Escritos de Mulher

Violência institucional contra a mulher: uma abordagem psicojurídica

Autores

  • Izabella Borges

    é advogada criminalista.

  • Tamara Dias Brockhausen

    é psicóloga mestre pela USP com tema de dissertação em Psicologia jurídica especialista em clínica psicanalítica e psicopatologia pela PUC/COGEAE. Atua como Assistente Técnica e Perita Ad Hoc na capital. Professora em cursos de capacitação profissional na área da psicologia jurídica. Autora de artigos e livros nacionais e internacionais com interface psicologia e direito.

2 de dezembro de 2020, 16h45

As últimas semanas têm sido dedicadas ao ativismo pelo fim da violência contra a mulher, marcado pelo simbólico início no dia 25 de novembro.

Spacca
As formas de violências que submetem mulheres são muitas, e pauta constante — como não poderia deixar de ser , mas um caso recente que tomou conta das mídias no último mês trouxe a necessária discussão sobre a violência contra a mulher para dentro das estruturas das esferas públicas.

É sobre a violência institucional, perpetrada por agentes públicos no atendimento da mulher em situação de violência que se está a tecer estas breves linhas.

Poder-se-ia começar estes escritos mencionando que mulheres em todo o país são humilhadas ao reunir o que ainda tem de dignidade para conseguir denunciar. Contudo, há caso bastante popular que se pode mencionar com fins de exemplificar de forma mais concreta o que tantas mulheres passam a cada instante no país.

Divulgação
Se está a falar sobre Mariana Ferrer, realocada à condição de culpada em plena audiência de instrução e julgamento do homem que supostamente a violou.

Humilhada por agentes públicos que permitiram o achincalhamento de sua dignidade, ouviu comentários misóginos empregados em estrutura retórica voltada a justificar que se alguma violência Mariana sofreu, certamente haveria de ter motivo, fossem poses fotográficas vistas de formas estereotipadas, ou comportamento dito insinuante, o que se fez foi deixar bem fincado que violentas reações masculinas podem ser culpa da mulher, mas que não passa de falácia repugnante que merece ser duramente rechaçada.

A cena dantesca assistida na fatídica audiência cuja gravação foi veiculada na mídia nacional nos mostra que há muito o que se pensar e fazer para conter práticas selvagens em completa dissonância com os mais básicos direitos humanos.

Para além de análises voltadas ao mérito do caso, se teria havido ou não o crime de estupro, ressoa límpido que o mesmo sistema estruturado para proteger e reparar as vítimas, não pode, por qualquer via que se olhe, reproduzir aquilo que se propõe tratar.

Isso porque enquanto mulheres forem interrogadas ao decidir denunciar, desestimuladas a falar por terem suas versões classificadas como "brigas de marido e mulher que se resolvem em casa", lançadas ao rol das culpadas por trajarem roupas curtas, por já terem se relacionado sexualmente com o suposto autor, entre tantas outras justificativas torpes, estaremos agindo de modo a chancelar a violência, protegendo, em última análise, autores que sabem bem como tudo acaba nesse país.

É preciso que nos aprofundemos um pouco mais para perceber que não há como promover Justiça sem a garantia da dignidade da mulher, ou deixaríamos de lado o que há de basilar no Estado democrático de Direito: a vida humana.

Não há como se conjecturar o implemento da Justiça sem pensar na complexidade do dano gerado na mulher que tenta falar, mas é silenciada. Nem mesmo a condenação do autor dos fatos pode ser suficiente para apagar todo o percurso transcorrido até lá, desde o momento mais íntimo, no qual a mulher elabora quanto aos obstáculos que precisará enfrentar para enfim denunciar, as vezes por meses, anos, até criar a coragem necessária para bater às portas de uma delegacia.

Ao falar sobre o percurso da mulher, podemos considerá-lo a partir do evento traumático que se situa dentro do complexo ciclo de violência permeado por confusão, culpa, medos e angústias atrozes, até que se decida denunciar os fatos, torna-los públicos aos agentes que têm o dever de apurá-los, passando por todo o curso do inquérito policial, percorrendo instâncias jurisdicionais por anos.

