Opinião

Reflexões sobre a teoria da prova e a busca por 'verdades'

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3 de dezembro de 2020, 6h03

Em "Verdade, Verossimilhança e Probabilidade na Teoria Geral da Prova", Gisele Santos Fernandes Góes [1] provê um rico alicerce de definições por meio do qual se desenovelam as presentes reflexões. Conceitos triviais de dicionários a partir dos quais a Filosofia e a Filosofia do Direito fazem desabrochar as complexidades enlaçadas a tais ideias.

Como nos é apresentado de forma fundamentada, a verdade é um conceito que engloba diversos outros conceitos correlacionados. Por sua vez, a verossimilhança e a probabilidade seriam aspectos da verdade que se diferenciam pelo quanto correspondem em veracidade com aquilo que se tem como referência de "verdadeiro". Dessa forma, a verdade seria, em tese, um espectro idealizado que serve como referência.

A partir da fixação dessas noções, cumpre analisar a postura dogmática do magistrado. No caso, registra-se que não é inadequada uma postura dogmática pelo Poder Judiciário, uma vez que é essa postura que viabiliza a tomada de decisão. O oposto seria uma postura zetética, caracterizada pela permanente desconstrução e indagação de conceitos.

Tendo em vista a predominância do modelo de civil law no Brasil, de fato uma postura dogmática é adequada. Entretanto, em certas oportunidades uma postura zetética não é absolutamente equivocada. Isso porque o Código de Processo Civil trouxe ao Direito brasileiro um sistema de precedentes, pretensamente similar aos países que utilizam o sistema da common law.

Nesse cenário cumpre destacar que o Brasil buscou uma espécie de modelo misto, a princípio em busca de suprir uma busca por produtividade no funcionamento Judiciário. Isso em razão da latente intenção de produção em massa de sentenças como se estas fossem um produto, visando ao contentamento dos supostos consumidores do Judiciário — quais sejam, as partes.

Há algum tempo o CNJ é criticado pelas suas metas de produtividade e aparentes premiações de varas que conseguem atingir determinados números em determinado tempo, o que demonstra um caráter quase industrial da cobrança por produção de decisões e "solução" de casos. O CPC corroborou com essa ideia com o sistema de precedentes.

Entretanto, os precedentes brasileiros não são erigidos da mesma forma realizada por décadas nos sistemas de common law. Nesses países há um trabalho voltado para a produção de precedentes cuja preocupação é mais qualitativa que quantitativa. No Brasil se verifica o oposto, uma vez que os precedentes são originados por meio de uma análise quantitativa da utilização de determinada decisão [2].

Destarte, uma postura zetética pelo Poder Judiciário brasileiro possibilitaria uma maior aproximação ao sistema de precedentes da common law, embora acabasse provocando um desalinho com as pretensões de produtividade que permeiam o sistema de Justiça brasileiro.

Nesse aspecto, as lides seriam analisadas mais adequadamente, os argumentos das partes seriam apreciados com maior atenção e as provas seriam, se não melhor avaliadas, ao menos mais discutidas. De fato, um sistema de Justiça mais artesanal é mais lento, mas responde melhor às demandas das partes e possibilita a construção de precedentes mais estáveis.

Ademais, um Judiciário mais aberto para apreciação das demandas das partes de forma mais receptiva atingiria, ao menos em algum nível, a pretensão de um processo civil verdadeiramente democrático. Isso em vista de que um processo democrático envolve a participação ativa dos indivíduos, e não apenas uma atuação ostensiva do julgador, culturalmente tido como a coluna vertebral do processo no Brasil.

Por "democrático" entende-se alguma igualdade de atuação e importância de todos os envolvidos no processo. Nesse sentido, todos deveriam ser ouvidos de forma adequada, o que incluiria as suas manifestações e suas propostas de decisão, abrindo espaço para uma melhor edificação jurisprudencial nas cortes brasileiras.

Tendo isso em vista, a autora demonstra que mostra-se propícia a zetética no sentido de ser um instrumento para alcançar a decisão judicial, mas não a sua finalidade. Para tanto o julgador poderia lançar mão do que chama de zetética empírica, referente à medicina legal, ou a zetética analítica, tal como a teoria geral do Direito.

Visando alcançar a sentença, a zetética parece adequada, mas para o "fechamento" do caso é imprescindível que se tente ao máximo oferecer uma resposta como um ponto final. Mesmo porque o Judiciário não é buscado para resolver lides para deixar respostas em aberto.

Para tanto, destacam-se as posturas dogmáticas sintática, semântica e/ou pragmática. A primeira é referente ao formalismo, à subsunção da norma ao caso. Já a postura semântica é voltada para a teoria da interpretação dos significados. Enquanto a pragmática diz respeito ao campo da argumentação jurídica.

