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Empresa de transporte não precisa indenizar passageira assediada, diz STJ

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3 de dezembro de 2020, 19h28

Empresa de transporte coletivo não tem responsabilidade por atos libidinosos praticados dentro de seus veículos. Nessas hipóteses, o assédio deve ser considerado ato de terceiro alheio à atividade desempenhada, sem conexão com aos riscos a ela ligados e excludente da responsabilidade de pagar indenização por danos morais.

Lucas Pricken
Empresas de transporte coletivo não podem ser transformadas em seguradoras universais por atos de terceiro, disse Raul Araújo
Lucas Pricken

Essa foi a conclusão alcançada, por maioria, pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento encerrado nesta quinta-feira (3/12). O colegiado julgou em conjunto dois casos em que os assédios foram cometidos em estação da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), em São Paulo, e em ônibus em uma cidade da Paraíba.

Em ambos os casos, as empresas alegavam que não poderiam ser condenadas a pagar indenização por danos morais decorrentes de atos que não possuem ligação com a natureza do serviço prestado.

Além disso, alegaram que tomaram as providências cabíveis em cada caso. Na CPTM, o assediador foi identificado pela vítima e detido por guardas, que o encaminharam a uma delegacia para registrar a ocorrência. Na Paraíba, afastou o sujeito da passageira, desembarcando-o na cidade mais próxima do ocorrido.

Prevaleceu a maioria formada pelos ministros Raul Araújo, Marco Buzzi, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze.

Para eles, não há como responsabilizar as transportadoras por eventos que nada têm a ver com o serviço prestado, não podem ser previstos e não dependem de sua atuação para a ocorrência.

A decisão realinha a jurisprudência do STJ no sentido de as empresas de transporte não serem responsabilizadas por eventos que nada têm a ver com o serviço prestado ou que sequer podem ser previstos. É o caso, por exemplo, de passageiros assaltados no veículo ou que sofrem danos por objetos atirados de fora do mesmo.

Rafael L.
Não cabe ao Judiciário imputar uma responsabilidade que o próprio debate político não previu, disse ministro Buzzi
Rafael L.

A 3ª Turma, por maioria, vinha desafiando esse entendimento, em situações em que as ocorrências de abuso passam a ser tão reiteradas — como mostra o noticiário nacional — que deixa passa a integrar o risco da atividade de transporte.

Foi assim que votou a ministra Nancy Andrighi, que ficou vencida em companhia dos ministros Luís Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro.

Imprevisível e inevitável
Os votos vencedores nos dois processos foram feitos pelos ministros Raul Araújo e Marco Buzzi, com base na legislação, jurisprudência e doutrina sobre o tema. O ministro Raul destacou que não há meio de evitar a ocorrência do assédio, pois se consuma em fração de segundos em locais vastos e por vezes aglomerados.

É considerado crime inevitável, quando muito previsível em tese, mas com alto grau de generalização. Só quem sabe que vai praticar é o próprio criminoso. Portanto, condenar as empresas de transporte a indenizar por atos desse jaez seria o mesmo de convertê-las em seguradora universal.

Já o ministro Buzzi destacou que essas ocorrências foram levadas em conta pelo Congresso Nacional ao editar a Lei 13.718/2018, que criminaliza a importunação sexual, mas que não alterou a normatividade civil sobre o tema. Por isso, é possível concluir que em momento algum o Estado pretendeu transferir ao particular o ônus de vigiar e indenizar ato ilícito alheio à possibilidade real de controle.

Gustavo Lima/STJ
Para ministra Nancy Andrighi, assédio fere a incolumidade que o contrato de transporte obriga as empresas a proteger
Gustavo Lima/STJ

"Não é possível ao Judiciário imputar uma responsabilidade por fato exclusivo de terceiro às concessionárias se o próprio debate político não previu tal possibilidade", disse o ministro Buzzi. "É um problema de cunho cultural e social, que nem mesmo punitivismo e o encarceramento em massa tende a resolver, pois somente a mudança de mentalidade e educação pode alterar esse quadro", acrescentou.

Risco do contrato
Relatora de uma das ações julgadas, Andrighi se posicionou de maneira oposta quando votou, em 9 de setembro. Ela destacou que é da natureza do contrato de transporte a denominada cláusula de incolumidade, pela qual se impõe ao transportador, mesmo que implicitamente, o dever de zelar pela incolumidade do passageiro, levando-o a salvo até o destino.

Para a ministra, é inegável que a vítima do assédio sexual sofre evidente abalo em sua incolumidade físico-psíquica, cujos danos devem ser reparados pela prestadora do serviço de transporte de passageiros. Não raro, a mulher assediada precisa voltar cotidianamente ao local do assédio e enfrentar o próprio assediador nas exatas mesmas condições.

Em seu voto, ela também aponta que a questão da violação da liberdade sexual de mulheres em espaço público é cultural. Mas que as condições dos serviços de transporte — superlotados e de baixa qualidade — tem concorrido para a causa do assédio, tornando-se mais um risco da atividade a qual todos os passageiros, mas especialmente as mulheres, tornam-se vítimas.

"O ciclo histórico que estamos presenciando exige um passo firme e corajoso, muitas vezes contra uma doutrina e uma jurisprudência consolidadas. É papel do julgador, sempre olhar cuidadoso, tratar do abalo psíquico decorrente de experiências traumáticas ocorridas durante o contrato de transporte", disse. "Não pode um ministro assumir postura resignada e comodista. Deve questionar a jurisprudência", acrescentou.

REsp 1.853.361
REsp 1.833.722

 

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