Opinião

Pau que dá em juiz de garantias não dá em custódia virtual?

Autores

  • Eduardo Januário Newton

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

2 de dezembro de 2020, 6h34

Ainda que de forma sucinta, o presente texto visa a examinar a recente descaracterização da audiência de custódia promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça. No último dia 24 de novembro, a comunidade jurídica foi surpreendida com a aprovação do Ato Normativo nº 0009672-61.2020 pelo CNJ, no qual autorizou-se a realização das audiências de custódia por intermédio de videoconferência, em razão da pandemia.

Esse ato normativo se originou da provocação da AMB, que, inclusive, na página de sua presidenta em uma rede social, chegou a comemorar como uma vitória, pois o sistema de Justiça está preparado com seus meios digitais para realizar a medida [1] (a custódia virtual). Aliás, essa provocação ao CNJ deve ser compreendida em um processo já em curso de busca da efetivação de uma custódia virtual, vide a aprovação do Enunciado 16 da Jornada de Direito Penal e Processo Penal do CJF [2]. Não se pode negar a resistência de mais de 70 entidades, entre elas a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e de outros Estados, que enviaram ofício ao presidente do CNJ repudiando a realização de custódia virtual.

O mencionado ato normativo determina, como regra preferencial, que as audiências de custódia sejam realizadas presencialmente [3]. Entretanto, em restando impossível sua ocorrência presencial no prazo de 24 horas, resta autorizada a utilização do sistema de videoconferência para sua realização. Essa excepcionalidade teve como fundamento os tempos pandêmicos que estamos vivenciando.

Concorda-se que vivenciamos uma fase excepcional de pandemia e que o processo penal deve se valer dos avanços tecnológicos para garantir a eficiência e celeridade processual. Todavia, a possibilidade de realização de custódia por videoconferência não passa pelos filtros constitucionais e convencionais [4] que regem a matéria, pois não se tem como garantir adequadamente os objetivos das audiências de custódia de forma virtual. O princípio da legalidade não pode ser desprezado. As normas convencionais e o CPP mencionam a presença do preso, o que, pela própria lógica, implica no comparecimento físico, e não de uma imagem em tela de computador.

Outrossim, coadunamos com as palavras do conselheiro do CNJ André Coutinho, que disse, por ocasião do julgamento do Ato Normativo nº 0009672-61.2020:

"A expressão 'conduzir à presença de um juiz', utilizada na norma, busca deixar claro que a pessoa deve ser apresentada fisicamente ao magistrado no mesmo local, e não por meio remoto".

Não se está a "inventar a roda", mas, ainda que seja superada essa questão, é preciso ponderar que o uso de videoconferência colocará em risco algo muito além que os direitos das pessoas custodiadas — em especial a apuração da ocorrência de tortura ou maus-tratos —, colocará em risco o fundamento da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, o próprio Estado democrático de Direito. Há que se recordar, por oportuno, que "o núcleo essencial da decisão com força vinculante tomada na medida cautelar da ADPF 347 é justamente a proteção à dignidade da pessoa humana contra as constantes, intensas e graves violações perpetradas pelos aparatos de poder contra as pessoas privadas de liberdade" [5].

Colacionamos excerto do voto do ministro Dias Toffoli, nos autos do Ato Normativo nº 0004117-63.2020.2.00.0000: "Audiência de custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a sua prisão".

O ato normativo expõe a incoerência de duas decisões do atual presidente do STF, no que se refere ao prazo para a realização da audiência de custódia [6]: por um lado, quando da apreciação da medida cautelar na ADPF nº 347, o ministro Luiz Fux não apontou qualquer problema na realização da audiência de custódia; por outro, essa questão se mostrou fundamental para conceder liminar na ADI nº 6.305 e, assim, suspender a eficácia do artigo 310, §4º, CPP.