Assim, a prova e a tentativa de fazê-la representa, como é sabido, a argumentação jurídica. Dessa forma, visando à prestação da tutela jurisdicional, enfatiza-se a percepção pragmática. A partir dessa análise é que se encaminha para o ponto central de discussão a respeito de para que serve a prova no processo. A princípio fixa-se que a prova reside no campo da teoria da decisão, uma vez que, numa perspectiva genérica, serve para demonstrar a correlação entre os fatos e o direito.

Desde a origem da prova no processo, tem início a exposição de argumentação jurídica direcionada para a formulação de um discurso decisório, naturalmente avaliativo e ideológico. É com a prova que se possibilita a composição de linhas que conectam os fatos alegados, o direito pleiteado e a prova, visando à obtenção de uma decisão judicial fundamentada.

Entretanto, o que se destaca é: não importa quais definições para a concepção de "prova" sejam adotadas, fato é que a verdade absoluta é inalcançável, de modo que o objeto real do processo seriam a verossimilhança ou a probabilidade. As provas se prestam para embasar um exercício cognitivo voltado para o convencimento do magistrado dos fatos ocorridos e do Direito, mas jamais para a demonstração de uma verdade absoluta. Isso porque os elementos de provas seriam mais "migalhas" de um momento perdido no espaço-tempo a respeito do qual apenas é possível a ponderação de verossimilitudes.

De fato, a discussão de ocorrências pretéritas jamais será a reprodução do evento em si. Mesmo a segunda ou terceira reprodução de um filme, por exemplo, jamais serão iguais, e muito menos serão fidedignas ao momento de criação das cenas que o compõem — considerando as ressalvas inerentes à natural imperfeição de uma comparação.

Porquanto certezas são inacessíveis, cabe às partes se servirem das provas para a elaboração de argumentos que correspondam ao direito buscado, dentro dos limites legais. Dessa forma, a prova não pertence àquele que a apresentou, mas ao processo, dela as partes se utilizam para um pretenso direcionamento da forma de julgar do magistrado. Como nenhuma das partes possui a prova como sua, nem é detentora da verdade absoluta inatingível, ambas podem questionar e falsear as alegações umas das outras.

Nesse sentido, a prova abordada num processo permite ao que a autora chama de verdade provável. Ou seja, na impossibilidade de atingir uma verdade absoluta, é suficiente a verificação de uma verdade provável, de forma que a abstração de "verdade real" é naturalmente substituída, na prática, por aquilo que mais se aproxima do real ocorrido.

Em especial, ressalta-se a abordagem de Cândido Rangel Dinamarco, apresentada por Góes. A passagem colacionada evidencia a questão da verdade provável uma vez que, no processo, é aceitável demonstrar que a prova é suficiente para a formulação de uma convicção razoável, uma vez que o ser humano é naturalmente incapaz de representar uma verdade absoluta.  Por conseguinte, o Direito não tem por objeto verdades, mas "probabilidades muito qualificadas", em razão da limitação dos indivíduos que o compõem.

A esse respeito cumpre trazer a lume o que aponta Susan Haack, que utiliza como exemplo a forma como um júri é endereçado para que formule sua decisão. Nesse exemplo, Haack enfatiza que os jurados são chamados a decidir "com base na evidência apresentada pelas partes" e em nenhum momento fala-se em alguma verdade ideal que deve ser encontrada. Inclusive, provas que a princípio demonstram algum grau maior de certeza e de isenção quanto a influências opinativas também admitem essa abordagem

Em "Trial and Error: The Supreme Court’s Philosophy of Science" [3], Haack menciona os métodos de Frye e de Daubert, que seriam formas de identificar a adequação de uma prova científica ao caso em que se apresenta. Os métodos são originados de processos anteriores em que ocorram discussões sobre a admissibilidade de provas científicas e depoimentos de peritos (experts).

Ressalta-se que, a princípio, uma prova com um teor científico carrega algum peso de maior seriedade ou confiabilidade, tanto que é muito utilizada sempre que a ocasião permitir, e a forma como esses métodos questionam e falseiam o método científico utilizado para a apresentação de determinada prova judicial.

A discussão feita com esses métodos permite relembrar uma característica da ciência que frequentemente é esquecida, de que não há verdade absoluta nem mesmo no âmbito científico. Ainda que esse meio atue com experimentações e estudos respeitáveis — ao menos em parte desse meio —, não há donos da verdade ou alguém que tenha razão absoluta.

Pelo contrário, o próprio meio científico subsiste com base no surgimento constante de questionamentos e ausência de verdades. A busca pela verdade e, consequentemente, pelo conhecimento é o que dá vida ao meio científico. Nesse sentido, a existência de verdades absolutas levaria ao óbito das ciências, que perderiam a sua razão de ser.