O ato de revelar, nos ensina a psicanálise, é por si só traumático, para além do próprio trauma, eis que pressupõe boa dose de coragem para superar, e quilos de resiliência para reviver a cena ao delatar, assumindo os riscos inerentes à busca pela própria proteção e reestabelecimento da dignidade. Há riscos, e são muitos. O maior deles é sair destroçada e uma vez mais violada, como Mariana Ferrer, e outras tantas Marianas.

Vergonha, exposição pública, medo, riscos de retaliação, ameaças, inversão da acusação. Ao vencer a barreira da fala, a mulher se depara com uma estrutura pública fria, que reproduz dupla vitimização pela repetição da violência em nível ainda mais profundo, invertendo a lógica entre vítima e algoz.

O fenômeno da revitimização vem sendo cada vez mais abordado nas ciências humanas, e frequentemente reproduzido pelo sistema público que agride pela via da ação ou se cala diante de uma pergunta violadora de direitos, transparecendo que estamos distantes de alcançar a separação de machismo e racismo estruturais, ou então de atingir uma prática despida de questões de cunho moral ou religioso que interferem na Justiça.

Quando a violência é perpetuada dentro do sistema ao qual a vítima recorre para buscar sua própria proteção ou reparação, os danos atingem potencial traumático por vezes maior que a ação perpetrada pelo autor dos fatos, incorrendo no que denominamos dano secundário impingido pelo próprio sistema, conceito muito abordado na seara da psicanálise e psicologia jurídica, mas muito pouco ainda rebatido nas práxis cotidianas. É como o conceito, que muito vem a calhar, oriundo do psiquiatra alemão Furniss, ao discorrer sobre o trabalho daquele que atua em face às questões das violências: "Prevenção de crime promotora-de-crime, e intervenção de proteção promotora-de-abuso".

A mera revelação dos fatos às autoridades públicas, por si só, já pode ser traumática, segundo nos ensinam as ciências psicológicas e a psicanálise. Além de ter de enfrenta-la no seu íntimo, a reação pública à denúncia da vítima pode estigmatizá-la em seu círculo social e profissional, trazendo, igualmente, danos secundários.

Como se não bastasse o drama da vítima, com frequência os agentes públicos oficiantes nos autos, em suas próprias crises pessoais, são arrastados para os conflitos institucionais que muitas vezes existem entre as diversas carreiras públicas e suas vias de atuação judicial, interferindo mais ainda nessa cadeia complexa do ciclo da violência, que produz dano sobre dano às vítimas.

Sem receber tratamento de saúde especializado, como esses agentes públicos se mantêm aptos a acolher a vítima se também podem estar imersos em tantos embaraços, confusões e equívocos pessoais?

Mencionemos, ainda, a dissonância ente o sistema legal vigente e suas práticas ainda não adaptadas às necessidades psíquicas e de proteção da mulher, demarcando o abismo entre o instituído e o instituinte no campo da Justiça, que aumenta a lista de potenciais danos que podem vitimar secundariamente a mulher.

A complexidade se acentua ainda mais quando se pensa nas mulheres que decidem buscar proteção ou reparação via sistema que, por tradição, foi pensado, estruturado e ocupado por homens. Delegacias, salas de audiência, e até mesmo a produção legislativa são marcadas pela disparidade de gênero reprodutora de lógica perversa de inversão de culpa entre vítima e algoz. Há de se pensar seriamente na falta de representatividade da mulher no sistema de Justiça e nos reflexos desse fato em face da reprodução da violência institucional aqui discutida.

Vale mencionar que a violação institucional à mulher perpetrada no serviço público que deveria atendê-la em situação de violência, praticada por agentes públicos via ação ou omissão, consubstanciada em mal atendimento, recusa em prestar orientação, agir de forma discriminatória e omissa quanto aos relatos, é objeto dos projetos de Lei nº 5091/20 e 5096/20, ambos apresentados na Câmara dos Deputados após vir à tona o "caso Mariana Ferrer".

