Opinião

A liberdade religiosa dos sabatistas e a Administração Pública

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1 de dezembro de 2020, 6h35

Desde o dia 18 de novembro, o STF se ocupou em decidir dois processos (RE 611874 e ARE 1099099) que atraíram a atenção de parte da comunidade jurídica, interessada em compreender a visão da corte sobre o alcance e os limites da liberdade religiosa, protegida textualmente na Constituição Federal, nos incisos VI e VIII do artigo 5º.

Antes da análise dos casos, importa saber quem são os "sabatistas". São assim conhecidos os religiosos que compreendem que o sábado semanal é dia de descanso de qualquer ocupação tida como secular, a exemplo de estudos, exercício de ofício ou trabalho profissional, submissão a exames e avaliações etc., no período compreendido entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol de sábado.

Entre os movimentos religiosos que atualmente sustentam esta crença milenar, estão os adventistas do sétimo dia e os judeus. Tais grupos são conhecidos pela busca de prestação jurisdicional para solução de conflitos nas diversas esferas de desenvolvimento pessoal e profissional. Destacam-se questões educacionais, no tocante à realização de aulas e atividades avaliativas em dias de sábado; o tema de acesso a carreiras públicas com concursos públicos agendados em conflito com o dia de guarda; a atuação no funcionalismo público, com a imposição de plantões e realização de tarefas em horários colidentes com a preservação da fé assumida publicamente; além de questões envolvendo relações empregatícias e até o militarismo, no âmbito obrigatório ou de carreira.

O primeiro caso julgado (RE 611874) originou-se do Mandado de Segurança nº 2007.01.00.042619-8/DF [1]. O recorrido foi o adventista Geismário Silva dos Santos, que impetrou o MS perante o TRF da 1ª Região, contra ato da presidente daquela corte, visando a garantir sua participação na prova prática de capacidade física, em um local que previa a realização do mesmo exame em um domingo, de modo que não ofendesse sua crença. O TRF decidiu, por maioria da corte especial, que o pedido do candidato era compatível com o interesse público e não acarretava prejuízo às atividades da Administração nem às regras do edital. Desta decisão proferida pelo julgador regional é que originou o RE nº 611874, interposto pela União perante o STF.

O segundo caso (ARE 1099099) iniciou-se com a impetração do mandado de segurança pela adventista Margarete da Silva Mateus Furquim contra ato do prefeito municipal de São Bernardo do Campo (SP), por ter sido exonerada após parecer da Caeds (Comissão de Avaliação Especial de Desempenho do Servidor), acusada de não ter cumprido requisito da assiduidade, por faltas no período de sua guarda religiosa. Por essas razões, solicitava a decretação de nulidade do ato exoneratório e a reintegração ao cargo de professora da educação básica (EJA). Após decisão de primeira instância denegatória da segurança, a professora interpôs a Apelação nº 1022527-95.2014.8.26.0564 [2] e a 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso por unanimidade. Sendo assim, em sua defesa foi interposto o recurso perante o STF.

A apresentação dos votos dos ministros teve início no dia 19 de novembro, analisando se haveria direito subjetivo a remarcação de horários e datas de provas em razão de crença religiosa, bem como da possibilidade de adequação ao regime de trabalho de funcionário público dentro de horário compatível com a fé sabática.

O ministro Dias Toffoli [3], como relator do primeiro caso, fez questão de ressaltar que, não obstante a Lei nº 13.796/19 determine que as instituições de ensino fixem prestações alternativas à aplicação de provas e à frequência a aulas, sua decisão não sofreria influência do referido diploma por se tratar de tema diverso — concurso público —, que deve ser pautado por legalidade e igualdade.

Ainda em seu voto, o ministro Dias Toffoli entendeu que é facultado à Administração Pública (e não um dever de) realizar concurso público ou vestibular em datas não coincidentes com dias de guarda. Consequentemente, não haveria direito subjetivo à remarcação de prova com base na liberdade religiosa. Por fim, o relator apresentou proposta de tese de repercussão geral, nos seguintes termos:

"Não há direito subjetivo à remarcação de data e horário diversos daqueles determinados previamente por comissão organizadora de certame público ou vestibular por força de crença religiosa, sem prejuízo de a administração pública avaliar a possibilidade de realização em dia e horário que conciliem a liberdade de crença com o interesse público".

