crise no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Renzzo Giaccomo Ronchi

    é juiz de Direito do TJ-MG doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Constitucional pelo IDP docente da Escola Judicial (Ejef) do TJ-MG e professor colaborador do mestrado em administração pública da UFVJM.

3 de dezembro de 2020, 7h11

Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal foi provocado pelo partido Rede Sustentabilidade, que ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, em face da Medida Provisória nº 936/2020, que criou o programa emergencial de manutenção do emprego e da renda e introduziu medidas trabalhistas complementares para enfrentar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, entre as quais a possibilidade de redução salarial e suspensão de contratos de trabalho mediante acordos individuais.

Na ocasião, ao ser sorteado o relator, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu parcialmente o pedido cautelar formulado na ADI nº 6.363/DF, determinando que os acordos individuais de redução de jornada e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho previstos na Medida Provisória nº 936/2020 somente fossem considerados válidos se os sindicatos de trabalhadores fossem notificados em até dez dias e se manifestassem sobre sua validade. Nesse prazo, a falta de manifestação representaria anuência com o acordo individual.

Em sua fundamentação, o ministro Lewandowski sustentou que a relação entre empregador e empregado é marcada por uma assimetria, de modo que a celebração de acordos individuais com redução dos direitos dos trabalhadores iria de encontro ao previsto nos artigos 7º, incisos VI, XII e XVI, e 8º, III e VI, da Constituição, cujas disposições preveem participação efetiva dos sindicatos, por meio de negociações coletivas, como forma de preservar a dignidade da pessoa e a valorização do trabalho humano.

Submetida a decisão liminar ao plenário da corte, nos termos do artigo 10 da Lei nº 9.868/1999, não foi referendada, tendo sido cassada por maioria de votos, ocasião em que prevaleceu a tese divergente aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, que votou pela eficácia integral da Medida Provisória nº 936/2020, autorizando a redução da jornada de trabalho e do salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho, por meio de acordos individuais, com a mera comunicação ao sindicato, independentemente da sua anuência.

Para o ministro Alexandre de Moraes, a exigência de atuação de sindicatos, por meio de negociações coletivas, geraria insegurança jurídica e aumentaria o risco de desemprego. Segundo ele, diante da excepcionalidade e da limitação temporal, a regra prevista na medida provisória está em conformidade com a proteção constitucional à dignidade do trabalho e à manutenção do emprego.

Acompanhando a divergência, votaram os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Dias Toffoli (então presidente), ao passo que ficaram vencidos, além do ministro Ricardo Lewandowski (relator), o ministro Edson Fachin e a ministra Rosa Weber, sendo que o ministro Celso de Mello, hoje aposentado, não participou do julgamento por força de licença médica.

Importante registrar que na data em que o julgamento foi concluído, 17 de abril, o país registrava 30.961 casos de Covid-19 e 1.956 óbitos, dados fornecidos pelas secretarias estaduais de saúde, sendo que dois dias depois, em 19 de abril, o Estado de São Paulo ultrapassava mil mortes causadas pela Covid-19, sendo esse o contexto crítico que o país atravessava com índice acentuado de óbitos e casos confirmados (na data de 23 de outubro o Brasil registrou 5,35 milhões de casos confirmados e 156,4 mil mortes) (BRASIL, 2020).

Conquanto os ministros que acompanharam a tese divergente tenham contribuído com pontos de vista importantes, chamou bastante atenção o voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes, o qual disse, já de início, que a Suprema Corte estava diante de um grande desafio constitucional.

Lembrando do julgamento da medida cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 9/DF, cujo contexto fático do apagão, naquele momento histórico, gerou grande insegurança jurídica para a época, o ministro advertiu que aquela excepcionalidade deveria ser recordada para iluminar o contexto atual, podendo ser catalogado como uma jurisprudência de crise, cuja expressão foi cunhada pelo tribunal constitucional português, que, para administrar uma severa crise econômica em Portugal em 2008, admitiu até mesmo a redução de remuneração de servidores públicos (PINHEIRO, 2014).

Segundo o ministro Gilmar Mendes, o contexto fático que acarretou naquela época o ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 9/DF, com pedido de medida cautelar, foi a falta de energia elétrica por falta d'água nas barragens, enquanto o contexto fático que provocou a edição da Medida Provisória nº 936/2020 versa sobre uma doença com contaminação intensa, gerando grave paralisação da economia, com repercussão direta no caixa dos Estados e municípios, com empresas desativando e desaparecendo em curto período, sem contar o número elevadíssimo de desempregos.