Se a criminalização de condutas pode ser a forma mais acertada de agir, há dúvidas. Talvez o caminho mais adequado seja começar a planejar um sistema de políticas públicas aptas a prevenir a violência institucional, com o devido preparo daqueles que atuam nas mais diversas camadas estatais, como já prevê a Lei 13.431/17, que dispõe sobre políticas públicas que visam a proteção integral da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

A capacitação de agentes com fins de habilitá-los a compreender que violências podem ser sutis ou óbvias é essencial. Um simples olhar reprovador pode marcar toda uma vida, tornar-se inesquecível aos olhos vulneráveis que buscam acolhimento. É preciso profundidade ao se dispor a lidar com seres humanos.

Abolir falácias que regem lugares inconscientes que consideram as mulheres como loucas, histéricas, mentirosas ou fáceis, patologizando a vítima quando toma a decisão que pode mudar completamente o rumo de sua vida também figura imprescindível.

Como se vê, a qualificação profissional dos agentes públicos envolve problemas não apenas no tocante à capacitação no Direito, mas nos estudos da psique, pois se perdem diante da complexidade da violência e, com vaga ou nenhuma compreensão das necessidades especiais das vítimas, chegam a esperar respostas a partir do que imaginam como uma vítima idealizada, coerente em todos os seus atos, falas, vestimentas, numa fantasiosa imagem de fragilidade e passividade. É comum que imaginem que mulheres negras seriam mais resistentes à violência, ou que mulheres independentes e firmes não seriam vítimas de maridos abusadores, e mulheres sensuais teriam responsabilidade pela fúria dos estupradores.

O silêncio dos agentes públicos e operadores do Direito diante das mais diversas práticas selvagens contra a mulher, pode falar sobre suas posições subjetivas, afinal, a psicanálise permite situar o mero silêncio como um ato de fala, como fizeram juiz e promotor, em momentos cruciais, no curso do julgamento do "caso Mari Ferrer". Um simples gesto, ou, ainda, enunciação. Portanto, os modos de dizer não podem mais ser dissociados do atendimento da vítima, tantas vezes "enxovalhada" ao limite, expressão cunhada por Lacan, psicanalista francês, no "Seminário 20: mais, ainda".

Sob o olhar lacaniano, a vítima desassistida, "gozada ao limite", é devastada como objeto de gozo de agentes públicos por meio dos excessos praticados, que interferem em seus direitos fundamentais, atingindo o que a pessoa tem de mais precioso em seu ser: a dignidade.

O Direito estabelece a ética de seu fazer ao regular os gozos excessivos e sem limites dos sujeitos por meio da imposição de coerções e da palavra, criando bordas que fundam a lei civilizatória, nos separando como humanos da selvageria instintiva e animal. Se o Direito, como um fazer ético, nos ensina a regular os excessos do gozo pessoal ou seja, o desejo de tudo fazer sem limites , devido ao seu potencial destrutivo nas relações humanas, devem ser repudiados comportamentos com potencial devastador da psique, da honra, perpetrados por aqueles que guardam o dever de constitucionalmente zelar pela dignidade e proteção da vítima.

Por onde se olhe pela via complexa, percebe-se que as instituições não podem funcionar para desproteger a mulher. É preciso que haja acolhimento, olhar atento, profundo, empático, que evite danos secundários. Ao abandonarmos a ideia de controle do gozo sob a ótica psicanalítica, que prejudica, fere e macula, em última análise, se abandona a saúde mental, a dignidade da pessoa humana e o Estado democrático de Direito. É tempo de olhar além da superfície, é tempo de aprofundar e não dissociar as ciências das complexidades humanas. É tempo de estruturas públicas preparadas para lidas com pessoas sem coisificá-las.

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  • é advogada criminalista.

  • é psicóloga, mestre pela USP com tema de dissertação em Psicologia jurídica, especialista em clínica psicanalítica e psicopatologia pela PUC/COGEAE. Atua como Assistente Técnica e Perita Ad Hoc na capital. Professora em cursos de capacitação profissional na área da psicologia jurídica. Autora de artigos e livros nacionais e internacionais com interface psicologia e direito.

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