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O ANPP na audiência de custódia e o teatro dos horrores

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3 de dezembro de 2020, 21h23

No último dia 24, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) realizou sessão para apreciar a proposta do Ato Normativo nº 9.672, que tinha por finalidade alterar o teor do artigo 19 da Resolução nº 329/2020, editada por ocasião do estado de calamidade pública, em razão da pandemia da Covid-19.

A redação original do dispositivo proibia a realização das audiências de custódia por videoconferência nos seguintes termos: "É vedada a realização por videoconferência das audiências de custódia previstas nos artigos 287 e 310, ambos do Código Processual Penal, e na Resolução CNJ nº 213/2015".

A resolução foi editada em julho deste ano, quando o número de casos e taxas de contágio eram alarmantes, o que fez com que vários municípios brasileiros decretassem lockdown. Porém, curiosamente, passado o pior período, quando nove estados da federação já retomaram as audiências presencias e já se tem esperança concreta de vacinação, o debate foi novamente trazido à tona.

Por meio da Resolução nº 356/2020, passou-se a admitir a realização de audiência de custódia por videoconferência, o que, ao nosso sentir, desconfigura o instituto, que tem como umas das finalidades precípuas apurar a ocorrência de tortura, resquício do Brasil autoritário, que insiste em assombrar o tempo presente. Pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro aponta que três pessoas privadas de liberdade são torturadas, por dia, no Estado fluminense [1].

No entanto, o CNJ, em uma sessão destinada a um tema específico, cuja discussão apenas se justificou pela excepcionalidade do momento, alargou o debate, incluindo na pauta a possibilidade de na audiência de custódia ser formulada proposta de ANPP (acordo de não persecução penal). A matéria passou a estar prevista no §3º do artigo 19 da Resolução nº 329/2020:

"A participação do Ministério Público deverá ser assegurada, com intimação prévia e obrigatória, podendo propor, inclusive, o acordo de não persecução penal nas hipóteses previstas no artigo 28-A do Código de Processo Penal".

O teatro dos horrores, que se inicia com a deliberação sobre a possibilidade de audiência de custódia por videoconferência, prossegue com a inclusão da novidade acerca do ANPP na resolução, o tema propriamente desse artigo.

O ANPP, previsto no artigo 28-A do CPP, adentrou no ordenamento por meio da Lei nº 13.964/19, também chamada de pacote "anticrime". Em breves linhas, trata-se de acordo formulado pelo Ministério Público ao suspeito de um delito, que caso aceite as condições propostas, entre as quais há a exigência da confissão, terá extinta sua punibilidade (artigo 28-A, § 13 do CPP) após cumprir cumulativa ou alternativamente os requisitos elencados no artigo 28-A, I a V, do CPP.

Causa espanto que um tema que em nada se relaciona com a excepcionalidade que deu o tom à edição da Resolução nº 329/2020, tenha sido incluído na discussão. Aliás, até mesmo em razão da surpresa, as instituições interessadas que participaram daquela sessão, totalizando cinco, não puderam apresentar argumentos contrários a sua inclusão na resolução que se debatia. A inclusão no texto foi vertical e hierarquizada, passando ao largo o debate de ideias, essência do Estado democrático, que só será real se for conferido às partes os meios e o tempo para se prepararem, influenciando, assim, na controvérsia.

De todo modo, pelas razões que passaremos a explicar, ao nosso juízo é inviável que o ANPP seja formulado em sede de audiência de custódia.

A audiência de custódia foi implementada pela Resolução nº 213/15 do CNJ, efetivando um compromisso firmado pelo Estado brasileiro com organizações internacionais de direitos humanos que não era cumprido havia 23 anos.

A obrigatoriedade de a pessoa presa ser conduzida à presença de um juiz já era prevista no artigo 7º, 5, da CADH e no artigo 9º, 3, do PIDCP, que adentraram no ordenamento por meio, respectivamente, dos Decretos nº 678 e 592, ambos do ano de 1992.

Busca-se com a audiência de custódia controlar a atividade policial, analisando a licitude da prisão e a ocorrência de maus-tratos e/ou tortura, além de verificar se o custodiado tem condições de responder ao processo em liberdade.

Na audiência de custódia não se examina a veracidade dos fatos, mas tão somente a verossimilhança das alegações em sede policial, cotejando-as com as hipóteses flagranciais admitidas no artigo 302 do CPP. Por essa razão, não são ouvidas testemunhas, tampouco é conferida oportunidade de fala ao preso, que apenas é indagado quanto às circunstâncias da prisão e suas condições pessoais, como expressamente determina o artigo 6º da Resolução nº 29/2015 do TJ-RJ.