Em seguida, o ministro Edson Fachin, relator do ARE 1099099, em voto objetivo, decidiu pelo desprovimento do RE 611.874, pois, para ele, diante de objeção de consciência fundada em motivo religioso "há dever do gestor público de disponibilizar data e horários alternativos para realização de etapa de concurso público, certame público ou vestibular por força de crença religiosa". E, em relação ao ARE 1099099, sua proposta foi a seguinte: "O administrador deve oferecer obrigações alternativas para que seja assegurada a liberdade religiosa ao servidor em estágio probatório" [4].

Entretanto, a tese prevalecente não foi a de nenhum dos relatores, mas a proferida pelo ministro Alexandre de Moraes. Em relação ao primeiro caso (RE 611874), ele propôs:

"Nos termos do artigo 5º, VIII, da CF, é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital por candidato que invoca escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à administração pública que deverá decidir de maneira fundamentada".

E em relação ao segundo caso (ARE 1099099), o ministro Alexandre de Moraes propôs:

"Nos termos do artigo 5º, VIII, da CF é possível à administração pública, inclusive durante o estágio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento no exercício de suas funções e  não acarrete ônus desproporcional à administração pública que deverá decidir de maneira fundamentada".

Apresentados os casos e os principais votos, nosso propósito é esclarecer o que foi definido como tese de repercussão geral, especialmente para responder críticas feitas no plenário pelos vencidos que podem, de igual maneira, serem suscitadas de agora em diante contra a decisão.

A tese vencedora é mais coerente, equânime, justa, por levar a sério [5] o direito dos sabatistas. Caso a proposta de tese do ministro Toffoli fosse a vencedora, não existiria o direito de, ao menos, solicitar qualquer tipo de acomodação, de prestação alternativa, de tentativa de conciliar os direitos dos demais candidatos (no caso de concurso) ou da Administração (no caso de servidor) com o do religioso.

A tese vencedora, então, aponta que existe um direito subjetivo à prestação alternativa e, em não sendo possível o deferimento, existe o dever de fundamentação da decisão demonstrando tal impossibilidade sob pena de causar um grande prejuízo ao erário ou aos demais interesses envolvidos.

O que a tese vencedora não decidiu é que há um direito subjetivo a alterar dia de prova em edital invariavelmente. Essa era, inclusive, a preocupação na fala de ministros como Gilmar Mendes e Marques Nunes especialmente ao final do julgamento.

Alterar dia de prova de concurso público em edital não seria, por definição, uma prestação alternativa, mas seria forçar que todos já inscritos (por exemplo: com passagens compradas, hotéis reservados) tenham de se adequar aos sabatistas. No caso julgado no RE 611874, não houve qualquer alteração de edital para todos, mas somente para o religioso. Houve, ao contrário, um exemplo claro de prestação alternativa. Já que existia outro local (previsto em edital) no qual a prova seria fora do horário sabático, por que não permitir a acomodação? No caso concreto, o candidato arcou com todos os custos para se deslocar a outro lugar para realizar o exame.

Outro possível exemplo de prestação alternativa, que se enquadra melhor em casos de provas objetivas ou discursivas aos sábados, é o do confinamento, como ocorria quando o Enem se dava aos sábados. O argumento de que tal confinamento geraria um custo para a Administração é imoral diante do custo pessoal do próprio religioso em ter que, para manter sua crença, ficar preso um turno inteiro numa sala incomunicável [6].