Pois bem, agora a temática temporal volta a ensejar preocupação, tanto que justificaria a realização da modalidade virtual da audiência de custódia? Entretanto, há poucos dias, o STF indeferiu liminarmente o HC coletivo 194.163, que buscava a observância do prazo de 24 horas para cumprimento do alvará de soltura. Como fica a urgência? Em 31 de julho, ou seja, há cerca de quatro meses, o STF recebeu a Reclamação nº 43.833, que trata da ausência de verificação de integridade física e moral do custodiado no prazo de 24 horas de sua prisão. Até o momento não apreciou sequer a liminar requerida. Onde a urgência? Como se compatibilizar essa instabilidade de entendimentos, incoerência de decisões e ausência de integridade de jurisprudência com o disposto no artigo 926, CPP?

É preciso ir mais longe: e se não realizada, ainda que por videoconferência a audiência de custódia, será hipótese de relaxamento? Alguém duvida que se trata de uma argumentação performática e que será dada a mesma solução conferida ao artigo 316, parágrafo único, CPP?

É que o processo penal, nos artigos que garantem o contraditório, ampla defesa e a proteção dos direitos da pessoa presa, virou "recomendação", permite "flexibilização diante da realidade fática", há que se perquirir o "prejuízo" e a exigência de observância por parte da defesa é "chincana processual".

Visando amenizar os prejuízos das custódias por videoconferência, o Ato Normativo nº 0009672-61.2020 conferiu aos presos o direito de permanecer sozinho na sala virtual de audiência, sendo-lhes facultado o acompanhamento de defensor público ou advogado.

Pergunta-se: de onde foi extraída a competência legislativa do CNJ para tratar de matéria processual? A videoconferência se encontra prevista no CPP e não prevê a figura do réu isolado.

O ato do CNJ avança e, a despeito de efetivar "garantias" do custodiado, determina que o isolamento da pessoa presa seja garantido pela colocação de câmeras externas à sala e, internamente à sala, por meio de câmeras 360 graus ou e de mais de uma câmera simultaneamente, viabilizando a visualização integral do espaço durante a realização do ato.

Ainda com o intuito de se atingir o êxito da audiência de custódia, a integridade física do preso será aferida mediante prévia submissão do custodia a exame de corpo de delito, ou seja, realizado antes do ato.

Partindo do pressuposto de que as pessoas se encontram encarceradas em delegacias ou unidades prisionais, não é ilógico se afirmar, com todas as letras, que o CNJ está criando despesas para o Poder Executivo, poder independente e autônomo, tais com compra de câmeras de monitoramento, equipamentos a serem utilizados junto com as câmeras, restruturação da informática e internet, estruturação das perícias para a realização de exames de corpo de delito, tudo isso sem prévia dotação orçamentária.

Ora, mas foi justamente com este fundamento que o ministro Fux concedeu a medida cautelar na ADI 6.299, determinando a suspensão sine die da implantação do juiz das garantias:

"Percebe-se que os dispositivos que instituíram o juiz de garantias violaram diretamente os artigos 169 e 99 da Constituição, na medida em que o primeiro dispositivo exige prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal, e o segundo garante autonomia orçamentária ao Poder Judiciário (…)é inegável que a implementação do juízo das garantias causa impacto orçamentário de grande monta ao Poder Judiciário, especialmente com os deslocamentos funcionais de magistrados, os necessários incremento dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia da informação correlatas, as reestruturações e as redistribuições de recursos humanos e materiais…".

O Poder Legislativo não pode implementar lei que cause impacto orçamentário no Poder Judiciário, sem prévia dotação orçamentária, mas órgão administrativo do Poder Judiciário pode implementar ato normativo que cause impacto orçamentário no Poder Executivo sem prévia dotação orçamentária? Alô, AGU!! Alô, PGEs? É isso mesmo?

Impende ainda um questionamento: queremos um devido processo legal meramente formal ou um devido processo legal substancial? Será que os objetivos das audiências de custódia serão realmente alcançados no modelo virtual?

Segundo Kaufmann [7], o sentido do Direito ou ratio iuris resvala-se na adequação recíproca entre realidade e valor, cujo mediador é a analogia, que autoriza a aplicação do Direito ao caso concreto a partir do processo situado entre a semelhança e a diferença dos elementos aptos a integrar um específico processo de concretização normativa.