A partir do momento em que se admite ANPP na custódia, tal audiência se desnaturaliza, vez que passa a ser possível a colheita de provas relacionada ao fato que redundou na prisão do indiciado, através do interrogatório. Entretanto, a única prova passível de ser produzida nessa audiência interessará apenas à acusação e, diga-se de passagem, será promovida perante o Estado-juiz, sem acusação formal depositada em juízo, o que deforma o ato.

Mais que isso: caso não aceito o acordo de não persecução penal, de pronto o Ministério Público oferecerá denúncia em face do indiciado? A toda evidência a resposta é negativa, vez que naquele momento o inquérito policial mal começou, vale dizer, não há indícios suficientes de autoria e prova da existência do crime recolhidos contra o indiciado. Com efeito, se o Ministério Público não pode oferecer denúncia contra o indiciado na audiência de custódia, resta evidenciado que não está cumprido o que dispõe o caput do artigo 28-A do CPP, quando dita que o ANPP somente será oferecido "não sendo caso de arquivamento". Isso porque, à vista do auto de prisão em flagrante apenas, não pode o Parquet ser compelido a oferecer denúncia, já que será a investigação que se iniciou na véspera (considerando as 24 horas previstas no artigo 310 do CPP) que sinalizará para existência ou inexistência dos indícios de autoria e prova da existência do crime.

Sob outro olhar, há evidente inversão da distribuição do ônus probatório, vez que a alocação do ANPP na audiência de custódia exime o Parquet da obrigatoriedade de produzir prova da existência do crime e indícios de autoria, vez que bastará o indiciado confessar, sem qualquer investigação concluída, para se ter por suficiente aquela confissão como requisito autorizador do acordo.

Não fosse suficiente o argumento acima, há de se perguntar: como esperar que seja garantido o exercício do direito de defesa ao réu em sua amplitude (artigo 5º, LV da CR/88), diante do exíguo prazo de 24 horas para exame do caso, sem as peças necessárias que compõem o inquérito policial? De se notar, por relevante, que se um dos requisitos para a realização do ANPP é a confissão do indiciado, é preciso que a defesa tenha elementos para orientá-lo, em qualquer sentido for. Não é possível compactuar com uma orientação técnica às cegas, por nítida ofensa ao texto constitucional.

Para aqueles que acharam pouco, há outro argumento: como exercer a investigação defensiva, que poderá revelar, por exemplo, a existência de uma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade, que acarretará na absolvição réu, situação que lhe é mais vantajosa, no prazo de 24 horas?

O artigo 8º, 2, "c", da CADH, diz: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…) c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa". Como dizer que esse direito restará assegurado se ao indiciado e à sua defesa são conferidas meras 24 horas para exame do caso, investigação defensiva e tomada de decisão acerca do ANPP?

A audiência de custódia, criada como uma forma de efetivar os direitos do homem, caso admitida a realização do ANPP no seu âmbito, será um meio de se fomentar o desrespeito aos direitos humanos, vez que a sanha pela economia dos atos processuais, ampliando as atribuições do ato, terá o condão de causar vilipêndio a duração razoável do processo e a amplitude de defesa.

A audiência de custódia será transformada em um balcão de negociação, em Justiça fast food, pois ante a rapidez com que os atos se desenvolvem, restará à defesa e ao indiciado sopesar as vantagens e desvantagens do ANPP, como se a liberdade do cidadão fosse uma moeda de troca, vez que será sob a ameaça de manutenção do ergástulo, que a proposta será ofertada ao investigado, tornando-se conveniente para o preso confessar. 

Não é dado desconsiderar a alta carga de estresse a que está submetida a pessoa privada de liberdade naquele primeiro contato com o Estado-juiz, que ocorre na audiência de custódia, sobretudo se considerada a pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro antes citada, que retrata a violência exercida contra os presos, o que interfere no seu estado de ânimo.

Além disso, muitas vezes as audiências de custódia são realizadas em comarcas distintas do local onde o fato se deu, de modo que o preso sequer tem conhecimento de onde está e se sua família sabe de sua prisão. Na ocasião da audiência de custódia, o que os privados de liberdade mais desejam é que o momento o qual estão passando cesse o quanto antes, de modo que é possível que confessem atos que não condizem com a verdade, vendo a oferta como uma condição de resgate à liberdade.  

Perguntarão os catecúmenos no processo penal: mas a confissão não basta para se ter a certeza da prática delituosa? Se a confissão fosse suficiente e eximisse o Estado-Administração de investigar, não haveria espaço para a previsão do crime de autoacusação falsa no Código Penal. E mais: a confissão não é a rainha das provas e deve ser cotejada com as demais provas constantes da inquisa.

Tais constatações demonstram que eventual acordo anuído pelo preso em sede da audiência de custódia não será refletido, sendo uma escolha tomada às pressas, que como tal poderá não ser a mais acertada.

Ao que se vê, a surpresa e a falta de oportunidade de meios ao debate democrático, com paridade de armas, que se verificou na sessão pública do Conselho Nacional de Justiça, ganhará a tônica das audiências de custódia, caso mantida a possibilidade de propositura do ANPP.