Na visão do ministro Gilmar, essa é uma situação extremamente grave, sendo esse o contexto que deve ser considerado no exame da Medida Provisória nº 936/2020. Não bastasse isso, as normas constitucionais ao longo do tempo vão incorporando as experiências, mas a pandemia da Covid-19, segundo ele, é uma lacuna, de modo que, invocando o professor alemão Peter Haberle, disse que o pensamento de possibilidades "abre suas perspectivas para 'novas' realidades, para o fato de a realidade de hoje poder corrigir a de ontem, especialmente a adaptação às necessidades do tempo, sem que se considere o novo como o melhor" (HABERLE, Peter, Zeit und Verfassung, apud BRASIL, 2020).

Essa teoria do pensamento de possibilidades, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, também seria defendida pelo constitucionalista italiano Gustavo Zagrebelski e pelo constitucionalista alemão Konrad Hesse e serviriam para evidenciar que os textos constitucionais podem ser incompletos e, por isso, precisam ser interpretados numa perspectiva de uma complementação de uma lacuna, tal como se deu em Portugal, que enfrentou uma grave crise financeira em 2008, adotando medidas sérias como a redução de salário de servidores públicos, cujo fundamento constitucional, à época indagado, foi uma norma não escrita baseada no estado de exceção financeira.

Assim, na perspectiva do ministro, aguardar a manifestação de sindicatos para referendar as providências previstas na Medida Provisória nº 936/2020 custaria o emprego de milhões de brasileiros, assim como a discussão posterior seria inútil (BRASIL, 2020).

Em linha de conclusão, o ministro Gilmar Mendes entendeu que o legislador da Medida Provisória nº 936/2020 foi cauteloso e proporcional ao grave momento de crise sanitária e econômica ditada pela pandemia da Covid-19, evitando a destruição das empresas e dos empregos, sendo um esforço para que não haja a eliminação do próprio sistema produtivo (BRASIL, 2020).

De fato, a solução dada pela Suprema Corte foi bastante proporcional se contextualizada à luz do sério momento de crise vivido pelo país em que a garantia de um direito naquele momento (participação dos sindicatos nos acordos entre empregados e empregadores) poderia colocar em xeque o próprio sistema produtivo previsto na Constituição.

Em artigo publicado no ano de 2013, o ministro Gilmar Mendes escreveu texto intitulado "Interpretação constitucional e 'pensamento de possibilidades'", no qual, àquela época, pensando sobre as chamadas lacunas constitucionais, compreendeu que o texto constitucional, enquanto ordenamento jurídico essencial, contém apenas as linhas básicas do estado e da sociedade, estabelecendo caminhos e limites (MENDES, 2013, pp. 142-143).

Invocando o pensamento de Konrad Hesse, Gilmar Mendes diz que a Constituição não pode ser confundida com uma regulação precisa e completa, não existindo, portanto, uma pretensão de completude do sistema jurídico constitucional, sendo esse o aspecto principal que permite que a Constituição contenha a flexibilidade necessária ao permanente desenvolvimento e, ainda, que o seu conteúdo "subsista aberto dentro do tempo" (MENDES, 2013, PP. 142-143).

Embora em seu artigo o ministro Gilmar Mendes tenha mencionado alguns casos como bons exemplos de aplicação do pensamento de possibilidades, fato é que nenhum deles teve a gravidade do caso enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363/DF.

Nesse sentido, não se discute que a Medida Provisória nº 936/2020 violou texto expresso do artigo 7º, inciso VI, da Constituição, mas é importante que se registre que a pandemia da Covid-19 também impôs restrição obrigatória a outros direitos fundamentais como, por exemplo, o direito de ir e vir no território nacional (artigo 5º, inciso XV), assim como também o direito de reunião (artigo 5º, inciso XVI), sendo que essas restrições, em muitas hipóteses, nem mesmo se deram por lei ou por ato normativo equivalente, mas por decretos editados ora por governadores, ora por prefeitos, com o propósito de preservar bens maiores como a vida e a saúde.