Argumentos vagos e que tendem ao exagero (reductio ad absurdum), como "o que aconteceria caso surjam novas religiões guardando outros dias?", ou mesmo "se todos os funcionários fossem sabatistas", jamais podem ser utilizados para denegar a acomodação de um sabatista. Em primeiro lugar, o costume de guardar o sábado existe antes do Brasil ou mesmo do Ocidente; em segundo lugar, os sabatistas são, notadamete, uma minoria. Sendo assim, é altamente improvável que um número expressivo de funcionários públicos se torne sabatista. Como reforçou o ministro Alexandre de Moraes, "0,8% dos brasileiros, repito, 0,8% são adventistas do 7° dia que guardam o sábado ou judeus. 0,8% Dos 0,8%, 14%, no máximo, são servidores públicos. Ou seja, é o que dá 0,1%, e atuam pelo Brasil todo" [7].

Não se quer afirmar aqui que sempre será possível existir a prestação alternativa, mas que o Supremo acertou ao definir que, nesse caso, o sabatista mereça, ao menos, uma resposta fundamentada, não uma desculpa qualquer sem uma mínima facticidade. A Constituição é límpida ao afirmar, em seu artigo 5°, VIII, que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei". Desse texto se infere que haverá, a não ser que seja realmente impraticável, a possibilidade de prestação alternativa. Conceder um direito ao religioso dessa natureza e, num caso concreto, negá-lo sem qualquer justificativa é o que a ministra Cármen Lúcia chamou de "hipocrisia institucional". É uma quebra da confiança do cidadão sabatista na Administração. Declara a ministra:

"Eu tenho quase um sonho: o de ver como inconstitucional a hipocrisia institucional. (…) É preciso que, talvez, se introduzam, com os princípios constitucionais do art. 37, o princípio da sinceridade institucional, da lealdade institucional. O princípio da confiança do cidadão (…) se perfaz com o princípio da boa-fé que há de ter o cidadão em relação ao Estado; com o cumprimento da seriedade em relação ao cidadão".

Nesse julgamento, o STF não criou um privilégio para um pequeno grupo de religiosos, muito menos submeteu a Administração Pública aos seus caprichos, mas realizou justiça ao dar o mínimo de reconhecimento e dignidade que qualquer cidadão merece. Que o Brasil jamais impeça algum sabatista de dar ao "Brasil o que é do Brasil, e a Deus o que é de Deus".

 


[1] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Mandado de segurança nº 2007.01.00.042619-8/DF. des. rel. Maria Isabel Gallotti Rodrigues. DJ 03 de setembro de 2009. Disponível em: https://bit.ly/3qcjQcT, acesso em 26 de novembro de 2020.

[2] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação nº 1022527-95.2014.8.26.0564. des. rel. Vera Angrisani. DJ 15 de outubro de 2015. Disponível em: https://bit.ly/3q3AkDV, acesso em 26 de novembro de 2020.

[3] Voto do ministro Dias Toffoli disponível aqui: https://bit.ly/33lFZLR, acesso em 26 de novembro de 2020.

[4] Voto do ministro Edson Fachin na íntegra. Disponível em: https://bit.ly/33leUsc, acesso em 26 de novembro de 2020.

[5] Utilizando a linguagem de Dworkin (DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Nelson Boeira (trad). São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 36) a tese vencedora entendeu que o direito à liberdade religiosa é um trunfo diante de argumentos de política como, por exemplo, gastos para a acomodação ou mesmo conceitos gerais de ordem pública. Já Rawls chamaria esta postura de reconhecer a liberdade religiosa enquanto liberdade básica com prioridade sobre argumentos de natureza econômica (RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Jussara Simões (trad). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 301-310).

[6] Para uma análise pormenorizada sobre o confinamento dos sabatistas no ENEM, cf. BATISTA NETO, Dilson Cavalcanti; MARQUES, Igor Emanuel de Souza. O confinamento dos sabatistas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM): uma reflexão sobre liberdade, igualdade e economia. In GRIM, Brian J.; LAZARI, Rafael de; SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa e Desenvolvimento Econômico. Belo Horizonte: D´Plácido, 2018, p. 179-200.

[7] Transcrição do vídeo do julgamento. BRASIL. STF. RE 611874 e ARE 1099099. min. rel. Dias Toffoli e Edson Fachin. Disponível em: https://bit.ly/2JiBies, acesso em 26 de novembro de 2020.

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