Apesar dessas evidências já serem suficientes a impossibilitar o ANPP na audiência de custódia, a matéria vai muito além. O artigo 28-A, §10, do CPP estabelece que uma vez descumprido o acordo, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo o motivo da rescisão e oferecer a denúncia.

Com isso, teremos a nefasta situação em que a ação penal poderá ser deflagrada com base em uma confissão feita, em menos de 24 horas da lavratura do auto de prisão em flagrante, por uma pessoa em situações extremamente adversas, quando, não raro, que tenha sofrido torturas, ameaças e maus-tratos. No mais, completando o teatro dos horrores, provavelmente, como demonstra a experiência prática, serão arrolados como testemunhas os policiais, os mesmos que, no mais das vezes, praticaram os atos violentos contra o indiciado e que, evidentemente, nunca admitirão que empregaram tais meios quando da prisão.

Ou seja, a instrução criminal servirá apenas para ratificar uma situação inconstitucional, desumana e ilegal, afastando-se da busca da verdade processual, que é condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa, caracterizando-se, como ensina Ferrajoli (1997: 333) [2], pelos seguintes postulados: 1) a tese acusatória deve estar formulada segundo e conforme a norma; 2) a acusação deve estar corroborada pela prova colhida através de técnicas normativamente preestabelecidas; 3) deve ser sempre uma verdade passível de prova e oposição; 4) a dúvida, falta de acusação ou de provas ritualmente formadas impõem a prevalência da presunção de inocência e atribuição de falsidade formal ou processual às hipóteses acusatória.

Há outro fundamento para o rechaço do ANPP na audiência de custódia. O órgão do Ministério Público carece de atribuição e o órgão jurisdicional não tem competência para, respectivamente, propor e homologar o ANPP. Isso porque, quando se remete o auto de prisão em flagrante ao juízo para realização da audiência de custódia, encerrado o ato, os autos são remetidos para o juízo criminal competente, que aguarda a vinda da denúncia ou proposta do ANPP, ofertada pelo promotor natural, seguindo-se, com isso, as regras de competência fixadas pelo CPP no artigo 69 e seguintes. Logo, a resolução do CNJ que confere a possibilidade de oferta do ANPP na audiência de custódia atinge o princípio do juiz natural e do promotor natural, não tendo tal conselho, por mais poder que possua, a atribuição de alterar regras processuais de competência.

Como dito, não raro as audiências de custódia se desenvolvem em lugares diversos de onde se deu a prisão em flagrante. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, existem três centrais (Capital, Volta Redonda e Campos dos Goytacazes) que analisam os autos de prisão flagrante ocorridos em todo o Estado, que conta com 81 comarcas. Dessa feita, não pode, por resolução, modificar o CNJ regra de competência.

Com efeito, se ao órgão ministerial atuante na audiência custódia não é dado pugnar pelo arquivamento dos procedimentos investigativos, também não lhe é permitido apreciar o cabimento do ANPP. De igual modo, se o órgão jurisdicional investido do poder de presidir a audiência de custódia não pode arquivar os autos do inquérito policial, também porque quando da ocorrência da audiência o procedimento administrativo não se encerrou, não pode apreciar o acordo. 

Como fecho, imaginem tudo isso realizado por videoconferência. Aqui podemos rememorar Casara (2018: 37) [3]:

"Para utilizar a terminologia proposta por Flusser, pode-se identificar o sistema de Justiça criminal como um 'aparelho' destinado a fazer funcionar o 'programa' do espetáculo. Programa, vale dizer, adequado à tradição em que está inserido o ator-espectador: no caso brasileiro, um programa autoritário, feito para pessoas que se acostumaram com o autoritarismo, que acreditam na força em detrimento do conhecimento, para solucionar os mais diversos e complexos problemas sociais e que percebem os direitos fundamentais como obstáculos à eficiência do Estado e do mercado".

Avisamos aos navegantes que nos Estados Unidos o plea bargain que inspirou o ANPP se tornou instrumento para o Estado policial e fábrica de superencarceramento. A resolução do Conselho Nacional de Justiça nos autoriza a pensar que queremos seguir o mesmo caminho no Brasil. E temos pressa.

Fica a pergunta: a quem interessa esse teatro dos horrores?


[1] RJ: Denúncias apontam que três presos sofrem tortura a cada dia. Disponível em https://anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=41610. Consulta em 30.11.2020.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón — teoria del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez; Alfonso Ruiz Miguel; Juan Carlos Bayon Mochino; Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. 2 ed. Madrid, Trotta, 1997, p. 333.

[3] CASARA, Rubens R.R. Processo penal do espetáculo (e outros ensaios). 2ª Ed. Florianópolis, Tirant lo Blanch, 2018.

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