Pensamos que as audiências por videoconferência não são suficientes para concretizar o sentido da norma, que é a apresentação física do preso — e não virtual — à presença de um juiz para: a) verificação de eventual ocorrência de maus tratos e (ou) tortura; b) análise da (i)legalidade / (des)necessidade de sua prisão.

Embora o Código de Processo Penal (artigos 185, §2°, e 222, §3°) autorize a utilização de videoconferência em atos processuais de ações penais, é preciso ponderar que tais disposições não são cabíveis à audiência de custódia, em razão das particularidades deste ato processual.

É da essência das audiências de custódia o comparecimento pessoal do preso à presença do magistrado. É válido ressaltar que autuado é sujeito de direitos, e não mero objeto de prova. A sua ausência física nas custódias compromete sua comunicação direta com o defensor técnico, que nem sempre poderá se dirigir para o local onde se encontra o preso. Em que pese lhe seja assegurada o direito a uma entrevista reservada, não se tem garantia alguma do sigilo dessa conversa. Além disso, o autuado fica impossibilitado de ter contato com seu defensor público/advogado durante a sua entrevista.

Ponderamos também que a retórica presencial é bem mais significativa que uma sustentação remota, mormente porque sabemos que a expressão verbal é apenas uma das nuances da comunicação humana.

Vamos além: como se pode, por exemplo, mediante vídeo, se constatar marcas de maus tratos ou tortura? É bem verdade que o Ato Normativo nº 0009672-61.2020, como já anteriormente mencionado, assegura ao preso a realização de exame de corpo de delito antes da audiência, mas cumpre salientar que nem todos os atos de tortura deixam sinais aparentes. Ademais, é cediço que vigora no Brasil um verdadeiro estado de negação sobre a possibilidade de violência policial [8]. A soma desses fatores resvala obstáculos para apuração de maus tratos, um dos objetivos traçados pelos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, e dos quais o Brasil é signatário, para as audiências de custódia.

Ressaltamos ainda "um cânone interpretativo válido para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a saber: a regra pro homine; logo, não deveria se mostrar possível a adoção de uma interpretação da norma convencional que viesse a limitar a fruição de um direito" [9].

Em arremate, acreditamos que a realização de custódia por videoconferência não encontra guarida em um processo penal humanitário, cujas diretrizes constitucionais e convencionais buscam sempre a máxima eficácia dos direitos humanos. Somente as audiências de custódia presenciais servem como filtro moderador para evita prisões desnecessárias e coibir maus tratos e torturas. Destarte, a Defensoria Pública, enquanto instituição pública de defesa e com a missão constitucional de promover dos direitos humanos, não pode coadunar com o novo posicionamento do CNJ. Nessa atual quadra histórica, em que a descaracterização da audiência de custódia é celebrada como uma vitória, nunca se deve esquecer o disposto no artigo 102, inciso I, alínea "r", Constituição da República.


[2] "Excepcionalmente e de forma fundamentada, nos casos em que se faça inviável a realização presencial do ato, é possível a realização de audiência de custódia por sistema de videoconferência".

[3] Pontua-se que as audiências de custódia na modalidade presencial foram retomadas até então em nove estados da federação.

[4] A audiência de custódia está prevista no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no artigo 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil em 1992. A Lei 13.964/2019 também fez previsão expressa das audiências de custódia no Código de Processo Penal brasileiro.

[5] ROCHA, Jorge Bheron; NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. ALVARÁ DE QUASE-SOLTURA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. In Empório do Direito. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/alvara-de-quase-soltura-no-ordenamento-juridico-brasileiro>. Acesso em 25.11.2020.

[6] NEWTON, Eduardo Januário. Decisão de Fux suspendendo audiência de custódia em 24h foi incorreta. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-25/eduardo-newton-suspensao-audiencias-custodia-foi-incorreta.

[7] KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 5. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 187.

[8] SEMER, Marcelo. Sentenciado o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p.113-119.

[9] NEWTON, Eduardo Januário. Por que nós ainda devemos problematizar a audiência de custódia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-07/newton-devemos-problematizar-audiencia-custodia.

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