Paradoxo da Corte

A questão dos honorários advocatícios num acórdão que enaltece o TJ-SP

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

1 de dezembro de 2020, 8h00

Em inúmeras ocasiões, procurei ressaltar nessa coluna que a enorme e inevitável mole de recursos, como é cediço, tem exigido hercúleo esforço dos magistrados de norte a sul do nosso país, para cumprirem as metas impostas pelo Conselho Nacional de Justiça e ainda pelos próprios tribunais, por meio de diretrizes traçadas interna corporis.

A carência de recursos humanos, intelectuais, materiais e temporais disponíveis para a desincumbência da tarefa de administrar o serviço judiciário tem sido um obstáculo intransponível para se atingir uma produção de cunho mais científico das decisões judiciais.

Não é difícil compreender que tal fenômeno, de resto, inexorável, tende a diminuir o grau de profundidade que idealmente seria adequado para a análise de determinadas questões, não tanto pelo acerto ou desacerto intrínseco das respectivas decisões, mas, sim, pela oportunidade de sustentar, de forma consistente, determinadas teses, que passarão a constituir precedentes para casos futuros.

É de ter-se presente, nessa linha de raciocínio, que, a exemplo da doutrina, a jurisprudência é fonte (ainda que secundária) de expressão do direito e, portanto, quanto melhor for a qualidade do labor pretoriano, mais aperfeiçoado será o ordenamento jurídico. Os precedentes judiciais, como se sabe, constituem instrumento essencial para fortalecer a certeza do direito e, simultaneamente, contribuir para a redução dos custos da distribuição da justiça.

Este anseio, contudo, nem sempre é alcançado, dada a aludida exiguidade de tempo que cada magistrado dispõe para imprimir o adequado andamento em sua respectiva atividade de julgar e, assim, dar conta da distribuição de um sem número de processos que diária e semanalmente são submetidos à sua apreciação, situação que se agrava diante dos pleitos de tutela de urgência, que devem ser examinados incontinenti.

É bem provável ter sido por esta razão que o legislador inseriu, no Código de Processo Civil, a regra do parágrafo 1º do artigo 489, que foi muito criticada por setores do Poder Judiciário, logo após a sua entrada em vigor.

Todavia, com alguma frequência, especialmente nos domínios do TJ-SP, deparamo-nos com determinados julgados que são bem trabalhados, demonstrativos do esmero e capricho do respectivo magistrado relator. E isso tem geralmente ocorrido quando a questão objeto de julgamento é polêmica ou inusitada, a exigir a fixação de determinada tese.

Dentre estas situações, importa referir a um excelente aresto, proferido recentemente no julgamento da Apelação n. 1043140-97.2019.8.26.0100, pela 33ª Câmara de Direito Privado da Corte de Justiça bandeirante, da relatoria da desembargadora Ana Lucia Romanhole Martucci.

A questão fulcral da controvérsia versava sobre o direito de o advogado receber seus respectivos honorários contratuais ad exitum, quando o cliente, antes da satisfação de seu crédito, rescinde, sem justa causa e de forma unilateral, a avença celebrada com o seu patrono.

O advogado destituído moveu execução de título extrajudicial fundada no contrato de honorários advocatícios, no qual foi ajustada a verba de sucesso em 10% do proveito econômico que seria obtido nos processos em que atuaria em nome do cliente. A causa de pedir, portanto, fundou-se na rescisão do contrato pelo cliente, a incidir, desse modo, a cláusula estipulando que os honorários referentes ao trabalho desenvolvido seriam devidos e exigíveis ao ensejo da denúncia do contrato.

A sentença de primeiro grau reconheceu a procedência do pedido deduzido nos embargos à execução então opostos pelo cliente à execução promovida pelo advogado. Observa-se destarte que, pela sentença, o advogado não tinha direito a receber valor algum, dado ser inexigível o respectivo contrato de prestação de serviços.

De fato, a tendência de nossos tribunais, diante dessa espécie de controvérsia, tem sido a de desqualificar a exequibilidade do contrato escrito e, quando muito, admitir arbitramento judicial do serviço profissional prestado até a revogação do mandato.

Não obstante, o aludido órgão colegiado, secundando o voto da ilustre desembargadora relatora, deu provimento à apelação interposta pelo advogado,  entendendo que, não havendo controvérsia sobre a rescisão unilateral do contrato de prestação de serviços advocatícios pelo contratante, antes do final dos processos em que era representado pelo advogado, o pagamento da remuneração prevista pelo êxito torna-se exigível independentemente da satisfação do crédito devido ao então cliente na respectivas demandas.

Como se extrai do julgado, "o executado opôs embargos à execução, arguindo que, diante da rescisão antecipada do contrato, não é devida a remuneração integral dos honorários contratados, pelo que o título executivo não goza de liquidez, pois depende de ação de arbitramento. Aduziu também que o contrato prevê honorários ad exitum, entretanto, ainda nada recebeu nas demandas, pelo que não há que se falar em benefício econômico. No mais, o embargante impugnou a execução da multa contratual".

Rejeitando, pois, tal argumentação, a 33ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, à luz da regra do artigo 129 do Código Civil, reformou a sentença proferida em sede de embargos à execução de honorários contratuais pela rescisão antecipada do contrato.

A relatora asseverou que o advogado exequente tem razão no sentido de que a execução não se refere à multa pela rescisão antecipada, mas apenas aos honorários contratuais ajustados em 10% pelo êxito a ser alcançado em dois processos, inclusive já encerrados, com decisão transitada em julgado.

Não havendo controvérsia sobre a rescisão unilateral do contrato de prestação de serviços advocatícios pelo contratante, antes do final dos processos em que era representado pelo advogado exequente, o pagamento da remuneração prevista passou a ser exigível independentemente da satisfação do crédito devido ao cliente naquelas demandas. Como restou destacado pela turma julgadora:

"no caso em tela, verifica-se que o advogado apelante atuou nos processos por longo período, representando o cliente em toda a fase de conhecimento, inclusive com apresentação de recurso e alcance do trânsito em julgado. Após isso, houve a rescisão injustificada da avença, antes da efetiva satisfação da dívida".

E, assim, segundo assentado no acórdão:

"a partir do momento em que o exequente deixou de patrocinar a causa, não pode mais ser dele cobrado o término do exercício do mandato, pelo que a remuneração de seu trabalho não pode mais depender da satisfação do crédito. Pelo fato de o apelante não estar mais na direção dos processos, não lhe pode ser exigido que aguarde indefinidamente que o apelado receba o seu crédito reconhecido nos dois processos."

Incide ao caso o artigo 129 do Código Civil que dispõe: "Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento'…".

Diante dessa novel e correta orientação, conclui-se que o TJ-SP prestigiou a letra do contrato de honorários advocatícios, em desabono de condutas e subterfúgios de contratante, geralmente utilizados visando a se desonerar da obrigação de pagar o percentual previsto no ajuste formalizado no momento da outorga de poderes ao seu advogado.

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