Da mesma forma, o Direito também se beneficia da impossibilidade de alcançar alguma verdade, pois assim há espaço para diversas discussões e apreciação de inúmeros pontos de vista, argumentações e formas de perceber a realidade. Em razão disso que é incompatível com o meio jurídico a produção em massa de decisões que pretendem "encerrar" um assunto e apenas responder as partes o mais rápido possível para alcançar determinada meta de produtividade dentro de um período.

Nessa senda, cumpre ao julgador, em tese, apreciar devidamente a lide posta e valorar devidamente as provas apresentadas ao motivar a sua decisão, como é expresso constitucionalmente e que em diversas situações não é observado. Eis uma problemática recorrente abordada na teoria da decisão, sobre o momento em que o magistrado formula o seu juízo.

As provas deveriam servir como suportes para uma tentativa de aproximação da verdade, por meio da verificação do suporte probatório e do nexo causal demonstrado nas alegações apresentadas pelas partes. Contudo, não raro o julgador seleciona determinadas provas e alegações que o convenceram e proferem uma decisão sem apresentar o porquê de outra prova e outra alegação não ter o mesmo efeito.

Tal estilo recorrente de funcionamento Judiciário de certa forma aniquila o caráter democrático do processo. Isso porque o magistrado resume o julgamento de um pleito com base na sua "convicção" — termo em recorrente discussão no direito brasileiro —, e não no conjunto probatório e argumentativo presente nos autos.

Esse problema decisório, combinado com o anteriormente mencionado sistema de precedentes "à brasileira", configuram como alguns dos diversos empecilhos às pretensões de alta produtividade da Justiça brasileira. Como aduzido, os precedentes "quantitativos" evidenciam um prestígio pelo julgamento rápido e em grandes quantidades.

Por sua vez, proferir uma sentença que não esgota todos os pontos trazidos em primeira instância também é um fator de descontentamento das partes e que gera uma maior devolução de demandas para os tribunais. Evidentemente que não se pretende dar cabo aos recursos, haja vista a natureza de litigiosa do ser humano, mas seria ao menos possível uma melhor estruturação da jurisprudência brasileira.

Isso porque, tanto no processo penal, quanto no processo civil, um bom suporte probatório com alegações bem construídas e adequadamente abordadas eventualmente determinam o seu bom andamento. Indiscutivelmente, é essencial uma discussão de provas efetivamente democrática, aberta para as partes e devidamente apreciada pelo julgador.

Em tempo, argumenta-se que as metas do CNJ e formas de funcionamento judiciário de uniformização de decisões seriam instrumentos eficientes para solucionar, ao menos em parte, o problema da demora na tramitação processual e do excesso de processos. De fato, essa lógica não é completamente equivocada, visto que é um problema de algum tempo tanto a demora quanto a quantia de processos, porém as soluções apresentadas carecem de vários aprimoramentos.

A esse respeito cabe sugerir uma atenção a um aspecto positivo da inteligência artificial no Judiciário, como Alexandre Morais da Rosa e Bárbara Guasque apresentaram no artigo "O avanço da disrupção nos tribunais brasileiros" [4], no qual são enumerados os principais mecanismos em uso no Brasil. Evidentemente, todo sistema tem seus defeitos e seus problemas a serem resolvidos ao longo do percurso, mas os instrumentos apresentados parecem boas ferramentas para auxiliar no funcionamento do Judiciário brasileiro.

Muito se discute sobre o uso da inteligência artificial e sobre quem ou como se dará a programação dos softwares, mas há que se reconhecer a utilidade desses sistemas mais simples responsáveis por tarefas mais mecânicas e repetitivas no cotidiano de quem trabalha no sistema Judiciário. Nesse sentido, é possível vislumbrar que a utilização de inteligência artificial, mesmo que fraca, colabora com uma maior democratização do processo, visto que possibilita aos indivíduos envolvidos nas atividades processuais uma melhor otimização do tempo, voltando seus empenhos para questões de fato edificantes para o cenário jurídico.

 


[1] GÓES, Gisele Santos Fernandes. Verdade, verossimilhança e probabilidade na teoria geral da prova. Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 6, n. 33, jan./fev. 2005.

[2] SCHELEDER, Adriana Fasolo Pilati; NOSCHANG, Patrícia Grazziotini. PRECEDENTES E JURISPRUDÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO: uma distinção necessária a partir dos sistemas jurídicos de common law e civil law | doi. Revista da Faculdade de Direito da Ufmg, [S.L.], n. 72, p. 23-52, 18 dez. 2018. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. http://dx.doi.org/10.12818/p.0304-2340.2018v72p23.

[3] HAACK, Susan. Trial and Error: the supreme court’s philosophy of science. American Journal Of Public Health, [S.L.], v. 95, n. 1, p. 66-73, jul. 2005. American Public Health Association. http://dx.doi.org/10.2105/ajph.2004.044529.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre; GUASQUE, Bárbara. O avanço da disrupção nos tribunais brasileiros. In: NUNES, Dierle et al. Inteligência artificial e direito processual. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 65-82.

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