Nesse sentido, registre-se o julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341/DF, relator para acórdão ministro Edson Fachin, Pleno, DJe de 31/11/2020, no qual a Suprema Corte, preservando a ideia de um federalismo cooperativo, entendeu pela necessidade de conferir interpretação conforme ao §9º do artigo 3º da Lei nº 13.979/2020 (MP nº 926/2020), no sentido de preservar a competência concorrente dos Estados e municípios para definir a essencialidade dos serviços, não podendo essa atribuição ser exercida em caráter privativo pela União. Em sentido semelhante, cite-se o julgamento da medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 672/DF, relator ministro Alexandre de Moraes, Pleno, DJe de 29/10/2020, em que se reconheceu a competência concorrente dos Estados e suplementar dos municípios para adotarem todas as medidas necessárias para preservação da saúde durante a pandemia, independentemente de ato contrário do governo federal.

Por essas razões é que se torna pertinente relembrar o pensamento do constitucionalista italiano Gustavo Zagrebelsky, o qual, percebendo a dinâmica da vida e a maior complexidade do fenômeno jurídico em tempos atuais, sustentou a necessidade de um constitucionalismo fundado na ideia de uma ductilidade:

"La coexistência de valores y princípios, sobre la que hoy debe basarse necessariamente una Constitución para no renunciar a sus cometidos de unidad e integración y ao mismo tempo no hacerse incompatible com su base material plurarista, exige que cada uno de tales valores y princípios se asuma com carácter no absoluto, compatible com aquellos otros com los que debe convivir" (ZAGREBELSKY, 2011, pp. 14-15).

O ponto crucial da aplicação do pensamento de possibilidades (Haberle e Hesse) ou do pensamento de ductilidade constitucional (Zagrebelsky) é que não se pode fazê-la e admiti-la em toda e qualquer situação, sob pena de enfraquecimento dos direitos fundamentais e, por consequência, de erosão do estado democrático de direito.

No entanto, em situações de profunda adversidade constitucional, cuja magnitude possa comprometer a sobrevivência de valores maiores como dignidade da pessoa humana, vida e saúde, como a que se vivencia no estágio da pandemia da Covid-19, essa teoria é de grande relevância para sustentar a sobrevivência da sociedade, do Estado e das instituições.

O que torna legítima a decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal é a sua adequação com o princípio da proporcionalidade, pois a medida provisória, hoje convertida na Lei nº 14.020/2020, limitou a possibilidade desses acordos individuais ao prazo determinado de 90 dias, isto é, apenas enquanto durar a pandemia.

Assim, a decisão tomada pela Suprema Corte de forma alguma pode ser encarada como uma espécie de retrocesso social em termos de conquistas de direitos sociais, mas um esforço excepcional e inevitável para equacionar um momento crítico.

Não há um acervo de uma jurisprudência de crise e assim se espera porque, como bem pontuou o constitucionalista Cláudio de Souza Pereira Neto, "a inobservância contumaz, pelo Judiciário, dos limites interpretativos a que abrem os textos normativos é um dos elementos do atual processo de erosão do Estado democrático de Direito no Brasil" (SOUZA NETO, 2020, p. 203).

Não obstante, a teoria do pensamento de possibilidades, defendida por autores como Peter Haberle, Konrad Hesse e Gustavo Zagrebelsky (ductilidade constitucional) e invocada pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto no julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363/DF, parece sustentar, de forma coerente e proporcional, a opção tomada pela Suprema Corte, que assim constrói um marco teórico para solucionar crises semelhantes no futuro.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6363/DF. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Pleno, 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341/DF. Relator p/ acórdão ministro Edson Fachin. Pleno, 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672/DF. Relator ministro Alexandre de Moraes. Pleno, 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2238/DF. Relator ministro Alexandre de Moraes. Pleno, 2020.

MENDES, Gilmar. Interpretação constitucional e "pensamento de possibilidades". Apud COSTA, José Augusto Fontoura; ANDRADE, José Maria Arruda; MATSUO, Alexandra Mery Hansen (Orgs.). Direito: teoria e experiência: estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. São Paulo: Malheiros, 2013.

PINHEIRO, Alexandre Sousa. A jurisprudência da crise. Tribunal Constitucional Português (2011-2013). Observatório da jurisdição constitucional.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em crise no Brasil. Valores constitucionais. Antagonismo político e dinâmica institucional. Rio de Janeiro e São Paulo: editora Contracorrente, EdUERJ, 2020. Brasília: IDP, ano 7, nº 1, jan./jun. 2014.

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Madrid: editorial Trotta, 2011.

Autores

  • é juiz de Direito do TJ-MG, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Processo Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora na Argentina (UNLZ), pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas e membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional.

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